Todos os artigos de Isabel Moreira

O dia em que a Assembleia da República se transformou na Assembleia Nacional

Não vale a pena acrescentar muito à brutal indignação a que ontem e hoje assistimos, por parte de todos os quadrantes ideológicos, acerca da aprovação de um referendo dois em um (co-adoção e adoção) na AR.

Toda a gente sabe que o projeto de lei da co-adoção respeitava a decisão do TEDH que condenou a Áustria por, tal como Portugal, consagrar a co-adoção apenas para casais de sexo diferente.

Toda a gente sabe que, mais tarde ou mais cedo, precisamente por estar em causa o superior interesse de crianças que já existem em famílias reais, Portugal seria (ou será) condenado no TEDH.

Toda a gente sabe que o projeto de lei foi aprovado na generalidade e que teria sido aprovado, como se viu ontem, na votação final global, com os deputados do PS e os deputados do PSD que faltaram à votação na generalidade.

Toda a gente sabe que foi constituído um grupo de trabalho na especialidade, consensualizado entre todos os partidos, no âmbito do qual foi esmagador o consenso científico em todas as áreas no sentido da urgência de dar proteção jurídica a estas crianças.

Toda a gente sabe que tudo se passou sem se ouvir um pio de proposta de referendo.

Toda a gente sabe que a data da votação final global foi acordada por todos, incluído pelo amante da democracia representativa em modo pisca-pisca, o deputado Hugo Soares.

Toda a gente sabe que Passos em 2010 afirmou ser a favor da adoção por casais do mesmo sexo.

Toda a gente sabe que não se apresenta um projeto de resolução de referendo, propositadamente ilegal, em cima da votação final global.

Toda a gente sabe o nome que isso tem.

Toda a gente sabe que um PSD que dá sempre liberdade de voto nestas matérias só conseguiu este bullying político de disciplina norte-coreana com a intervenção de Passos.

Toda a gente sabe que um deputado que em face disto tudo só tem como argumento dizer que a co-adoção, com o processo na especialidade que teve e com o debate público que gerou, foi aprovada “dentro das paredes da AR” não tem respeito pelo derrube de 40 anos de fascismo e enverga as vestes de um deputado da assembleia nacional.

Toda a gente sabe que não se referendam direitos de minorias: sim, vedar a um progenitor de facto de uma criança o acesso ao reconhecimento jurídico do seu estatuto por esse progenitor ser um gay ou uma lésbica é desproteger automaticamente as crianças (também) ao seu cuidado.

Toda a gente sabe que esta é uma matéria consensual no quadro de direitos humanos em que nos movemos.

Toda a gente sabe quem foi o autor deste dia de desígnio pessoal mascarado de nacional, quem foi o criado de serviço e quem fez de Pilatos.

Toda a gente sabe que no meio do jogo político sem nome adiaram-se vidas.

Toda a gente sabe que se o PR for contra o referendo nem sequer tem de o enviar para o TC, já que a decisão final é dele.

Toda a gente sabe que adotar uma criança institucionalizada e adotar uma criança que já nos é, numa relação, filho ou filha de facto, são questões diferentes, donde a ilegalidade evidente do projeto de resolução.

Toda a gente sabe que o TC pode pronunciar-se sobre o resultado hipotético de um referendo: como o de saber se seria constitucional a proibição da co-adoção.

Toda a gente sabe que esta dilação sem referendo à vista dá mais razão aos que começam a cansar-se de tanta consciência inconsequente na casa da democracia.

 

 

Três razões para se votar contra um referendo sobre a coadoção em casais do mesmo sexo e a adoção por casais do mesmo sexo

 

Esta sexta-feira a Assembleia da República (AR) vai votar uma resolução inédita: propõe a realização de um referendo nacional sobre a coadoção em casais do mesmo sexo e a adoção por casais do mesmo. Se a ética parlamentar prevalecer, esta resolução deve ser chumbada. E por três razões facilmente apreensíveis: 1) trata-se de um expediente assente na deslealdade parlamentar e não na convicção; 2) a resolução que propõe o referendo é ilegal; 3) seria um precedente ético que, se acolhido pela AR, inverteria a lógica de reconhecimento de direitos fundamentais a minorias. Começando pela primeira razão, não houve nenhuma falha no único processo legislativo em curso (o da coadoção), antes pelo contrário, que decorreu até à marcação da respetiva votação final global sem se ouvir uma sugestão de referendo. O projeto de referendo deu subitamente entrada no dia 22 de Outubro de 2013, cinco meses, cinco meses (!), depois da aprovação no, dia 17 de Maio de 2013, na generalidade, do projeto de lei sobre a coadoção. Foi constituído um grupo de trabalho (GT) – o que não é obrigatório -, para que o processo na especialidade fosse particularmente exigente. Durante quase dois meses os trabalhos decorreram sem se ouvir uma sugestão de referendo. O GT cumpriu a sua função ouvindo entidades e recolhendo depoimentos escritos de todas as áreas científicas e sociais relevantes. Todas as audições e toda a documentação recolhida foram disponibilizadas on-line, para que, não só os Deputados, como também os cidadãos, pudessem seguir os trabalhos. Mais de um mês de audições sem se ouvir uma sugestão de referendo. Ao longo dos meses em questão, houve amplo debate na sociedade. Hoje, dado o material recolhido, só de má-fé pode afirmar-se que os Deputados não têm condições de tomar uma decisão informada. Iniciada a nova sessão legislativa, foi decidido por unanimidade que a votação da coadoção teria lugar no dia 25 de Novembro, sem se ouvir uma sugestão de referendo. Dias antes da votação democrática final, foi apresentado este projeto de resolução. Os seus proponentes apareceram do nada, como se nada se tivesse passado, afastando a democracia representativa em nome de um referendo sobre duas matérias distintas, tão distintas que uma foi chumbada duas vezes (adoção) e uma foi aprovada na generalidade (coadoção), momentos em que os agora inimigos súbitos da democracia representativa não se coibiram de participar na mesma, votando, sem uma sugestão de referendo. Moral da história: há quem queira um referendo consoante o ocorrido na votação na generalidade, e não por consciência, ou teriam falado mais cedo. Esquecem a lealdade devida ao trabalho desenvolvido na especialidade por deputados do PSD, do PS, do CDS, do PCP e do BE; esquecem a lealdade devida às instituições e personalidades a quem a AR solicitou a participação nos trabalhos; esquecem, assim, a lealdade devida à AR. Esquecem as famílias concretas a quem se criou a convicção de que haveria uma votação final global, aprovando ou não a coadoção, mas que haveria essa votação. Isto não é um comportamento democrático.

