Arquivo da Categoria: José do Carmo Francisco

Os corvos de Blackheath Park

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Pelas cinco da tarde, quando a longa fila de carrinhos de bebé se dirige do portão do Greenwich Park para o interior do Bairro de Blackheath, uma nuvem de corvos vem colocar o negro nas margens do pequeno lago. É o mesmo negro das burcas de Hyde Park sempre em grupo e sempre seguidas por um homem discreto e silencioso mas presente. Ao mesmo tempo, no Museu da Cidade, ali paredes-meias com a Catedral de São Paulo, dois brasileiros começam a fechar o café e a arrumar as cadeiras. Mesmo ao lado, numa sala do Museu, repousa numa bancada o livro gigante com as biografias inacabadas de todos os mortos do dia 11 de Julho de 2005.

Duas semanas antes o meu filho passou durante cinco dias por aquela mesma escada da estação de King´s Cross àquela mesma hora. Foi quando frequentou a British Library à procura de elementos sobre o Marquês de Alorna (vice-rei da Índia) para a sua tese de mestrado. Embora não pareça, o sorriso do primeiro-ministro que decidiu a invasão do Iraque em função de uma mentira fabricada (armas de destruição massiva) é tão negro como os corvos de Blackheath Park. E tão negro como as burcas de Hyde Park. E como o livro do Museu da Cidade, cheio de biografias inacabadas de jovens que não queriam morrer.

Quando os dois brasileiros fecham o café e arrumam as cadeiras, quando os visitantes começam a sair, o livro dos mortos fica imóvel sobre a sua bancada na sala cheia de silêncio. Tão imóvel como os mortos que eram jovens e não queriam morrer naquela escada da estação de King´s Cross, naquela amanhã de Julho.

José do Carmo Francisco

Fala do roupeiro Vítor Sério em 1997

Sou eu que tenho a chave deste espaço
Onde guardo os sonhos mais fagueiros
De quem faz desta equipa um abraço
Num mundo de caminhos traiçoeiros

Nas vitórias o vendaval é de euforia
Nas derrotas chuva de palavras feias
Custam como o duche de água fria
Ao lado das camisolas e das meias

Pela minha parte tenho a psicologia
Do resgate da sua tristeza neste lugar
Lembrando que amanhã é outro dia
E no sábado há outro jogo para jogar

Depois é um quadrado de marmelada
À espera que ele vá activar a insulina
Para que a equipa não fique cansada
E viva os sonhos fechados na cabina

José do Carmo Francisco

Um panfleto no metro

«Ja não tens desculpa», repete com insistência o panfleto que me estendem à saída da estação do Metro da Baixa-Chiado. «Vem este Verão a Lusiberia e aproveita as vantagens», insiste o panfleto. Quando me estou a recompor do choque do «tu» ostensivo (porque «Ja não tens desculpa» é um «tu» mal escondido), apanho com três erros de ortografia: Ja por Já, Lusiberia por Lusibéria e Aquatico por Aquático.

Isto anda tudo ligado – dizia o poeta Eduardo Guerra Carneiro. No domingo passado José Saramago no Diário de Notícias falava da inevitabilidade da nossa integração em Espanha. Até fala de um parlamento igual ao da Catalunha; a criatura já tinha pensado em tudo. Integrado está ele, pois tem a vida controlada pela mulher e pelos cunhados que lhe filtram os passos e as chamadas telefónicas.

Dois dias depois de dar esta polémica entrevista a João Céu e Silva, Saramago casou-se em Espanha, numa cerimónia íntima. Pois. No dia seguinte, aparece-me este «Ja não tens desculpa» sem acento no «a», a convidar-me a ir até Badajoz gozar as delícias do Parque Aquático sem acento no «a», cujo dono se chama Lusibéria sem acento no «e».

Mas não vão tão longe como Saramago, que se fixava na Ibéria; eles chamam à empresa Lusibéria. Dito de outra maneira: não diluem a Lusitânia como pretende o Nobel 98. Embora não concorde com a ideia, Lusibéria (mesmo sem acento no «e») tem muito mais lógica que Ibéria.

