Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Terroristas no poder?

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Quem diria, há uns meses, que a situação no Médio Oriente iria dar esta cabriola: Sharon fora de combate e o Hamas pronto a assumir o poder na Palestina. Em Israel, ainda impera a incredulidade com a dimensão da derrota da Fatah, já à mistura com ameaças de cortes de fundos europeus e americanos à Palestina. É que ninguém esquece que o Hamas nunca reconheceu o direito de Israel à existência e continua a manter uma ala de activos terroristas.
Mas a realidade é sempre difícil de descrever por chavões. Há quase 3 anos, Pacheco Pereira, numa tirada amplamente aplaudida, sentenciava: “não há ‘dirigentes moderados’ numa organização terrorista, ponto”. Hoje, tenho oportunidade de repetir ipsis verbis o que então escrevi algures: ignorar que o Hamas é muito mais do que um grupo terrorista é simplesmente fechar os olhos à complexidade dos factos. É ignorar o que até a Anti-Defamation League constata no seu site: que o Hamas gere uma intrincada rede social, com hospitais, creches, escolas e caridades diversas. É ignorar a própria génese do movimento, surgido como oposição à notoriamente corrupta entourage de Arafat e então apoiado discretamente por… Israel.
Continua a ser instrutivo recordar o livro “The Palestinian Hamas”, escrito por dois académicos israelitas, com a sua explanação das dissensões internas que têm atravessado o Hamas, sempre oscilando entre dois pólos: a brutalidade pura e dura e a procura de soluções negociadas. (Um homem como Ismail Abu Shanab era um dos rostos deste último ponto de vista. Era; até Israel o matar.) O comentário da casa editora, a Columbia University Press, esse notório ninho de simpatizantes dos terroristas, é revelador: “desde que emergiu como desafiador da OLP durante a Intifada Palestiniana, o Hamas foi associado pela percepção pública ao terror e à violência. Agora, dois especialistas israelitas mostram que, ao contrário desta imagem, o Hamas é essencialmente um movimento político e social, fornecendo extensos serviços comunitários e respondendo constantemente às realidades políticas através de negociações (…)”
Por , passadas as primeiras ondas de choque, não sei bem qual vai ser a primeira “revolução” nos comentadores do costume: concluir que se calhar Arafat até não era assim tão mau, ou descobrir que, afinal, a Democracia talvez não seja mesmo sinónimo de paz e harmonia instantâneas…

Benefícios da Aspirina B

No meio da apresentação mais importante dos últimos tempos, o projector recusa-se a colaborar com o portátil. Mudam-se os fios, mudam-se as máquinas: nada. Acabo de computador nos braços, passeando face aos dignos Clientes como uma daquelas mocinhas semi-desnudas que andam sempre de tabuleiro a tiracolo a vender charutos nos filmes de gangsters. Só mesmo se de repente apanhasse a síndroma de Tourette e desatasse a vomitar impropérios é que aquilo podia correr pior.
Neste momento acabrunhante, quando só desejo que desça das nuvens um disco voador que me leve para Urano, começo a sentir o efeito balsâmico do Aspirina B, através de um singelo pensamento: “isto agora está a parecer-me terrível. Mas mais logo hei-de escrever um post meio cómico sobre o episódio e a neura passa-me logo”.
Agora, aguardo em jubilosa esperança a última etapa deste processo terapêutico.

Bloquistas, Dadá e Salesianos

O “Acidental” resolveu associar-se à exposição “Dadá”, do Centro Georges Pompidou, através da pena de Jacinto Bettencourt. Parece que um “bloquista” o terá atacado de forma soez e imperdoável. Isto terá também a ver com um alarmante “projecto público que o seu plano holista tem para cada um de nós” (?). Vai daí, o homem tratou de fechar as suas caixas de comentários e de descobrir que a exposição “prolongada a padres salesianos resulta numa redução dramática da massa cerebral”.
Hoje, o autor, que patentemente andou mesmo nos salesianos (como eu, aliás), tratou do conveniente acto de contrição. Mas alguém me indica o caminho para os tais comentários do “bloquista” aleivoso — membro da corja que todos reconhecemos como “incapaz de viver em sociedade de forma civilizada” — capaz de provocar semelhante desvario?

Sentidos proibidos na auto-estrada da Informação

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Mesmo agora, com acesso a uma nova versão do Google, os chineses escusam de procurar informação sobre, por exemplo, o massacre de Tiananmen. A auto-censura do motor de busca mais popular do mundo tratará de fazer a vontade ao governo chinês, dificultando a entrada no país de frases ou imagens capazes de perturbar mentes mais débeis. Assim se vê a força do PCC, claro; mas também o poder de quem escolhe a informação a que temos acesso.