A segunda razão para se votar contra esta resolução reside no facto de a mesma ser ilegal: a falta de convicção substituída por uma lógica antiparlamentar levou ao esquecimento da própria lei. Querem referendar duas matérias ao mesmo tempo, que são distintas, o que não é permitido pela lei orgânica do referendo, que restringe a sua possibilidade a uma única matéria. Mais: dá-se a invulgar situação de se propor um referendo sobre duas matérias quando só uma delas tem um processo legislativo em curso, o da coadoção. Isto diz tudo acerca do súbito apego ao referendo aliado ao desprezo pela própria lei.

Em terceiro lugar, esta resolução deve ser chumbada por representar um precedente ético perigosíssimo. Esperamos que seja a última vez que se defende o referendo de direitos fundamentais de minorias; esperamos que a AR não se demita de decidir democraticamente questões complexas que envolvem dificuldades práticas e emocionais na vida de cidadãs e de cidadãos; esperamos que a AR não fique na história como tendo aderido ao argumento que sempre tentou travar o evoluir dos direitos humanos, esse mítico consenso social, alegado para negar os direitos dos negros e das mulheres; esperemos que a AR não dê um sinal de cruzada contra uma pretensa democracia enfraquecida de países que discutiram e votaram direitos de minorias nas respetivas casas da democracia; esperemos que prevaleça o respeito institucional entre todos nós, entre todos os Grupos Parlamentares, entre todos os Deputados, contra, a favor ou numa posição de abstenção, mas que votaram no dia 17 de Maio e que trabalharam muito na especialidade para que, mais uma vez, em votação final, cada um e cada uma vote livremente. Mas sem manchas na consciência quanto ao processo legislativo decorrido de forma exemplar.

 No Público de hoje

O Diário da República numa República do século XXI

O acesso ao direito implica, nos dias de hoje, um acesso fácil e gratuito ao diário da república eletrónico (DRE). A complexidade legislativa, a difícil articulação entre diplomas conexos, a compreensão das normas através do acesso às que lhes antecederam é possível e poucos juristas exercerão a sua profissão sem este instrumento.

Acontece que o acesso simplificado ao direito não é reserva de juristas, mas um direito de todos, de cidadãos e de empresas, à luz do princípio de transparência, decorrente do Estado de direito democrático.

Ao longo de dois anos, este Governo conviveu sossegado com um DRE totalmente contrário ao sistema que estava pronto para ser implementado e que lhe foi entregue de boa-fé na “passagem de pastas”.

Para se perceber melhor, no âmbito do programa SIMPLEGIS, estava preparado um novo site do DRE, bem diferente do que foi oferecido ao país durante dois anos, que juntava as bases de dados do DRE e do DIGESTO para produzir o resultados como os seguintes: acesso totalmente gratuito, tanto às pesquisas por número e tipo de diploma, como a “pesquisas livres”, feitas com um novo “Google legislativo”; melhores pesquisas, com um verdadeiro motor de pesquisa do tipo “Google legislativo”; integração de toda a informação do DIGESTO e DRE (acede-se ao diploma e, no mesmo monitor, é possível verificar se está revogado, que legislação comunitária está na sua base e que regulamentos o desenvolveram); disponibilização de legislação consolidada; tradutor jurídico; dicionário jurídico; e divulgação de “Manuais de Instruções” sobre a aplicação das leis.

Naturalmente não se lança um site em momento eleitoral, mas ele não desaparece, fica pronto para ser posto ao serviço da cidadania, pronto, com todos os seus passos desenvolvidos com parceiros de associações empresariais, centrais sindicais, associações profissionais. Pronto. Todos viram o site em funcionamento e contribuíram durante meses para o seu desenvolvimento.

Não estamos a falar de um assunto menor. Estamos a falar de um historial de medidas que permitiram que em 2010 passasse a ser publicado na internet um resumo das leis em linguagem clara, em português e em inglês, o que permite a todos (cidadãos e empresas) compreender e atuar sobre as suas vidas. Estas medidas de simplificação, amigas do acesso ao direito, amigas da economia, amigas do crescimento, medidas pioneiras do que viria a ser o SIMPLEGIS, foram destacadas na UE como exemplo primeiro a seguir. Feita a passagem de pastas, assistimos a dois anos de austeridade que pelos vistos também atinge o acesso ao direito. É que, precisamente, os objetivos do SIMPLEGIS são a transparência (pessoas e empresas vão passar a poder conhecer com mais facilidade as regras que são aplicáveis às suas vidas e às suas atividades), a redução de custos (só em redução de custos diretos, estimava-se uma poupança de 200M€/ano para pessoas e empresas); melhor aplicação das leis (garante-se de forma mais eficaz que as leis produzem os efeitos para que foram concebidas); e a credibilidade internacional (as obrigações comunitárias de Portugal em matéria de transposição de legislação passam a estar permanentemente cumpridas, contribuindo para aumentar a credibilidade internacional de Portugal).

O Governo da austeridade entra em funções e austeramente deixa em funcionamento um DRE parado.

Isto é, em 2013, na sequência de um trabalho de modernização iniciado em 2006, com avanços em 2008, com avanços em 2010 e com um programa inteiro pronto a implantar, o SIMPLEGIS, esteve em vigor um sistema de DRE por..2 dias (???), regressando-se após esses dois dias obscuros ao DRE de 2010, mas ignorando todo o trabalho feito, avaliado e pronto a aplicar..

É forçoso perguntar o que trava o Governo também neste campo. Por que razão continua a haver assinaturas pagas em 2013? Qual a justificação para, em 2013, se pagar qualquer acesso que seja? Serão as receitas da INCM? Não parece, já que as principais receitas da INCM são hoje resultantes da produção de cartões de segurança e não da venda de assinaturas de DRE, certo?

Afinal, que resposta tem o Governo? Estará a mesma nos dois dias misteriosos de tira e põe? Tem de haver uma resposta para não termos um programa que estava pronto. É bom que nos seja dada, porque por maior que seja a perplexidade, não gosto de dar visibilidade a jogos de interesses que dançam como hipótese.