Depois de ter feito desaparecer do livro os nomes das pessoas que lhe contaram as histórias do «Levantado do chão», Saramago propõe o desaparecimento do país e a sua diluição na grande Espanha. Sinto-me «atirado ao chão», mas vou arranjar forças para me levantar. É caso para dizer em bom português: Safa!

José do Carmo Francisco

O mundo começa (mesmo!) nas Escadinhas do Duque

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Para quem tenha a memória de um texto meu, no Aspirina, a anunciar um livro de Alexei Bueno que estava no prelo, texto acompanhado por uma foto magnífica que o Fernando Venâncio desencantou em boa hora para o blog, aqui fica a confirmação: o livro já saiu. O título é A árvore seca, a editora chama-se Bonecos Rebeldes e o posfácio é de Gil de Carvalho.

Sem mais conversa, fica o poema «Speculum patriae» para que todos descubram uma voz poética que no Brasil, hoje ele como ontem outros, faz parte do grupo de poetas que não hesita em chamar as coisas pelos seus nomes:

Um povo feio, essencialmente feio,
Fora os meio imigrantes. Cada dia
Uma outra humilhação que se anuncia
Um saque, um roubo, sem controle ou freio.

Uma horda de imbecis, de olho no alheio,
Cuja rapina é a única mestria
Pretensamente os donos da alegria
Da esperteza, da graça e Deus no meio.

Um pátio dos milagres de devotos
De tudo, irracionais, analfabetos,
A orar, a praguejar, a cumprir votos,

À espera do que os salve, em meio a insectos
A matar-se, a banhar-se nos esgotos
Das praias sem iguais, entre os dejectos.

recolhido por José do Carmo Francisco

Um fliscorne para Laurent Filipe

A Fundação Oriente tem na Rua do Salitre os seus escritórios e os seus jardins. Uma mensagem no telemóvel alerta-me para um concerto com Laurent Filipe, acompanhado ao piano por Pedro Sarmiento. Num jardim da Fundação.

Laurent Filipe toca trompete e fliscorne, mas no programa aparece trompete e flugelhorn. Até parece que não há em Portugal palavra para este instrumento. Tivesse eu notas de cinco euros como de vezes vi o meu avô José Almeida Penas trocar a sua trompete (não o bocal, só a trompete) com o fliscorne do Vítor Freire na Filarmónica de Santa Catarina! Quando para se fazer um coreto nas festas se juntavam dois carros de bois e se colocava um estrado por cima… Um erro destes só pode ser ignorância. Ou então um certo novo-riquismo cultural de que valoriza tudo o que vem de fora.

Isso foi no passado dia 4. Agora, a 11, estava escrito que o barítono Emilien Hamel é diplomado pela Université de la Sorbonne. Como se não houvesse equivalente. Mas, para não ficar por aqui, as meninas da Fundação trouxeram a tradução das «Histórias simples» de Brahms. Como a maior parte das pessoas não sabe alemão, compreende-se. Mas já não se compreende que, depois de traduzirem «Der Schmied» por «O Ferreiro» e «Der Jager» por «O caçador», ´traduziram´ «Sommerabend» por «Summer evening» e «Sonntag» por «Sunday», finalizando alegremente com «Ständchen» transformado no portuguesíssimo termo «Serenade».

Ora bolas. A Fundação Oriente, como instituição de utilidade pública, devia preocupar-se também com a língua portuguesa. Os concertos foram óptimos, matei saudades do fliscorne. Mas…

Conversa de autocarro

«Casou-se, amparou-se»

