Uma memória de luz ou pequena dissertação sobre a Primavera

Uma tarde estava eu na Ilha de Murano
A ver o esplendor do fogo das forjas
De onde saem peixes, relógios e cavalos
Quando me lembrei da força da terra
Não da terra propriamente dita, o planeta
Mas a terra de onde viemos e nos espera

Terá sido porque tinha estado em Burano
E no caminho vi o cemitério de Veneza
Cruzando a força das rendas das mulheres
E das redes dos pescadores dessa laguna
Com a fragilidade das flores mais secas
Sobre as pedras com as datas e os nomes

José do Carmo Francisco


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Lembrei-me mais da Primavera nesse lugar
Onde a terra era tão escassa e o mar imenso
No sono dos pequenos barcos no nevoeiro
No sossego interrompido pelos navios de luxo
Que descem o Adriático ao som da música
Mais fria, pobre e triste que se pode imaginar

Lembrei-me mais do cortejo do trem do cuco
Quando as coisas mais velhas e mais feias
Enchiam todos os carros de bois em desfile
Por entre os risos dos homens de barrete
E a desaprovação das mulheres velhas à porta
Porque havia ali coisas ainda boas de servir

Lembrei-me mais das fogueiras antigas
Nessas noites de cortejo no nosso Largo
Onde o Pelourinho é memória de justiça
E os rapazes mais velhos não deixavam
Que os pequenos saltassem a fogueira
Porque tudo tem o seu tempo na vida

Lembrei-me mais da nossa primeira festa
Que era sempre no Domingo de Pascoela
No Lugar da Granja Nova onde eu ia a pé
E o primeiro arroz de ervilhas da minha avó
Com o coelho do meu avô e dos meus tios
Era comido pelos músicos à beira do rio

Lembrei-me das nossas procissões à tarde
Quando eu segurava a naveta do incenso
E o turíbulo tinha brasas da nossa lareira
Que o meu tio ia buscar sempre a correr
Porque tinha o casaco de músico para vestir
Tocava trompete e fazia falta na filarmónica

Lembrei-me mais das festas de arraial
As gasosas a subirem do poço num cesto
A frescura nada tem a ver com frigorífico
Quando o vinho tinto amolecia as cavacas
E só assim o menino que era eu as comia
A olhar o coreto rodeado de sol e de pó

Lembrei-me mais de eu ser tão pequeno
E toda a gente na família me dizia
Para me levantar cedo e eu falhava
Não sejas lapão não deixes entrar o Maio
Repreendia a minha avó todos os anos
Sem nunca me explicar esta sua fala

Lembrei-me mais de ir ao Vale de Água
Para trazer os vários ramos da Primavera
Para nós, para a Tia Velha, para a Ti Zabel
Será por isso que ainda hoje no Chiado
Há quem venda estes ramos a alto preço
E um vai logo para o meu neto em Londres

Será isso hoje a Primavera possível
Um ramo num envelope almofadado
Ingénua maneira de prolongar o tempo
Que flutua numa memória qualificada
Mas não existe na verdade no campo
Onde se vive o esplendor dos pesticidas

Afinal nem tudo se perdeu, nem tudo caiu
Como eu não percebia as falas da minha avó
O meu neto vai demorar a perceber o ramo
Que ele possa chegar ao Outono como eu
Com o fogo da Primavera no seu olhar
E uma memória de luz onde tudo continua

José do Carmo Francisco

6 thoughts on “Uma memória de luz ou pequena dissertação sobre a Primavera”

  1. Tens sorte, José do Carmo, com esse fogo no olhar, que te atiçam as forjas de Murano. Aquece-te a ele, homem!
    Já o teu neto…
    É que esse é um fogo que não se pede à vizinha. Nem se pode enviar pelo correio.

  2. Não tenho palavras, José, para te dizer o quanto gostei deste poema. Uma maravilha.

    Gostei tanto que nem sequer vou ter vergonha de te fazer uma pequena sugestão, que nada mais é do que um fruto da minha leitura (rendida). Ao ler o texto, senti um grão de areia no último verso da quinta estrofe, devido à dissonância da rima vocálica com o terceiro verso da mesma estrofe, coisa que mais não acontece em todo o poema (o meu ouvido é fodido). Tal ficaria resolvido se, por exemplo, em vez de «Porque tudo tem o seu tempo na vida», lá estivesse «Porque tudo tem na vida o seu tempo». Grande atrevimento meu, eu sei, mas olha: a intenção é genuína.

    Abraço

  3. Obrigado pela atenção e pela sugestão que não é atrevimento. Será tomada em consideração quando um dia o poema sair em livro. Um abraço!

  4. Belíssimo de melancolia. Deu-se o (a)caso de o ter lido com uma música de fundo que lhe fez brilhar a nostalgia. Muito obrigado pela partilha.

  5. QUIS ler sobre fogo, mais é o fogo que espanta gente e destroi a mata,que esquenta a terra,que chama o vento, o fogo que poe a culpa, sem encontrar culpado, me deparei com uma explendida combinação de palavras, só quem sabe entende e só quem entende que sabe que alguem vai entender escreve, não sei escrever para quem entende, só sei escrever para quem entende pouco, mas sinto algo muito importante no que escrevo a audacia de saber que sei por onde melhorar, não fugir o tema

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