“PSD acusa PS de ser refém da Constituição”

Somos todos, felizmente. Chama-se Democracia, Estado Soberano, Estado de Direito Democrático. De Direito, insista-se.

E por isso mesmo:

Dever cumprido.
Dever. Sim, é um dever dos deputados dirigirem-se ao Tribunal Constitucional se estão convencidos de que a Constituição é violada por alguma norma. Trabalho meticuloso, convicto e coletivo.
Está entregue o pedido de declaração de inconstitucionalidade das reduções remuneratórias, da norma relativa aos complementos de pensão nas empresas públicas, do ataque reincidente às prestações de doença e de desemprego e da norma relativa a pensões de sobrevivência dos cônjuges e ex- cônjuges .
Agora é tempo de deixar o Estado de direito funcionar; aqui, o Tribunal Constitucional, portanto.

Convicção e conveniência

Logo aquando da aprovação do OE na AR, 38 deputados do PS, isto é, mais de metade do grupo parlamentar, apresentaram uma declaração de voto.

O PR fez uso do truque do Governo, esse de consagrar o corte das pensões num diploma avulso – que é evidentemente orçamental – e enviou-o para o TC.

Recebido o OE para 2014, já sem a sombra dos cortes nas pensões, Cavaco ensaia uma alegada continuidade na sua lógica de abordagem daqueles diplomas.

Sabemos que não requer a fiscalização preventiva, porque é importante que o OE entre em vigor na data prevista, mesmo que inconstitucional. De resto, alega Cavaco, nunca foi feito tal pedido. É, pois, cego às circunstâncias que aconselham uma “primeira vez”.

Já no que toca a fiscalização sucessiva, que gera mais da instabilidade que Cavaco diz querer evitar, o PR envia o OE para o TC se o mesmo contiver medidas sobre pensões e reformas. Foi o caso do ano passado.

Calha que Cavaco não entendeu por conforme à CRP essa coisa de retirar salários (subsídios) também aos funcionários públicos, pelo que também impugnou sucessivamente este assalto.

Este ano Cavaco reafirma a necessidade de o OE entrar em vigor na data prevista e alega a leitura atenta de vários pareceres que asseguram a constitucionalidade do diploma.

Um cidadão sem qualquer formação jurídica estranha imediatamente por que razão no ano passado Cavaco tinha por inconstitucional retirar um salário aos funcionários públicos – o que corresponde a um valor – e este ano não lhe assalta o espírito um corte de salários às mesmas pessoas, o qual, na realidade, acaba por ser superior ao do ano passado. O tal que moveu Cavaco.

Nada há de jurídico, aqui. Temos apenas um PR que alinha no “discurso das prioridades sem alternativa “do Governo. O discurso do relógio do fim da troica. O discurso que nos dispensa.

É conveniência. Não é convicção.

Justiça constitucional: equívocos e epifanias

Ouvindo e lendo as epifanias sobre o Tribunal Constitucional (TC) que descobriram ali um órgão de soberania entrave à governação, é-se levado a concluir que esses oráculos sofrem de má-fé evidente ou da intrigante ideia segundo a qual as funções do TC só são exercidas desde que este governo tomou posse.

Desde o primeiro orçamento de estado que assistimos a pressões sobre o TC por parte de membros do governo, os mesmos que, juntamente com o PR, calam a voz perante pressões vindas da comissão europeia ou do FMI ou quando têm por conselheiro quem, em vestes de professor, faz propaganda mentirosa nos EUA sobre a constituição (CRP) e o TC.

Aquelas pressões e a desinformação constante acerca da nossa soberania envergonham quem nos representa e envergonham a Europa. O respeito pela soberania interna, a sua defesa, a defesa dos órgãos que a representam, não é apenas obrigação de um PM ou de um PR, mas dos titulares de órgãos de tratados que preveem no seu articulado, precisamente, esse respeito: mais, essa defesa.

Do ataque ao TC passou-se, claro, ao ataque à própria CRP. O facto de o TC ter chumbado algumas normas (subsídios e pensões) dos dois primeiros orçamentos, a requalificação dos funcionários públicos, nos termos em que as normas se apresentavam, algumas das 20 normas impugnadas do código de trabalho (extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação, nos termos em que as normas se apresentavam) ou a convergência das pensões da CGA com as do regime geral foi suficiente para explodir um clamor televisivo e escrito de novíssimos constitucionalistas. Se o TC não declarou inconstitucional o aumento de impostos, o corte nas horas extraordinárias da função pública, a CES, a redução de feriados e menos dias de férias, os cortes no pagamento de horas extraordinárias, a agilização das causas de despedimento por inadaptação, a lei das 40 horas, cerca de 80% da dita austeridade, isso só serve, imagine-se, para encontrar contradições.

Os que acusam a CRP de ser demasiado extensa e dirigista subitamente, perante pouquíssimas decisões tomadas com base no princípio da proteção da confiança (há quem insista que foram todas), têm este desiderato universalista, decorrente da cláusula do Estado de direito democrático, presente em todas as constituições, explícita ou implicitamente, como perigoso e vago, passível de inconstitucionalizar uma pequena e inesperada alteração legislativa, ignorando os critérios densificados há mais de 20 anos pela jurisprudência constitucional para que se possa analisar uma violação daquele princípio. Os mesmos teóricos estranham decisões com votos de vencido, talvez almejando um Direito matemático, sem necessidade da ponderação, em cada caso concreto, tendo em conta as respetivas circunstâncias. Ponderação, sim, feita por parte de quem tem de existir, um árbitro com legitimidade constitucional, um TC, como acontece nas constituições que nos rodeiam.

Há mesmo liberais que não entendem por que razão num caso se aplica o princípio da igualdade, noutro, o da proporcionalidade, noutro, o da confiança. E voltam com os votos de vencido.

Essas vozes desejosas de alterar as regras do jogo, isto é, a CRP, não escutam na sua própria reivindicação o regresso ao decisionismo puro, ao positivismo voluntarista, à constituição como obra do poder, para o poder, para defender o poder e não para, numa sociedade plural e complexa, controlar o poder, o qual, hoje um, amanhã outo, tem sempre um texto contramaioritário, que jura, e que o impede do arbítrio.