Sabe aquele meu primo do Porto, filho do meu tio que era dos cafés? Separou-se. Eu nunca gostei da pinta dela. Só a vi uma vez, há muitos anos, ela estava à espera de bebé e só falava no médico, até parecia que o médico é que era o pai da criança. Bem, a miúda deles já tem vinte anos e aquilo não era vida para ninguém. Ela, a parva, ia todos os dias quatro vezes a casa dos pais, só fazia o que os pais lhe diziam e não deixava a minha tia ferver o leite uma vez que ela lá foi. Coitada da velhota, não deixava ferver o leite porque ela também não fervia. Ora a parvalhona. E bem parvalhona, agora descobriu-se que nem tem o nono ano mas quem a ouvisse falar até parecia um bacharel. Olhe isto é só más notícias. O meu primo, o filho da minha prima da Outra Banda, casou com um sirigaita pequenina mas que faz dele o que quer. Agora no Dia da Mãe ele passou mais tempo com ela e com a mãe dela do que com a mãe dele e era o dia da mãe. O problema já tinha começado no dia de anos do pai dele em que por acaso o irmão dela, da sirigaita, fazia anos. Então o miúdo, para mim é sempre miúdo, passou mais tempo com o cunhado do que com o pai. Já viu isto? Cunhado ao pé de pai não é nada. Pai é pai. E então um pai como ele tem, sempre pronto a ajudar, uma jóia de pessoa, o meu primo. Mas o pior é que a sirigaita já vai no segundo casamento. Uma miúda. Pois se calhar o outro, o primeiro, foi mais esperto que o meu primo e foi-se embora porque não esteve para aturar essas parvoíces. Casou com ele ou com a família dela? A sorte tanto se quer para o rapaz como para a rapariga, não acha? Já viu o azar dos meus primos? Dantes dizia-se «Casou-se, amparou-se» mas o mal é quando ficam desamparados.

José do Carmo Francisco

Os inesperados versos de Vasco Santana

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Na Livraria 1870, ali à Travessa de São José nº 1, entre o Príncipe Real e a Assembleia da República, acabo de encontrar um livro curioso. Foi publicado dias depois da morte de Vasco Santana em 13-6-1958 e o autor é Ápio Garcia. Nas suas 55 páginas pode ler-se a forma insólita como o célebre actor começou a carreira.

Estudante da Escola de Belas Artes em 1917, gostava de espreitar as peças que o seu tio Luís Galhardo escrevia e que o seu pai Henrique ensaiava. Um domingo de 1917, quando ia a caminho do Campo Pequeno para ver uma tourada com o famoso matador Belmonte, foi interceptado e levado ao Teatro Avenida no qual estava em cena a revista «O Beijo».

Vasco tinha 19 anos e o tio convenceu-o a substituir o «compére» Artur Rodrigues (doente no Hospital) com o argumento de que ele sabia o papel de cor pois tinha visto a revista muitas vezes. Apesar de transido de medo, Vasco Santana agradou e nunca mais parou. Anos depois reflectia sobre o facto de muitos milhares de pessoas afirmaram ter visto a sua estreia quando a lotação do Avenida não chegava aos mil lugares.

Aqui vão os versos que em 1947, sobre a crise do Teatro em Portugal, Vasco publicou n’O Século.

O Teatro lá por dentro
É uma coisa de monta
Mundo, inferno, centro
De actividades sem conta!

Para ter saúde o organismo
Por que anseia? Vê-se logo
Por subsídios! Altruísmo?
Qual! Exige é desafogo!

O subsídio é deprimente
Torna as almas pequeninas:
É sustentar um doente
A injecções de vitaminas!

Dêem-lhe ar e claridade!
É soltar-lhe os movimentos
Que tem logo outra expansão
Que nascem logo talentos
Da mais fresca inspiração!

No mais, o público acorre
Há espírito audaz, moderno
E o Teatro não morre
Porque o Teatro é eterno!

Há-de vencer a anemia
E com as bênçãos do céu
Ainda espero qualquer dia
Vê-lo tão gordo como eu!

recolhido por José do Carmo Francisco

«Poemas simples» de Fernando Botto Semedo

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Depois de O livro da primeira classe de 2005 e de Transparências de 2006, surgem estes Poemas simples de 2007, 30º título de Fernando Botto Semedo.

Partindo de uma epígrafe de Sebastião da Gama (1924-1952) e de uma dedicatória ao seu tio Manuel Lopes Correia Semedo (1922-1953) o poeta regista em poema a morte, a «dor disforme»:

«A minha alma é pura seiva de / toda a Primavera, e tudo canta / mesmo a dor disforme. Vejo / os pássaros agasalhando as suas / crias, para que o universo e Deus / sejam semeados por uma paz intacta / e sagrada para sempre. / O meu nome é seiva de Deus / – Escrevo, inesperadamente». Para o Poeta, se o Inverno é a morte a Primavera é a vida, impetuosa reposta às ciladas do Inverno: «Nos Invernos estão adormecidas todas / as Primaveras de todos os séculos / nos grãos de uma brancura infinita / que povoam a terra e as árvores adormecidas. / Um anjo vegetal é um anjo da guarda / de toda a vida, hoje e sempre, e / para sempre.»