Parece que a culpa afinal é dele…

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Ao defender as escutas a cidadãos americanos ordenadas por Bush II, o Attorney General Alberto Gonzales citou uma longa série de exemplos de presidentes americanos que, em tempo de guerra, ordenaram a intercepção de correspondência alheia, sem esperar pelos tribunais; começando por George Washington. Para o ano, talvez se esteja a justificar o assassinato de prisioneiros, com o argumento de que o primeiro presidente também se viu envolvido nessa prática (num episódio que viria a dar origem à Guerra dos Sete Anos)…

PS: nem de propósito. Acabo de ler no DN que, a partir de 17 de Fevereiro, os “combatentes inimigos” detidos em Guantánamo podem ser condenados à pena de morte.

Toca aí o hino, mermão!

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Já devem ter visto por aí um anúncio de TV com o nosso hino por banda sonora. Uma coisa épica, cheia de bandeiras desfraldadas, de impante orgulho luso. Mas sabem a quem é que a PT, assim auto-proclamada “empresa privada que mais investe em Portugal”, foi encomendar o spot em questão? A uma agência brasileira. Depois, para dar um toque ainda mais genuíno à ode patrioteira, tratou de contratar uma produtora igualmente brasuca. Faz o que eu digo, não o que eu faço, né?

Uma pequena dose de cinismo eleitoral

Por vezes, dá jeito ser capaz de pegar nos óculos de analista e olhar para o processo eleitoral como um mercado. É que logo saltam à vista algumas evidências. Como esta: não existe aqui espaço para duas ofertas periféricas similares — uma estará sempre condenada ao insucesso. Quando surge Manuel Alegre travestido de candidato anti-partidos, exterior ao “sistema”, poético, sonhador e “cultural”, o candidato do Bloco vê-se automaticamente em sarilhos. Ainda por cima quando lhe falta massa crítica em termos de possibilidades reais de eleição; para já nem falar da vetustez e da pose de predestinado que muitos ainda imaginam como imprescindível aos “grandes estadistas”.
O eleitor, na sua crueldade utilitária, sabe que não existem moinhos de vento que cheguem para todos.

E se, de repente, um desconhecido lhe enfiar um míssil em casa? (1)

Soubemos ontem que os terroristas podem ter já deitado as mãos a mísseis de tecnologia avançada. Isto é terrível. Em breve, qualquer um de nós poderá acordar com o som de uma explosão pavorosa. E ver-se entre os escombros do que era a sua casa, entre pedaços dos seus filhos. Os culpados estarão bem longe, clamando mais uma vitória contra as “forças do mal”, indiferentes ao facto de terem apenas destruído mais uma mão-cheia de vidas inocentes.
Ficção? Nada disso: aconteceu há umas semanas, no Paquistão. Só que, ali, os mísseis não tinham sido contrabandeados da Chechénia; até talvez ostentassem as orgulhosas insígnias da USAF.

A Ciência confirma o óbvio: hoje é o dia mais deprimente do ano

O psicólogo Cliff Arnall, da universidade de Cardiff, provou cientificamente o que já nos parecia uma evidência: o dia 23 de Janeiro vai ficar marcado a vermelho no calendário como o mais abominável do ano. O esforçado cientista usou “uma fórmula elaborada” que levou em conta o mau tempo, as dívidas pós-natalícias, as resoluções de ano novo frustradas e muitas outras variáveis similares. Só se esqueceu de incluir nos seus cálculos a vitória de Aníbal Cavaco Silva; tivesse ele dado a importância devida a este factor infausto e estaria encontrado o dia mais sorumbático da década.

Iatrofobia (1)

Sala de espera de um hospital ferrugento, estreito, inadequado. Espero por alguém que há-de sair de uma pequena cirurgia. Espero agarrado a um livro, tentando desviar os olhos dos coloridos panfletos sobre a psoríase, sobre o herpes labial, sobre um bestiário inteiro de pequenas criaturas letais que por ali devem andar em barda.
Um velhinho, com ar de padre reformado, resolve combater o medo falando. E fala, para o seu acompanhante e para o mundo em geral. Começa por perorar sobre as qualidades imprevisíveis da gravidade noutros planetas. Depois, vem a extinção dos dinossauros, a tectónica de placas, o império romano e a mecânica celeste. O pior, além do tom monocórdico do monólogo, é que o pobre e assustado homem inventa metade do que diz: o meteorito que deu conta da bicharada jurássica causou a cavidade do oceano Atlântico, os continentes trocam de posições várias vezes ao milénio e a Terra cai pelo espaço mais ou menos a metade de C. Estão a nascer ali capítulos inteiros de uma alucinada história natural alternativa, um delírio febril em forma de alocução académica.
Meio acabrunhado, escondo-me num jornal gratuito. E dou de caras com uma coluna de Nuno Júdice em que ele me garante que Colombo encontrou, em vez da almejada Índia, “os Estados Unidos” — sendo depois talvez recebido pelo presidente republicano Trovão da Pradaria.
Parece-me que o mundo inteiro acordou com uma tremenda ressaca e está ainda incapaz de dizer coisa com coisa.