Só um Direito feito de regras matemáticas geraria o consenso, donde ser de saudar os tribunais coletivos, como o TC: por um se ganha, por um se perde, porque o Direito compara o caso (as normas infraconstitucionais) com os grandes princípios, extrai normas, é elástico, pelo que se todas as decisões fossem tomadas por unanimidade, na verdade, não seria necessário um árbitro.

Finalmente, o ativismo do TC: talvez não fosse demasiado pedir às epifanias recentes que consultassem a jurisprudência deste tribunal e, assim, aliviar o espanto de quem lê, pela primeira vez, uma decisão como a da convergência das pensões. Houve mesmo quem dissesse que mais valia o TC ter-se limitado a enunciar o que era violado sem dizer mais nada porque se meteu no domínio do político. Sim, já se chegou ao ponto de defender um TC despido do dever de fundamentação, como fez no excelente acórdão aqui em causa, no qual não diz que uma reforma estrutural é ou não inconstitucional. O governo juntou aos autos a argumentação segundo a qual aquela lei era uma reforma estrutural e o TC, como é evidente, quando qualifica, e analisa, a medida como avulsa, tem de contrariar, fundamentando, a tese do Governo e afirmar que mesmo uma reforma estrutural – único cenário que, em tese (o TC não está avaliar nada, não está a antecipar juízos) -, poderia eventualmente justificar uma alteração dos montantes a pagamento, mas sempre, claro,  respeitando a igualdade proporcional e a solidariedade entre gerações com a finalidade exposta pelo governo que não cabe ao TC contestar – a da sustentabilidade do sistema de pensões.

A isto se chama cumprir o dever de fundamentação.

Não é com tristeza – recordando a revisão constitucional de 1982 que criou o TC -, mas com revolta, que muitos ouvem o PM afirmar que a CRP não cria empregos ou Paulo Portas explicar na sua moção ao congresso que a CRP não impediu a subida de impostos ou a bancarrota. Isto é o limite: quando os nossos representantes, para além de calarem a boca perante insultos à nossa soberania, de mãos dadas com Merkel, a mulher que toma posse afirmando a prioridade de defender a constituição alemã, incutem a confusão entre o domínio do político e o domínio do jurídico.

Sabendo todos que o tribunal constitucional alemão, sem acusações de ativismo, inviabiliza medidas na área dos direitos sociais sem direitos sociais consagrados na constituição alemã (deduzem a sua proteção da cláusula geral do Estado social ou do direito à propriedade privada, por exemplo) podem os nossos governantes ter deixado cair a máscara de vez: se as políticas deste governo causarem uma derrocada de dois líderes partidários, a responsabilidade será atirada ao TC, o tal que viabilizou 80% da austeridade e que na devolução de subsídios e pensões acabou por aumentar, por consequência, os índices de procura interna.

A tese não vai pegar: Passos e Portas fazem escolhas políticas. O TC, que só analisa uma norma se algum dos órgãos com legitimidade para tanto o requerer (o PR é um ativista descontrolado?), que não pode ter iniciativa própria, portanto, analisa as normas objeto de um pedido de fiscalização que lhe seja dirigido à luz da CRP com os instrumentos de interpretação próprios, há tanto trabalhados a propósito de uma lei; que é fundamental. Talvez a palavra fundamental faça dissipar tanto ruído, esse ruído contraditório, ou falso, ou indecente.

Talvez se perceba melhor a indecência perante a perplexidade de decisões do TC serem atacadas, em vez de erguidas como soberanas, e, como tal, armas intransponíveis de negociação com os nossos credores: a nosso favor, como se esperaria.

No Público de hoje.

Contra a privatização dos CTT

Talvez pudesse escrever este título: “seria sempre contra a privatização dos CTT”. E seria verdade. Acontece que há razões, para além das clássicas, que endurecem uma posição que assumo como pessoal.

Não vou debruçar-me sobre trapalhadas do processo de privatização. Vou tomar partido sobre a questão de princípio: nada justifica a privatização desta empresa; tudo e, em particular, o contexto que vivemos, conduz a uma opção decente pela não privatização.

O resultado mais intencional da continuada forma de marchar a austeridade é a quebra dos elementos essenciais que constituem e mantém viva uma comunidade. Classes contra outras classes: eis a legitimação da marcha austera nessa vitória desagregadora, a vitória que faz aparecer gente que, de repente, não é gente, mas a propriedade de palavras que arrumam, que dizem “velhos”, ou “doentes”, ou “distantes” até se apagarem no mundo das alternativas inexistentes.

Vem isto a propósito dos CTT. O logotipo dos CTT é um cavalo. Porque a função dos CTT já existia no século XVI, ia-se a cavalo dar o escrito de alguém para alguém, que assim garantia a sua ligação, que é como quem diz coesão. Devia ser difícil e pouco lucrativo andar meses a cavalo, mas reinos e gente precisavam de um mensageiro.

Não é preciso recuar a D. Manuel para perceber a função. Qualquer um de nós tem a memória pessoal ou coletiva dos tempos, em pleno século XX, em que os correios eram a garantia de não ser um “distante”, mesmo que o serviço chegasse de comboio ao ponto possível, sendo a distribuição da correspondência pelas várias aldeias responsabilidade de um trabalhador, a burro, ou a cavalo, o tal do logotipo.

A empresa concreta CTT teve um caminho. E o caminho, até hoje, foi um caminho de modernidade, uma empresa que no início do republicanismo passou a ter autonomia administrativa e financeira, com a sigla que dura há 102 anos, o símbolo que vem atravessando gerações, acontecimento que tem a ver com identidade e com a identificação imediata, por parte dos cidadãos, do substrato atrás do cavalo: o tal do serviço que assegura que o que é importante para mim, por exemplo, chega onde estiver o meu alguém, mesmo que o meu alguém viva no cimo de uma serra em lugar distante e, portanto e afinal, próximo. A coesão é isto e não vale a pena andar a gritar pela pátria e por 1640 se não se tem uma ideia material e interiorizada do que é a proximidade uns dos outros feita em garantia prestada por um serviço público. Por isso mesmo, os CTT passaram a ser uma empresa pública em 1969, no tal caminho de modernidade que deve percorrer um serviço destes e, em 1992, passaram a ser uma sociedade anónima. Para quem anda com a pátria na boca, são os CTT, correios de Portugal. São nossos e devem continuar a ser de todos nós, públicos, mesmo que não se desse o caso de gerarem, como geram, lucro para o Estado. São nossos e devem continuar a ser nossos, públicos, mesmo que um patriota aflito invoque o memorando da troica, caso em que à falta de argumentos mais profundos basta explicar que já ultrapassámos a “meta” estabelecida para o encaixe financeiro com as privatizações.