Invocando dois jovens mortos do seu panteão privado, um na área da poesia, outro na área do afecto familiar, o poeta vê nas crianças ainda sem passado a chave para a principal resposta à morte:

«As crianças são irmãs do silêncio / e do amor divinos que se escondem / na seiva do tronco destas árvores infinitas / que principiaram a nascer / quando o sonho do poema / se materializou na minha alma / eterna, tão cheia de lágrimas de / um secreto sol que se propaga / pelos interstícios de todos os significados / os da verdade e da comoção do poema / das palavras que aqui se inscrevem / puras.»

Capa – Fernando Botto Semedo
Execução Gráfica – Gráfica 2000

José do Carmo Francisco

Nagashima no Príncipe Real

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Nunca se cansa de pintar todos os dias
Descobre sempre um ângulo inesperado
Regista nas telas a luz das manhãs frias
Usa com as tintas algum sangue pisado

Quando chegou para ver uma Exposição
Era em noventa e oito, o século passado
Lisboa passou a ser o lugar duma paixão
Dum homem que viajou por todo o lado

Nunca se cansa de pintar todas as cores
A cada dia ele descobre novos olhares
Não lhe chegam ao ouvido os motores
Nem estas discussões mais particulares

Nos seus olhos que não param de olhar
Há um brilho tão fugidio e emocionado
No fundo de cada quadro está o lugar
Para um neto que ainda não foi beijado

José do Carmo Francisco

«O livro da pobreza e da morte» de Rainer Maria Rilke

Escrito em Paris no ano de 1903, quando Rilke (1875-1926) preparava a monografia sobre a obra de Rodin, neste livro o autor rejeita as grandes cidades: «Porque as grandes cidades, Senhor, / estão desagregadas e perdidas; / na maior parte delas germina o pânico dos incêndios / para elas não há perdão nem alívio / e os seus pobres dias estão contados.» Coloca o campo em oposição à cidade: «Há os que são ricos e aspiram ao triunfo / mas os ricos não são ricos. / Eles não são como esses grandes pastores / que atravessam as planícies verdes e claras / seguidos da massa confusa dos seus rebanhos / como as nuvens passam no céu da manhã.» A cidade é o lugar do medo. Rilke escreve um poema que é uma oração: «faz que eu seja a voz do novo Messias / aquele que diz a palavra e que baptiza / Porque a minha voz cresceu em duas direcções / fez-se perfume e fez-se grito / E faz que ambas as vozes me acompanhem / se de novo me lançares na cidade e no medo.» A cidade não é o lugar do homem («As cidades só pensam em si próprias / e arrasam tudo na sua corrida») e nelas os sem-abrigo, que andam pela noite como mortos, esperam una voz: «E se houver ainda uma voz para os defender / faz que seja forte e persuasiva». A obra de Francisco de Assis é a resposta: «Onde está esse que dos seus bens e do seu tempo / soube tirar forças para a sua grande pobreza / para se despir das suas roupas na praça / e surgir nu diante das vestes do bispo. / Veio da luz para uma luz mais profunda / e a alegria habitava a sua cela. / E quando ele morreu, leve e sem nome / foi repartido.» Uma nova editora, uma nova colecção de poesia, um livro a descobrir em português mais de cem anos depois da sua primeira edição.