Em resumo

Como previsto, Cavaco ganhou mesmo à primeira volta. Mas nem assim deixa de ser uma nulidade política, incapaz de começar um discurso de vitória sem falar nas “lições de civismo” que damos não sei bem a quem (estaria à espera de tiros ou coisa que o valha?). Alegre provou o que queria: o PS fez a escolha errada. Soares afundou-se.
Francisco Louçã e Jerónimo conseguiram aguentar-se, ganhando algumas (poucas) dezenas de milhares de votos face às últimas votações nacionais dos seus partidos.
Duas alegrias pessoais: Alegre venceu claramente o antigo “pai da pátria” e Cavaco não logrou a hiper-validação do seu mandato que me deu maus sonhos durante três meses; desse fado, lá nos salvámos.
Enfim; podia ser pior. Mas não muito.

PS: Podia ser pior, podia. Talvez por ter a visão enublada por lágrimas irreprimíveis, tresli os números da CNE. Louçã desceu e muito.

A primeira volta do resto das nossas vidas

Até há uns minutos, continuava indeciso. Indeciso sobre se escreveria qualquer coisa mais sobre as eleições, claro está. Mas, depois de ver a malta do costume aos berros por uma vitória “à primeira” do seu candidato (sugerindo um discreto desespero: se não for à primeira volta, quem sabe o que poderá acontecer?) porque não poderia eu falar do meu voto?
Até podia lá ter chegado por eliminação de hipóteses. Não iria por certo votar num ancião amargo com a ingratidão do mundo. Nem noutro que tem como grande ideal de tranformação enchê-lo com resmas de estátuas a eternizar a sua figura lírica e corajosa.
Fora de cogitação ficou logo o ecrã em branco onde foram projectadas vagas e desfocadas legendas — mas em letras de tamanho impressionante — a berrar “competência”, “seriedade” e “experiência”, para alegria de uma plateia que fingia apreciar a profundidade da obra enquanto esfregava as mãos apenas por se sentir na iminência de “lá ter” um dos seus. Um candidato que nos foi vendido como sendo de “valores” e “personalidade”, mas que à primeira curva apertada da campanha mentiu, negou palavras suas e ainda atribuiu a culpa a inexistentes mentiras dos seus adversários.
O candidato que se assume como mera emanação de uma máquina partidária — despótica, divorciada do mundo e retrógrada, aliás — também só se arrisca a convencer os convertidos.
O candidato que sobra, ainda por cima, parece-me o único a merecer a eleição: pelo intelecto, pela personalidade, pela energia, pelo pensamento: informado, pragmático e idealista. E, acima de tudo, por ter o futuro pela frente. O seu partido não é certamente perfeito; até pode nem ser ainda uma organização homogénea e estável. Mas é um embrião de qualquer coisa que promete vir, nem que seja só no tempo dos meus filhos, a protagonizar novas ideias, novos sonhos, novas formas de fazer política.
É que a divisa de Aron que estes senhores adoptaram como lema — “Il faut gagner en politique, ou bien il ne faut pas en faire” — não me parece fazer qualquer sentido nas presentes circunstâncias (e quero ver com que cara estarão eles daqui a uns minutos…). Perderei hoje de certeza. Mas a história não acaba aqui.

Notícias dos dias que estão mesmo a chegar

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A BlackBerry, famosa pelos seus terminais móveis de e-mail, acaba de lançar um revolucionário leitor de e-books, capaz de bibliotropismo: o BookBerry. À primeira vista, o aparelho não tem nada de espantoso. Mas promete revolucionar a forma como nos relacionamos com a Literatura.
Baseando-se em inquéritos que são actualizados semanalmente pelo utilizador de cada BookBerry, e também no conteúdo das mensagens que ele recebe e emite, o dispositivo trata de introduzir nos textos pequenas mas úteis alterações. O vocabulário e mesmo a estrutura de cada obra é adaptada ao gosto e à literacia do usuário: maior ou menor variação lexical, vocábulos mais ou menos longos, enredo de complexidade variável, etc. No limite, até o género de cada obra pode ser adaptado. Na experiência feita, ao vivo, no lançamento do BookBerry, “O Monte dos Vendavais” foi transformado num drama homoerótico e “A Cartuxa de Parma” passou a uma intrincada Space Opera. Tudo de forma 100% user-friendly e sem prejudicar a legibilidade ou a fluidez da prosa (a Poesia está, até ver, fora das capacidades do sistema).
Por enquanto, a tecnologia inclui um bloqueio que restringe a sua acção a obras no domínio público. Mas é sabido que a BlackBerry está em negociações com alguns colossos editoriais para que nomes contemporâneos também possam beneficiar desta tecnologia espantosa. Quando chegar a Portugal, que maravilhas irá ela fazer pelos tomos de Saramago ou de Agustina, por exemplo?