Pelas cinco da tarde, quando a longa fila de carrinhos de bebé se dirige do portão do Greenwich Park para o interior do Bairro de Blackheath, uma nuvem de corvos vem colocar o negro nas margens do pequeno lago. É o mesmo negro das burcas de Hyde Park sempre em grupo e sempre seguidas por um homem discreto e silencioso mas presente. Ao mesmo tempo, no Museu da Cidade, ali paredes-meias com a Catedral de São Paulo, dois brasileiros começam a fechar o café e a arrumar as cadeiras. Mesmo ao lado, numa sala do Museu, repousa numa bancada o livro gigante com as biografias inacabadas de todos os mortos do dia 11 de Julho de 2005.
Duas semanas antes o meu filho passou durante cinco dias por aquela mesma escada da estação de King´s Cross àquela mesma hora. Foi quando frequentou a British Library à procura de elementos sobre o Marquês de Alorna (vice-rei da Índia) para a sua tese de mestrado. Embora não pareça, o sorriso do primeiro-ministro que decidiu a invasão do Iraque em função de uma mentira fabricada (armas de destruição massiva) é tão negro como os corvos de Blackheath Park. E tão negro como as burcas de Hyde Park. E como o livro do Museu da Cidade, cheio de biografias inacabadas de jovens que não queriam morrer.
Quando os dois brasileiros fecham o café e arrumam as cadeiras, quando os visitantes começam a sair, o livro dos mortos fica imóvel sobre a sua bancada na sala cheia de silêncio. Tão imóvel como os mortos que eram jovens e não queriam morrer naquela escada da estação de King´s Cross, naquela amanhã de Julho.
José do Carmo Francisco