Editora – Bonecos Rebeldes
Tradução – Ana Diogo e Rui Caeiro
Prefácio – Rui Caeiro
Capa – José António Coelho

José do Carmo Francisco

«Todos nascemos benfiquistas, mas depois alguns crescem»

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O aparente absurdo do título do livro de Joel Neto (Editora A Esfera dos Livros) é mesmo aparente. Nascemos no país do delírio das «papoilas saltitantes» que envolve quase tudo e paralisa quase todos. Fundado em 1908, o Sport Lisboa e Benfica festejou o «centenário» em 2004 e quase toda a gente se calou…

Joel Neto pega no assunto pelo lado da ironia: «Era muito mais bonita a vida se todos pudéssemos viver juntos esse permanente sonho de crianças. Vamos vender o Simão por 20 milhões! Vamos ter 300 mil sócios! O Rui Costa ainda só tem 25 anos! Vamos fazer um dream team Os textos deste livro oscilam entre a memória e a crítica: «Quando hoje folheio velhos álbuns de fotografias e vejo as centenas de automóveis que nos anos 80 estacionavam na cabeceira do Municipal de Angra do Heroísmo para apitarem os golos de um Lusitânia-Angrense, não posso deixar de lamentar que essa emblemática instituição da minha cidade tenha desaparecido. O derby. Entretanto vieram os construtores civis e os empreiteiros – e nós acendemos o televisor. A seguir vieram os empresários das águas e dos pneus – e nós instalámos a televisão por cabo. Agora estão aí os investidores e os líderes dos fundos de investimento – e nós já comprámos descodificadores para os canais de acesso condicionado.» A paixão tem como alicerce os relatos: «A bola ainda mal passara o meio-campo e já o relator se punha aos gritos. Ninguém o levava a sério. O relato era diferente do jogo.»

Para o autor gostar de futebol é um contexto – uma história de vida: «abro o almanaque do centenário do Sporting e aquilo quase parece a minha biografia, contada domingo a domingo.» O futebol confunde-se com a vida: «recuperamos a infância. Uma vez por semana. É isto o futebol. Para mim. Às vezes dizem que o futebol é uma metáfora da vida. Metáfora é a pomba branca – futebol é vida.» Mas também a morte está na crónica sobre Fernando Valadão, o dirigente que levava os miúdos da Terra Chã num Volkswagen pão-de-forma encarnado, ilha fora, à chuva e ao vento: «morreu com leptospirose, doença propagada através da urina dos ratos (…) E sei que o Valentim Loureiro e o Pinto da Costa e o João Bartolomeu jamais morreriam de uma doença propagada por ratos. Eles sãos os ratos.»

José do Carmo Francisco

«A mulher que prendeu a chuva»

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«Se o amor acabasse, todas as cidades se tornariam ilegíveis» – esta é, se não estou em erro, a ideia-chave deste livro de Teolinda Gersão, que junta 14 contos nos quais o amor e a morte são a paisagem e o povoamento das cidades.

As cidades deste livro são Nova Iorque, Lisboa e Berlim; mas podem ser também Roma ou Viena, e nestas histórias a morte de alguém é sentida como a da cidade onde esse alguém vive: «No Caneiro de Alcântara abriu-se uma cratera com dez metros de profundidade. Até que se abriu um buraco no chão e te engoliu. Pouco importa que o tenham tapado depois com terra e deitado flores.» A cidade é o lugar do ciúme: o viúvo procura sinais de infidelidade, mas só encontra bilhetes simples como Senhora Rosa lave por favor as janelas da marquise. Ou o lugar da vingança: a do homem que se vinga da ingratidão da mulher e da sogra, deixando a mulher cega no meio de uma rua onde um carro irá travar mas tarde demais.

Noutro conto é a angústia que surge quando a personagem perde os óculos e, com eles, perde o horizonte visual do neto na praia, acendendo de novo as memórias dolorosas duma morte na família: uma outra criança, muitos anos antes, a arder em febre no corredor sem fim dum hospital.

O conto que dá título ao conjunto acontece num hotel de luxo quando o viajante surpreende duas empregadas da limpeza a contarem uma história de África: numa terra onde uma mulher era acusada de ter «prendido a chuva», veio um homem novo que a visitou na cabana, dormiu e «fez amor com ela», mas, depois, matou-a. E só «então começou a chover». Entre o divórcio e a morte, entre a solidão e o ciúme, só o amor pode salvar as personagens destas histórias que habitam o outro lado das cidades.