Não podemos dizer “nim” a uma decisão conjuntural de privatização que lança à lógica do lucro a empresa que presta serviços como correio normal, correio azul, correio verde, correio registado simples, correio registado em mão, correio registado pessoal, entre tantos outros.

Não podemos dizer “nim” ao encaixe financeiro momentâneo de milhões, que será perdido em décadas, mas que significa rasgar um elemento estratégico de coesão nacional.

Não podemos dizer “nim” e arriscar que um único reformado que seja habitante de uma aldeia montanhosa veja desaparecer, e anunciado a centenas de quilómetros, o cavalo de 2013 que assegurava que ia ali receber a sua pensão, porque numa comunidade não há “distantes”.

Nem um.

Antes que os inventem e a palavra passe a “esquecidos”, é preciso dizer não à privatização. Não ao retrocesso. Não à diluição: à nossa.

 No P3

Pântano

 

É esta a palavra que qualifica o estado da arte: um pântano.

O pântano começa por ser-se governado por quem não tem uma única ideia acerca do país para o qual a sua ação, numa situação normal, devia dirigir-se.

Qualquer um que se dê ao trabalho de falar com os seus vizinhos verifica que não há perceção por parte das pessoas de que existe um discurso governativo (que corresponde a uma política) que lhes seja dirigido.

O pântano começa e alarga-se, nas medidas desconexas, na forma e na dissimulação.

Ninguém sabe qual possa ser a remota semelhança entre o Passos Coelho que assumia o memorando como seu, querendo ir, como foi, além dele, e o Passos Coelho que incumpriu todas as suas promessas eleitorais e que vai adornando o seu passo com mensagens descontinuadas e incompatíveis.

Ninguém percebe que se fale num novo resgate, num programa cautelar e em programa algum na mesma sala, isto é, através de várias faces do Governo, consoante a circunstância que os estrategas de comunicação lá assinalem.

Ninguém percebe – porque propositadamente é-se pântano e quer-se incutir o pântano – o que seja então o programa cautelar. Em que é que consiste? Do que se trata? A não-informação é a arma dos vazios e estamos à mercê de gente vazia que encontra de vez em vez uma “reforma do estado” para discutir em passa-culpas.

Ninguém percebe como é possível o PM apresentar-se com um discurso vitorioso à conta de uns sinalitos que, por acaso, se referem à procura interna, a tal que foi esmagada, também, pela supressão de salários e de pensões, repostos pelo inimigo: o Tribunal Constitucional (TC).

Ninguém percebe que acabada a intervenção da troica – o que se resume a uma data – se dê a data por vitória e se ignore a destruição de um país como derrota.

Ninguém percebe que se insista em culpar o TC, que não inconstitucionalizou 80% da austeridade, que se insista na demissão da defesa desse órgão de soberania, do povo, perante desplantes que veem de conselheiros de estado, de Barroso, do FMI, de Braga de Macedo, este em campanha internacional de calúnia acerca do nosso sistema democrático.

Ninguém percebe o que significa um programa retroativamente visto como “mal calibrado” à conta de uma mentira descarada, essa de o PM não saber, então, qual era o défice previsto para 2010, sim, mentira descarada, basta consultar os dados oficiais de então.

Ninguém percebe que Passos e Portas não tenham uma única palavra sobre o desemprego, a emigração, a fome, a miséria, o endividamento privado, as hipotecas diárias, a Europa.

Ninguém percebe que a dupla laranja e azul façam por não perceber, ofendam com a sua alegada vitória, ignorem com omissões discursivas para agrado dos mercados, que fiquem espantados com declarações de topo do FMI, sim, “espantados”, que anunciem cada machadada na vida dos mais fracos com um sorriso promissor, que virem as costas a um modelo de país subdesenvolvido, esse onde os milionários e multimilionários melhoram de vida e os restantes caem no chão.

Ninguém percebe que se chame “reforma do estado” à chocante proposta de revisão do IRC: eis o plano em que se joga o passa-culpas do “não dialogas”.

Ninguém percebe se Portas está governar ou a gerir os danos do CDS nas próximas eleições.

Ninguém percebe a indiferença de Passos relativamente ao descolar da base de apoio do seu Partido.

Toda a gente percebe que mais uma avaliação acabe com nota positivista. Acabaram todas, apesar de nenhuma meta atingida, porque o critério para o aluno é a promessa de cortes. Isto é: a promessa da nossa rutura enquanto sociedade à conta do não abandono do pano da experiência laboratorial em curso.

Toda a gente percebe que nestes anos de direita não houve um único momento cheio daquilo que mata um pântano: chama-se autenticidade.

 

 

A vergonha e o obscurantismo votados hoje no Parlamento Europeu

Podemos ver aqui a intervenção corajosa da Deputada Edite Estrela após a votação do texto alternativo ao seu relatório, o texto exigido pelos extremistas.

Hoje, a europa retrocedeu.

Já tinha explicado aqui de que relatório se tratava: um relatório aprovado na comissão competente sobre saúde sexual e reprodutiva, tema central e já abordado pela UE, como é evidente.

O que Edite Estrela passou nos últimos tempos à conta do chamado “relatório estrela” é indizível: a malta de sempre organiza-se assim que escuta “sexual” ou “reprodutivos” e toca de fazer uma campanha de desinformação (e insulto), quer institucionalmente quer com o bombardeamento da caixa de mails de Edite Estrela com mensagens de acusação, ameaças veladas, a uma “abortista” que queria – dizem – que os alunos aprendessem logo aos zero aninhos até aos quatro a mastrurbarem-se.

A multidão de documentos que a malta de sempre  – como os nossos conhecidos federados pela vida ou grupos religiosos extremistas – fez circular com mentiras acerca do conteúdo do relatório Estrela foi eficaz.

Até o atento padre Vaz Pinto exigiu por mail à deputada que não fosse levado a cabo aquele “golpe de estado” e, tal como aconteceu com a coadoção pela voz de outro padre , exigiu que a discussão fosse “pública”

(Há muita igreja que ainda não se apercebeu que as discussões parlamentares, aqui e na UE, são públicas).

