As eleições primárias exigidas por Seguro estão perto do fim. É hoje claro que podemos, serenamente, fazer o balanço das razões que indicam como justo vencedor António Costa. Para que tal aconteça, é necessário que socialistas e simpatizantes vão votar com memória e perspetiva.
A leitura política não se coloca no campo dos afetos. É por isso insultuoso ter por insultuoso e desleal, ou como traição, a leitura que António Costa fez do resultado das eleições europeias e dos anos de liderança de Seguro. Anos que culminaram numa clara incapacidade de capitalizar o histórico descontentamento registado para com a direita mais extremista de que tenho memória.
Aquela leitura não foi apenas de António Costa, mas de milhares de socialistas e de milhares de pessoas potencialmente votantes no PS. Basta constatar o apoio que hoje António Costa reúne para ter por absurda qualquer acusação de deslealdade. Pelo contrário, numa circunstância histórica em que avançar para o Governo é avançar para uma tarefa duríssima, o desafio de Costa foi, evidentemente, um desafio pedido e, até, exigido por muitos, a bem do país e, por isso, patriótico.
Desafiar uma liderança é um ato democrático na vida de um Partido e o desafiado, se tem cultura democrática, deve aceitar o desafio, sem vitimizações, até porque ninguém assenta o seu voto na compaixão.
Não desejei, mas temi, o fraquíssimo resultado do PS nas europeias, aquelas em que Seguro pedia uma maioria que projetasse uma maioria de governo. Temi porque ao longo de três anos não deixei de discordar de momentos que marcaram irremediavelmente o PS liderado por Seguro: em primeiro lugar, Seguro aceitou a narrativa da direita, fácil de desmontar, acerca da culpa absoluta pela crise do governo de Sócrates; em segundo lugar, Seguro não percebeu que o OE de 2012, o tal “além da Troica”, era o momento para a demarcação do PS, um OE que roubou dois subsídios aos funcionários públicos e duas reformas e pensões. Seguro optou pela estranhíssima “abstenção violenta” e perdeu o pé para criticar o Governo que não fosse na extensão e na dose. Fiz parte dos deputados do PS que impugnaram junto do TC o ataque violento aos funcionários públicos e aos reformados e pensionistas e, mesmo neste processo, relativo a milionários de 600 euros, o SG do PS (socialista, isso mesmo) demarcou-se violentamente, valendo-nos o BE, e vencemos. Hoje, os portugueses sabem que sem esse Acórdão não teriam existido os demais; em terceiro lugar, foi inútil a discussão interna acerca da primeira alteração ao código do trabalho. Qualquer socialista sabia que estava ali o primeiro passo para a desvalorização do fator trabalho, mas Seguro não se sentiu menos socialista em mais uma abstenção violenta. Lá ficou Seguro cativo numa área fulcral para a nossa família política a discutir doses; em quarto lugar, aquando da votação do tratado orçamental, a sua adesão liberal ao mesmo foi tão grande que conseguiu transformar aquela votação em disciplina de voto.
Esta leitura é política e não pessoal. Nada me move pessoalmente contra Seguro, agora com uma nova face, perigosa e desagregadora, ou um recurso, não sei: o populismo . Certo é que tudo me move a favor do PS e do país e agradeço a Costa ter respondido “presente” ao apelo de tantos, de tanta gente órfã de uma alternativa.
A direita rasgou o país. Introduziu uma dinâmica de retrocesso social. O desafio do PS é travar essa dinâmica, pôr fim ao confronto social como arma política, promovendo a coesão social. Tenho por certo que cabe ao PS, com António Costa como PM capaz de construir uma boa equipa, travar esta dinâmica de retrocesso social e reduzir as desigualdades. Travar a lógica do confronto e promover a coesão nacional. Desbloquear o crescimento sustentável e gerador de emprego. Por isso, é hoje fundamental a capacidade de mobilizar forças para repor um clima de normalidade institucional e de concertação social. Isso passa por três pontos: uma Agenda para a Década, centrada nas condições estruturais de desenvolvimento, mobilizadora do compromisso político, da concertação social estratégica e do conjunto da sociedade, assente em quatro pilares fundamentais: a valorização dos nossos recursos; a modernização do tecido empresarial e da administração pública; o investimento na cultura, ciência e educação; o reforço da coesão social; um Programa de Recuperação Económica e Social, que responda à urgência de travar a trajetória de retrocesso social e de relançamento da economia e da criação de emprego; uma nova atitude de Portugal na Europa, que defina uma estratégia de defesa dos interesses nacionais no contexto da União Europeia.
Cumprir estes objetivos obriga-nos, sem ataques pessoais, a reconhecer em António Costa uma leitura mais acertada da crise, mais experiência, uma capacidade agregadora impressionante e uma cultura de trabalho em equipa.
Memória e perspetiva, pois.