Edições Sudoeste
Capa de Henrique Cayatte e Susana Cruz

José do Carmo Francisco

A espantosa história do mancebo Darius King

Os utentes do Metro de Lisboa, para além de receberem diversos jornais gratuitos, podem também assistir àquilo a que o meu amigo Ruben Coelho chama o «telejornal dos pobres». Trata-se de uma mistura manhosa de vídeo clips, de notícias e de publicidade, pura e dura. Pois hoje a manchete desse telejornal do Metro era o facto de haver uma pessoa em Portugal, um chamado servidor do Estado, a receber uma pensão de apenas 26 euros. Custa a perceber como é possível nos dias de hoje alguém receber uma pensão de 26 euros mensais.

Lembrei-me logo da espantosa história do mancebo Darius King, um americano que nasceu em 1797. Em 1814, depois de ter participado na chamada «guerra de 1812», foi desmobilizado e saiu das fileiras. Passou à disponibilidade, como nós dizemos. Começou então a receber uma pensão. Tinha 17 anos. Em 1869, já com 72 anos, casou com uma jovem senhora que tinha nascido em 1849. Morreu 18 dias depois de ter casado. A viúva, a senhora King, recebeu do Exército americano uma pensão de viuvez até ao ano de 1938, ano em que morreu com 89 anos de idade.

A grande curiosidade desta história espantosa está em que o mancebo Darius King esteve alistado no Exército americano apenas 54 dias mas a pensão que lhe foi paga a ele (primeiro) e à viúva (depois) prolongou-se por 124 anos ou seja desde 1814 até 1938. Aqui fica a espantosa história do mancebo Darius King que serviu o Exército americano durante apenas 54 dias.

José do Carmo Francisco

Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater

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Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater
para Cláudia Cardinale em ‘Aconteceu no Oeste’

Não tive tempo para nada.

A trompete ajudou com as suas notas sincopadas a simular os meus soluços que ninguém ouviu. Nunca tinha visto um banquete de morte. Lá longe, em New Orleans, as mesas servem sempre para as refeições e para a alegria dos encontros. Aqui de nada serviu a recomendação de Brett à filha para cortar as fatias do pão muito maiores que o habitual.

Não tive tempo para nada.

Nem para as lágrimas que são a água salgada da revolta perante a injustiça da morte. Nem para perceber quem mandou matar uma família inteira. Nem para perceber porquê. Ainda era cedo. Sei agora a diferença entre a água doce do meu poço e o sal da água azul do Oceano Pacífico que está num quadro da parede da carruagem de luxo de Mr. Morton.

Não tive tempo para nada.

Afinal ainda é cedo para saber de um homem, moreno e triste, capaz de, como quem cumpre uma sentença, matar a vários assassinos depois de tocar uma melodia vagarosa numa harmónica velha, presa ao pescoço por uma corda muito mais pequena e estreita do que a outra, a utilizada para enforcar o seu irmão mais velho numa infância já distante.

Não tive tempo para nada.

Aos poucos percebi como é possível construir um sonho em miniatura. A madeira está paga, os barris cheios de pregos estão à espera. É só contar os passos e marcar o perímetro das primeiras casas de Sweetwater. A Estação e a Igreja, o Banco e o Hotel, as primeiras lojas. O sonho de Brett McBain não pode ficar adiado. A roldana do poço espera por mim. Os primeiros operários do caminho-de-ferro acabam de chegar e estão mortos de sede.

José do Carmo Francisco

Uma memória de luz ou pequena dissertação sobre a Primavera

Uma tarde estava eu na Ilha de Murano
A ver o esplendor do fogo das forjas
De onde saem peixes, relógios e cavalos
Quando me lembrei da força da terra
Não da terra propriamente dita, o planeta
Mas a terra de onde viemos e nos espera

Terá sido porque tinha estado em Burano
E no caminho vi o cemitério de Veneza
Cruzando a força das rendas das mulheres
E das redes dos pescadores dessa laguna
Com a fragilidade das flores mais secas
Sobre as pedras com as datas e os nomes

José do Carmo Francisco

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Luís Amaro – Um poeta discreto

A revista Alentejo – Terra Mãe publica-se em Évora e, no seu recente número 6, relativo ao primeiro trimestre de 2007, inclui três páginas de homenagem a Luís Amaro. Até aqui tudo bem.