A verdade é que o movimento contra uma proposta de resolução do PE , assente do relatório Estrela teve aquele efeito que dignifica os políticos: gente como Paulo Rangel, temendo pelo seu eleitorado, ou parte dele, finge que nunca houve um relatório como este e vai na onda.

Toca de escrever uma coisita alternativa ao texto em causa que agrade aquela gente, gente razoável, preocupada com o aborto clandestino, certamente dormindo mal com efeito da crise no acesso em condições de igualdade aos meios que asseguram direitos reprodutivos, gente que dorme mal com a análise de coisas destas, gente que escrevendo coisas como  “You (a Edite Estrela) are the woman the most despicable the humanity has created ! Go to hell!” faz a cama da maioria dos deputados  num parlamento europeu.

E como eles se deitam nela.

Hoje expulsaram-me da europa dos direitos humanos.

Ou eles são intermitentes?

A Ministra sumária

A Ministra da Justiça (MJ) quer uma justiça célere, quer uma justiça que idealizou, como sempre diz, ao longo de vários anos.

Acontece que a MJ tem um problema: a sua vontade esbarra amiúde com a CRP, com princípios elementares nela inscritos, com adquiridos civilizacionais que nada têm de velharias, mas sim de modernidade.

Foi assim com a sua batalha, não pelo enriquecimento ilícito, que pode ter este ou outro nome, mas pelo desenho particular do tipo de crime que a Ministra queria ver consagrado. Porque isto de apregoar-se “contra o enriquecimento ilícito” é bonito, soa bem, é popular, mas dá à oposição e ao TC o ónus de resistir firme contra uma proposta concreta violadora da lei fundamental.

A luta, desde logo na primeira comissão, foi grande,  mas a direita curvou as costas ao ideal legislativo da ministra e fez aprovar um tipo penal inconstitucional.

Tínhamos razão.

Sem surpresa, para quem estivesse dentro do assunto, o acórdão nº 179/2012 do TC pronunciou-se, a pedido do PR – não foi necessária, por um critério de evidência, a intervenção sucessiva dos deputados – pela inconstitucionalidade da alteração ao Código Penal por violação das normas constantes dos artigos 18.º, n.º 2, (proporcionalidade) 29.º, n.º 1, (um dos princípios essenciais da aplicação da lei criminal) e 32.º, n.º 2, (presunção de inocência e garantias de defesa do arguido) da CRP.

A ministra sumária quer apresentar resultados sumários, ainda que com sacrifício de direitos dos arguidos: sempre são mais casos resolvidos no final do ano e este governo precisa de boas estatísticas.

Daí que a ministra sumária acredite, também, numa lógica do “está visto, está visto”, com o apoio de todos os deputados da maioria, na consagração de um aborto jurídico-constitucional:

uma alteração da lei processual penal em 2013 que permite a sujeição a julgamento em processo sumário de arguidos da prática de crimes com pena abstratamente superior a cinco anos de prisão. Para se perceber melhor, trata-se de permitir o julgamento de crimes puníveis com a pena máxima prevista no nosso ordenamento jurídico através de tribunal singular, através de processo sumário, oferecendo ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa, como salientou já o TC.

Como todos os juristas (e não só) sabem a forma de processo sumário corresponde a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.

Assim seria, portanto, nos casos de flagrante delito de um crime com uma pena abstratamente aplicável de vinte e tal anos: indiferente, porque “está visto, está visto”.

Em fiscalização concreta, pela terceira vez (acórdão 828/2013), o TC julgou inconstitucional esta coisa. E insistiu no que de resto já era jurisprudência conhecida:

6. Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). E por razões inerentes à própria orgânica judiciária, o tribunal singular será normalmente constituído por um juiz em início de carreira com menor experiência profissional, o que poderá potenciar uma menor qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar à intervenção de um órgão colegial presidido por um juiz de círculo.”

Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente”

“E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa”

Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215º e 218º do CPP).

 A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.»

Pergunta-se:

1. A Ministra sumária não sabia estas coisas?

2. Sabendo a Ministra que sem nos mexermos (PR; deputados; PJ) o TC, pode, ao fim de 3 casos, querendo, iniciar um processo de fiscalização abstrata (isto é, que vise ter efeitos gerais e não só em 3 casos concretos), vai insistir na sua alteração legislativa impecável?

 

Seja como for, Senhora Ministra: o flagrante é seu.

 

 

 

 

 

 

 

Honrar Mandela por inteiro: da posição portuguesa

O pai da pátria sul-africana que conhecemos hoje não nasceu como político, lutador e líder da resistência no dia em que acabaram os conhecidos 27 anos de prisão. Honrar Mandela apenas “a partir da sua libertação”, sublinhando a opção pessoal e política pela conciliação nacional sem vingança histórica, é trair Mandela e a Política.

A ação extraordinária de Mandela, quer em grandes negociações, quer em opções simbólicas de enorme significado e de genuína capacidade de perdão interior, sem o qual não haveria a respetiva exteriorização, não pode ser elevada a um Mandela “do depois”, um santo pacifista, omitindo todo o seu passado, sem o qual não faria sentido o que foi o seu futuro e que tem de ser enaltecido. Tem de ser posto na palavra “exemplaridade”.

Ao contrário das omissões presentes nos vários tributos a Mandela, ao contrário de frases que escutámos como “mas no período anterior à sua prisão não era um pacifista e houve crimes dos dois lados”, é precisamente a atitude de Mandela no contexto histórico de luta armada – o que não é terrorismo – contra o regime do apartheid, contra um sistema oficialmente racista – fundamento para a sua condenação a prisão perpétua – e a atitude de Mandela no momento histórico em que encontra e cria condições para a via da conciliação sem luta que faz deste homem um político e um homem de exceção.

Não é possível, sem incómodo, escutar vozes que recordam comovidas o momento da libertação de Mandela sem que tenham por absolutamente ilegítima a causa da sua prisão. E parece que não têm.

Não querendo aqui fazer história, mas marcar um ponto, Mandela começou o seu combate com base num princípio de não-violência. Mandela foi preso antes da condenação mais célebre sem ter cometido qualquer acto de violência. A evolução brutal de um dos regimes mais violentos do século XX deixou Mandela e os seus sem alternativa: este ponto teve a data de 1960. Resistência pelas armas.

