Os óculos partiram-se. Mesmo no eixo que assenta na cana do nariz. Não foi queda, nem o ter-me sentado, inadvertidamente, com eles no bolso. Limpava a lente direita quando foi um olho para cada lado. Sucumbiram a anos de uso.
Com olhos cansados, aplicados em leituras ao longo do dia, raramente suporto, agora, as lentes de contacto. E foi assim que saí de casa, pela primeira vez desde os dezasseis anos, sem o recurso a próteses.
Não recordava a carícia do ar quente na córnea, a entrada da luz solar sem reflexos. Já não sabia o que era a visão pura, sem o incómodo de corpos estranhos à fisiologia a mediá-la, no espaço alheio à domesticidade.
Descubro então como as minhas (muitas) dioptrias geraram uma peculiar percepção e modos particulares de olhar. Comentavam que, adolescente, caminhava a olhar para o solo. Sabia que esta disposição aparentemente cabisbaixa me conduziu a representações de um mundo visto de cima. Imagens de perspectivas sem pontos de fuga, traços e manchas nos pavimentos, diferenças na irregularidade das pedras da calçada. Podia ver o que havia na distância reflectido nas superfícies molhadas pela chuva, pedaços de céu nas poças de água.
Depois passei a olhar sobretudo para cima, ávida de distâncias inalcançáveis. Mas continuava a chocar com as pessoas e, aqui e além, a embater em postes. Aprendi a olhar em frente. Hoje percebi as razões do meu apelo inicial. Quando se colecciona detalhes com olhos muito míopes, sabe-se que apenas o chão que se pisa é tangível.
susana