A primeira página inclui um perfil biográfico: «Nascido em Aljustrel em 1923, Francisco Luís Amaro começou a escrever aos 12 anos em jornais alentejanos, veio para Lisboa no Outono de 1941 e nunca mais de lá saiu. A sua obra poética é breve mas intensa.». A segunda página reproduz a capa do volume Diário Íntimo de Luís Amaro na recente edição da Editora «& etc», além de da bibliografia total: livros, revistas e trabalhos desenvolvidos na revista Colóquio Letras. A terceira página tem uma foto de Urbano Tavares Rodrigues e o seu depoimento que começa assim: «Sou amigo do Luís Amaro desde sempre. Sempre foi um homem muito cordial, sempre disposto a ajudar alguém, de uma grande generosidade e, ao ler este livro, fiquei comovido e muito feliz.» Até aqui tudo bem, mas a partir daqui tudo mal.

É que a fotografia que acompanha este trabalho assinado por Emília Freire tem a ilustrá-lo uma fotografia de Manuel Poppe. Demorei algum tempo a descobrir de quem era a foto trocada. Tinha uma ideia, mas não tinha a certeza. Foi num exemplar do Jornal de Notícias que vi a mesma foto ao lado da coluna de opinião «O outro lado», assinada por Manuel Poppe.

Será caso para dizer: Luís Amaro é discreto, mas não ao ponto de se diluir na sombra das páginas de uma revista…

José do Carmo Francisco

Balada nocturna para Eduardina

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Na Rua dos Navegantes
Como na Horta, cidade
São as coisas importantes
Que criam maior saudade

Entre igrejas e conventos
Entre ermidas e mercados
Ficam no pó dos momentos
Os teus passos registados

Nas janelas dos solares
Na Ribeira da Conceição
Nos mais diversos lugares
Angústias em construção

Viola-da-terra, menina
Mas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Das Angústias, freguesia
Pode nascer um compasso
Com palavras de alegria
É esta canção que faço

Jardim Florêncio Terra
Num coreto silenciado
Uma voz em pé de guerra
Procura por todo o lado

Qual é o exacto lugar
Onde fica a sua canção
Será na Rua do Mar
Ou na Rua de S. João

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

José do Carmo Francisco

Escrito depois de um concerto de viola-da-terra
na Casa dos Açores

A terceira solidão de Miguel Garcia

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O herói de Alkmaar foi desterrado para Reggio Calabria. Houve quem lhe chamasse o leão de Alkmaar. Para outros, Miguel Garcia foi o herói de Alkmaar. Foi ele que no minuto 120 do jogo entre o AZ Alkmar e o Sporting marcou um golo inesperado, insólito e mágico e colocou a sua equipa na final de Taça UEFA. Por esse golo morreu o jornalista Jorge Perestrelo, com o coração despedaçado pela alegria multiplicada nas ondas da TSF.

Nunca uma derrota tinha sabido tão bem. Perder por 3-2 fora suficiente para festejar a passagem à final de uma Taça Europeia. Soube hoje que este alentejano discreto acabou desterrado para a ponta da bota italiana – Reggio Calabria. Depois da solidão no Entroncamento em 1999, depois da solidão de 2006 na selecção de esperanças, esta é a terceira solidão de Miguel Garcia. Foi como se uma borracha gigante apagasse um percurso límpido desde os primeiros tempos do Atlético de Moura, quando o tímido Iniciado do Sporting estranhava a vida turbulenta de Lisboa e só andava de Metro na companhia segura do colega Valdir.

De repente Miguel Garcia aparece substituído por um obscuro suplente no Sporting de Braga. Até Pinto da Costa (honra lhe seja feita) se referiu ao modo miserável como a imprensa desportiva fez o branqueamento da grande penalidade cometida por Simão Sabrosa sobre Miguel Garcia no recente Sporting-Benfica. Foi castigado como se a culpa fosse dele. Sofreu uma falta grave que o árbitro não assinalou e foi afastado como se fosse sua a culpa da derrota.