E muito bem.

Os horrores como o massacre de Sharpeville apenas intensificam a legitimidade da via da luta armada, com Mandela como comandante-chefe, porque um regime com as características daquele é suficiente para que a referida luta seja legítima, justa, corajosa e digna de exemplo.

A apologia vazia do pacifismo esquece que quem pega nas armas arriscando tudo por um valor universal – a igualdade – não o faz para cometer crimes, fá-lo para pôr cobro a um sistema que é em si mesmo um crime contra a humanidade.

Por exemplo, quando Cavaco Silva diz que “sempre foi contra a luta armada”, e que até viu “com satisfação” que foi essa a via de Mandela, para além de proferir uma frase que me escuso de qualificar, mostra que condena a via da luta de armada que faz parte do percurso do Mandela, figura a quem adere aparentemente por inteiro mas tristemente pela metade.

Como se percebe, aderir “pela metade” é repudiar.

Cavaco, como outros, está a dizer que a oposição a regimes como o derrubado na África do Sul, de quaisquer regimes sangrentos, totalitários, seja qual for o horror em que assentem, deve ser feita, sempre, “pelo diálogo”.

Que pensa então Cavaco e outros da mesma linha da acusação subjacente à pena de prisão de Mandela? Era um terrorista ilegítimo em luta com um exército e uma polícia encarregues de apagar em todas as dimensões uma população maculada pela cor da pele?

É irónico que Mandela tenha demorado a enveredar pela luta armada, que até tenha “dialogado”, e, mesmos nesses tempos, preso.

A resolução da ONU de 20 de Novembro de 1987, contra a qual votaram os EUA, o RU e Portugal, condensa o direito internacional certo que qualquer país tem de aceitar em todos os pontos, inclusivamente naquele que apoia o uso de meios armados se necessários até que o regime em causa ponha termo à verdadeira violação do direito internacional.

Não iliba, pois, em nada, nem um Reagan, nem uma Thatcher, nem Cavaco, que, concretamente neste último caso, tenha usado da diplomacia para, no mesmo dia, aquando da votação da resolução G (a outra era a A), votar a favor, constando da mesma a “libertação imediata e incondicional de Nelson Mandela a todos os outros prisioneiros políticos”, sem outros considerandos.

Pelo contrário, piora a explicação. Melhor seria que Cavaco e João de Deus Pinheiro assumissem que a votação foi a possível tendo em conta uma ponderação entre o caso a questão dos portugueses residentes naquele regime miserável. Nunca aderiria a esta explicação, mas sempre seria dar a cara por uma diplomacia de interesses e não de valores.

É simples: Portugal, os EUA e o RU ficaram isolados ao não aceitarem que um texto que exige a libertação de Mandela tem de ter uma narrativa que denuncie quem cometeu o crime contra quem e a legitimidade à luz do direito internacional de uma luta, tida por ilegítima no momento da decretação de uma pena perpétua.

A não ser assim, a não ter a luta armada de Mandela e dos seus seguidores contra o exército e contra a polícia até derrubar o apartheid, em que fundamento se baseou exatamente Cavaco para pedir a libertação de Mandela?

Pois é.

Tenho Mandela como um exemplo. Quando formou uma resistência, quando fez um percurso tentativamente não violento, quando teve a coragem, em nome de um valor universal, de pegar nas armas, quando resistiu 27 anos encarcerado e quando construiu a paz sem violência, com apelo à conciliação, com capacidade interior de perdão, porque viu que era possível.

Quem defende valores universais, não pega em armas por desporto.

das homenagens a Mandela “a partir de”

a luta armada de Mandela foi absolutamente legítima. tenho por intolerável falar de Mandela “a partir da sua libertação”, momento em que iniciou uma obra de conciliação que todos tinham por impossível. não há dúvidas de que este gigante político e humano (com uma capacidade interior de perdão que não tem paralelo) deve ser recordado por isso. mas omitir o momento da sua vida que teve de ser o da luta armada contra um dos mais horrorosos regimes do seculo XX é omitir uma parte da homenagem. essa luta foi legítima e corajosa e o “fundamento” da sua prisão por 27 anos (a pena era perpétua). Mandela pegou nas armas em tempo de pegar nas armas e dialogou em tempos dessa possibilidade. que a si se deve.

 

saúde sexual e direitos reprodutivos: sim à proposta de resolução redigida por Edite Estrela e não ao obscurantismo

Estranhamente, esta excelente proposta de resolução do PE, cuja relatora é Edite Estrela, não tem merecido a devida atenção. Do que se trata é de saúde e direitos sexuais reprodutivos, pelo que convido quem quiser a ler o texto e a encontrar no mesmo alguma coisa que não deva ser tido como consensual à luz do direito internacional em geral, do direito da UE em particular e à luz do bom-senso.

Acontece que este relatório, aprovado na comissão competente, transformado em proposta de resolução, trouxe ao de cima as vozes do obscurantismo que nunca devemos menosprezar. São os de sempre. Os que divulgam o que não consta, no caso, do texto de Edite Estrela, os que sacrificam mulheres a artifícios nacionalistas e truques jurídicos, os que querem, de facto, que esta matéria não seja uma matéria.

A proposta de resolução, aprovada na comissão competente, é votada, no PE, na próxima terça-feira.

É urgente que se mobilizem todos pela aprovação de uma proposta que tem recebido, contra o obscurantismo, o apoio fortíssimo por parte de variadíssimas entidades.

Podemos ver, por exemplo aqui, a iniciativa que explica as 5 razões pelas quais se deve votar o relatório, já apelidado de “Estrela report”.

Quem lê, de boa-fé, o “Estrela report”, e os seus opositores, que começaram cedo a usar taticismos para derrubar um texto límpido, e depois lê o texto conjunto de apoios ao relatório subscrito por organizações como a European Parliamentary Forum on Population and Development, a European Humanist Federation, a ILGA-Europe, a Catholics for Choice, a Irish Family Planning Association, entre outras, não tem dúvidas.

O que julgamos por adquirido, como a necessidade de prosseguir uma política europeia em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos; em matéria de  acesso à contraceção e a serviços seguros de interrupção voluntária da gravidez; em matéria de Educação sexual abrangente e serviços destinados à juventude ; em matéria de Prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmitidas; ou em matéria de Saúde e direitos sexuais e reprodutivos e ajuda pública ao desenvolvimento, é subitamente posto em causa pelo obscurantismo, apoiado por deputados europeus como Paulo Rangel e Regina Bastos.