O herói de Alkmar leva nos olhos para o Sul de Itália a música triste da sua campina, onde as máquinas substituem os ceifeiros e quem passa nas estradas vê nas casas dos cantoneiros a apoteose da solidão.

José do Carmo Francisco

«Rua do Arsenal» de José Ferreira Marques

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Se o espaço deste romance é a Rua do Arsenal, o tempo é o tempo português dos anos 60 do século XX: «Aos novos, levava-os a guerra. Outros fugiam a salto para França. Os menos afoitos não resistiam ao encanto das luzes da capital.». Luís chega da sua terra a Lisboa olhando para os títulos de uma vitória do Benfica à porta de Santa Apolónia. Começa por descobrir os cafés: «juntou-se a uma tertúlia que abancava no Café Império, mistura de marialvas, amantes do fado, alguns estudantes e até forcados.» Cansado de ouvir na televisão a preto e branco «Adeus até ao meu regresso», participa na campanha eleitoral de 1969, mas acaba preso pela PIDE como se lê no bilhete entregue a Cecília: «O Luís foi preso. Deve estar em Caxias. Não me procure. PS – Consta que foi um Silveira do Técnico que o acusou.» Trata-se de Fernando António, o primeiro marido de Cecília. Ele simboliza o Portugal «velho» enquanto Luís surge como o Portugal «novo» ao lado de quem Cecília vai ouvir a célebre frase «Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas!». Entre dois mundos opostos, Cecília rejeita Fernando e corre para Luís na Rua do Arsenal, a rua onde se começaram a amar. A mesma rua onde foi assassinado o rei D. Carlos e o príncipe Luís Filipe em 1908 e mesmo ao lado da Câmara onde foi proclamada a República em 1910. Depois de Bichos do Mato com o olhar da guerra colonial, este Rua do Arsenal desenha em páginas vibrantes o mundo cinzento dos escritórios, dos cafés, dos estudantes e dos polícias que povoaram a Lisboa dos anos 60. Quando os homens «enchiam os bolsos de esperança» e fugiam a salto, que o medo «não matava a fome».

Editora – Palimage

José do Carmo Francisco

O esplendor da ignorância numa página da «Sábado»

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Estive no Castelo de São Jorge numa feira «alternativa» e deram-me a revista Sábado, edição de 10-5-2007, depois de ter votado num concurso para apurar a melhor fotografia do seu «stand». Até aqui tudo bem.

Depois a coisa azedou. Descobri na página 14 do caderno «Primeira escolha» um artigo de divulgação com o sugestivo título de «Um bar de poetas». Segundo a jornalista Catarina Serra Lopes, a «livraria-bar» fica junto ao elevador da Bica. Passo a citar: «Daí a criação de A Da Mariquinhas, inaugurada, com ironia, a 1 de Novembro, Dia de Finados, um dia apropriado para abrir uma livraria de poesia visto que a maioria dos poetas já morreu». Mas não se trata de ironia; é apenas ignorância. Ignorância esplendorosa, pois se atreve a vestir a capa da ironia.

O que os proprietários não sabem (nem a jornalista) é que a «comemoração de todos os fiéis defuntos» ocorre de facto em 2 de Novembro e não a 1 de Novembro. Nessa data surge outra festa, de conteúdo muito diferente – a festa de todos os santos. Trata-se de uma das festas maiores da Igreja. Chamar-lhe «Dia de Finados» é um erro crasso. No estado actual das coisas não se pode esperar que um agente cultural (ou o jornalista que o entrevista) conheçam a história da Igreja, mas aqui trata-se de uma questão de calendário civil. Qualquer agenda lhe dirá que o dia 1 de Novembro é o de Todos os Santos e não o Dia de Finados.

Que não saibam o que é o amicto, a alva, o cordão, o manípulo, a estola, a casula, o cálice, a patena, o corporal, o sanguinho, o véu, o turíbulo ou a naveta – vá que não vá. Passa. Agora chamar Dia de Finados ao Dia de Todos os Santos é mesmo o esplendor da ignorância. Ou, como dizia o Jô Soares – Esta juventude é um espanto!

José do Carmo Francisco