Sim,  subscrevem uma resolução alternativa com as mulheres mais conservadoras do PE , na qual, invocando o princípio da subsidiariedade (claro, essa fluidez que serve bem a estrategas de serviço), defendem, com a pobreza da pobreza da sua causa,  que a UE não se deve meter “neste “assunto da saúde sexual e reprodutiva.

Não?

Pois não sabia. Não sabia que pessoas como Paulo Rangel “acham” que a mortalidade materna nos vários países europeus não deve merecer a atenção da UE; não sabia que a desigualdade social e económica entre os vários países e os índices de maternidade adolescente é coisa para deixar a cada qual; não sabia que as consequências da proibição da IVG na Irlanda, na Polónia e em Malta não devessem tirar o sono aos europeus em geral; desconhecia que o elenco de países nos quais não há acesso adequado à contraceçâo moderna, que previne, também, o aborto, é apenas uma questão dos serviços de saúde de cada um; também tinha para mim que uma reflexão sobre as consequências da crise que atravessamos na matéria da saúde sexal e reprodutiva de mulheres e homens fazia parte de uma organização a que o meu país pertence, a qual, espero, faça qualquer coisa por mim se direitos fundamentais básicos um dia me forem negados.

É na próxima terça-feira.

O projeto tranqilo que seria sem dúvida aprovado tranquilamente anda a ser esmurrado pela essência da não- civilização.

Que vença quem está ao lado dos direitos humanos, os tais que puseram fim ao pensamento totalitário e à consequente imposição de um dever de desigualdade e de miséria.

Crato, as portas e as galerias do Parlamento

Isto foi exatamente assim. Como deputada, estava dentro do plenário, onde se discutia a prova-20 euros-a- ver- se-te -vais -embora. Como todos, estranhei ter visto uma fila brutal de professores desde a hora do almoço esperando o exercício do seu legítimo direito de assistir ao debate e, no entanto,  ver as bancadas quase vazias.

Feitas algumas interpelações à PAR, parece que se resolveu o problema, de repente, puf, e vai que se enchem as galerias de professores humilhados por este Crato sem cravo.

O ministro não estava, claro; estava o secretário de estado que aos costumes disse nada.

Foi interpelado sobre a destruição da escola pública, mesmo perante os relatórios altamente favoráveis à mesma, foi interpelado num dia em que se falou sobre os cortes de milhões na escola pública, tudo parte de um bolo, no qual entra o cheque-ensino, a tal da “liberdade de esolha” falhada nos países que a tentaram, foi interpelado acerca do por quê de mais uma prova aos professores que já são avaliados. Foi finalmente interpelado sobre os 20 euros, sobre o absurdo de tudo isto, sobre o evidente expediente para mais despedimentos e aos costumes disse nada. Como lhe fica bem, de resto.

Os professores manifestaram-se nas bancadas. Naturalmente, não podem fazê-lo. E devemos defender as regras de funcionamento da AR e das galerias.

Mas engana-se o CDS e o PSD: acusam sempre, como hoje o fizeram, através de apartes de vários deputados, que “aquela gente” é “organizada” pelo PCP.

Estão enganados. A ira que se apoderou das pessoas que, em dias de horror para as suas vidas, vão à casa da democracia não é comandada por ninguém.

O Governo, neste aspeto, tornou dispensável o PCP.

Apreciação parlamentar do diploma da vergonha. Ou da falta dela, Crato.

 

APRECIAÇÃO PARLAMENTAR N.º 68/XII/3.ª

 

Decreto-Lei nº 152/2013, de 4 de novembro que “Aprova o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior”, publicado no Diário da República nº 213, I Série, de 4 de novembro de 2013

 

A política do atual executivo em matéria de educação tem sido pautada por um claro e incompreensível desinvestimento na escola pública, confrontada com as restrições orçamentais transversais a todos os setores e ainda com uma inócua e, em muitos casos, prejudicial intervenção governamental no sistema e na comunidade educativa.

 

Em contraponto com esta realidade, o governo aposta no ensino privado e condições para que as escolas de ensino particular e cooperativo sejam o principal recurso para as famílias portuguesas, pelo menos no momento da escolha e da admissão nos estabelecimentos escolares.

 

Veja-se a este respeito a redução de professores no ensino público, o que contribui para a perda da resposta de qualidade do ensino. Um exemplo claro deste flagelo é o arranque do presente ano letivo, alunos confrontados com a falta de professores e de outros recursos humanos e materiais, em particular os alunos com necessidades educativas especiais.

 

A desqualificação do ensino público e a sobrevalorização do ensino particular e cooperativo fica expressa no Orçamento de Estado para o próximo ano, onde se prevê um aumento de dois milhões de euros para o ensino privado, em contraponto com a considerável redução do orçamento para o ensino público.

 

Ainda envolto nas críticas decorrentes desta discrepância orçamental, surge agora a já anunciada revisão do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, onde são criadas todas as condições para esvaziar a escola pública e para reforçar o ensino privado.

Este diploma consagra a garantia de liberdade de criação e funcionamento de estabelecimentos de ensino particular e cooperativo, independentemente da oferta pública existente na região, com o Estado a financiar a integração do aluno nesta modalidade de ensino mas eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo pagamento de outros serviços que as instituições onerem. 

 

A defesa do “cheque-ensino” que o Governo pretende aplicar como projeto-piloto, passa a ser extensível à escolarização de alunos com necessidades educativas especiais, sendo certo que os seus projetos educativos não ficam determinados pelo programa nacional para cada nível de ensino.

 

A preterição do investimento no ensino público em prol de um financiamento infundado e irrazoável no ensino particular e cooperativo merece toda a atenção, preocupação e reflexão por parte do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, pelo que urge perceber os moldes em que assenta este novo Estatuto, bem como as garantias que são dadas ao ensino público, enquanto direito constitucionalmente salvaguardado.

 

Assim, e para os efeitos do disposto na alínea c) do artigo 162.º e do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 189.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados do Partido Socialista abaixo-assinados, vêm requerer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 152/2013, de 4 de novembro que “Aprova o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior”