Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

A senha antiportista

logabola5.gif

Não é por nada. Eu até acho o homem um grande escritor, e tenho-o dito amiúde. Mas, havendo aqui assinalado em outra celebridade literária um uso de «lenho» onde devia estar «lanho», eis que dou, em crónica de Miguel Sousa Tavares, n’«A Bola», com um também peregrino uso de «senha». O texto é já velhinho, mas actualíssimo. Ainda hoje o Porto não é amado por Lisboa e seu termo. Pois bem, lia-se na crónica de MST, e eu sublinho:

«…ou ainda um telefonema a Pinto de Sousa em que o presidente do FC Porto terá intercedido a favor de Deco e Mourinho, para que a Comissão Disciplinar da Liga suavizasse momentaneamente a sua tradicional e famosa senha antiportista — tudo isso, todos esses gravíssimos supostos indícios que…». O texto inteiro está aqui.

Caganitas? Nem mais. Só um linguista repara nelas. Mas é a verificação, bem-sucedida, duma hipótese. Um dia, prometi eu, alguém – que foi afinal um cronista célebre (e seus revisores, que «A Bola» terá) – haveria de confundir «sanha» com «senha».

A linguística, será ela afinal uma ciência muito séria?

A tempo e horas

Nova hipótese. Não há-de demorar que alguém, em vez de «ela viu-se ao espelho», grafe «ela viu-se ao espalho» (a ler como «espâlho»). Aposto uma cerveja. Eu pago-ma.

Lixo atrai lixo

No «Expresso» de hoje, um texto do crítico António Guerreiro ajuda a chamar as coisas pelos nomes. Não podemos dar o link, que é a pagar. Os negros são nossos.

«Na semana passada ficámos a saber, através de um comunicado da empresa, que João Paixão tinha sido substituído, no cargo de administrador das Publicações Dom Quixote, por Juan Mera. Por mais que o comunicado tente integrar esta substituição na vida normal da editora – pertencente ao Grupo Planeta, o maior grupo editorial de língua espanhola – há alguns indícios de que as coisas são muito menos serenas, como já tínhamos percebido com a saída, há pouco mais de dois meses, do director editorial João Rodrigues.

«O discurso das empresas, como o de cada indivíduo, tem um conteúdo latente que se manifesta como sintoma. Quando lemos, no mesmo comunicado, que o novo administrador irá prosseguir uma «programação editorial equilibrada, reconciliando as tendências do mercado com a identidade da editora, a qual tem por base autores portugueses e literatura em língua portuguesa», percebemos que uma tal afirmação é, no contexto, deslocada, e que ela só ocorre por insistência de um nó problemático: a conciliação dos interesses comerciais com a edição de livros de «literatura em língua portuguesa». E quando se diz «literatura em língua portuguesa», dever-se-ia dizer, simplesmente, «literatura», pois é toda a literatura que é banida pelos critérios comerciais, como podemos perceber pelo vasto lixo editorial que a Dom Quixote e as grandes e médias editoras produzem hoje. Para percebermos como as coisas mudaram nos últimos anos, devemos recordar que os autores portugueses que a Dom Quixote assume hoje como um fardo são os mesmos que há uns anos garantiam o sucesso comercial da editora. E, em boa verdade, já antes de a Dom Quixote ter sido comprada pelo Grupo Planeta, raros eram os autores portugueses que menos vendem (por maior que seja o seu prestígio) a entrar no catálogo da editora. Só que nessa altura as derivas comerciais ainda estavam no início, não era ainda necessário produzir tanto lixo e entrar na corrida selvagem onde só se salvam os livros que ocupam mais espaço nas livrarias, têm capas mais coloridas e cumprem a tarefa nauseabunda da mercadoria inútil, repetitiva, degradada.

«A lógica editorial, percebemos hoje perfeitamente, não é diferente da que governa a televisão e os jornais: o lixo atrai lixo e a partir de certa altura todo o circuito (edição, distribuição, comercialização) não consegue alimentar-se de outra coisa, não tem tempo nem espaço para funcionar de outra maneira. Lido nas suas manifestações sintomáticas, o comunicado da Dom Quixote diz-nos que o estado da edição em Portugal é uma calamidade, mas que a editora irá continuar, como muitas outras, a contribuir para ela. Quixotesco seria fazer o contrário; colectivamente suicida é persistir na mesma via.»

P.S. Creio que A.G. só não vê bem quando afirma «já antes de a Dom Quixote ter sido comprada pelo Grupo Planeta, raros eram os autores portugueses que menos vendem (por maior que seja o seu prestígio) a entrar no catálogo da editora». Houve, antes e depois da transacção espanhola, vários principiantes editados. O que terá faltado é o acompanhamento. O incentivo. E a convicção. Pelas razões que ele aduz, claro.

fv

Adrenalina

LisbonCastle.jpg

Ao longe, São Jorge reverberava, não era dizer de mais, a um sol raso, macio, preparando um sumiço em glória.

A tarde vogava lenta sobre a cidade. Preso na largura das avenidas, o trânsito arrastava-se de volta a casa. Nada de especial, portanto, e estas são as piores premonições.

Ele subira os andares todos do Sheraton. Lá de cima veria, finalmente, a cidade tal como sempre a quis: rendida a seus pés e aos dum castelo que se apresentaria, como jamais, soberbo.

Assim era. Ao longe, São Jorge reverberava, não era dizer de mais, a um sol raso, macio, preparando um sumiço em glória. Como se tudo tivesse sido planeado. Porque era exactamente dessas tonalidades que ele estava precisado para a reportagem de uma Lisboa radiosa e um pouco, um pouco só, nostálgica. A máquina fotográfica ao peito acabara por ser, lá em baixo na recepção, comprovadora dos melhores propósitos. Não precisara ele de entrar em complicadas razões. A sua face, contra tudo o que imaginava, devia conter aquilo que define, aos recepcionistas deste mundo, um jornalista. O quê? Precisamente isso.

No alto, o elevador levara a um lounge fofo, concorrido, fazendo tempo para o jantar. Ninguém deu pela sua entrada, e ele achava-se no direito de ser olhado, perguntado pelos barmen ao que vinha. Por força que o rosto lhe apresentava, agora, traços cosmopolitas. Dali, do lounge, passava-se a um terraço exterior, aonde se prolongavam as mesas, as bebidas, a arte de sobreviver a um fim de tarde numa cidade atlântica.

Tejo, Lisboa e o resto espraiavam-se como nunca seus olhos haviam visto. Fora necessário erguer-se este monstro sobre o lombo da cidade para dela se obter tão alargada visão. O sol baixava, está dito. Dito está também que era disso que se precisava. As primeiras fotografias foram feitas dali: de entre os convivas e seu perfume exótico.

Descobriu, depois, que teria mais largueza num extremo do mirante, em que as mesas estavam desocupadas, parecia que abandonadas, ao longo do parapeito. Fincaria os cotos nos tampos sem toalha, e isso haveria de aumentar as forças ao longo alcance das objectivas.

Olhou, aí, desta vez na vertical, a cidade que, setenta metros abaixo, se atarefava. Minutos depois, as lentes varavam as fachadas, percorriam as janelas, devassavam alguma, pouquíssima, intimidade, fixavam aqui ou além um ponto, o zoom enquadrava, a foto fazia-se. Mas não era para isso que ali viera, e sim para fixar o longínquo, o impreciso, o quase improvável, como sustentam os poetas, e também os grandes ares, as distâncias que se esfumam, as antevisões da infinitude. E tudo isso ali estava, assim houvesse quem lhe parasse o sol.

Quem tão alto subiu, subirá ainda a uma daquelas mesas. Com isso se fará, lá ao longe, um acréscimo menosprezável. Mas é a altura do coração que para o fotógrafo conta. A cidade e o mundo em derredor dão-se ainda mais rendidos a essa lente que os palmilha… E é então, sim é então que a mesa cede para diante. Coisa de milímetros, o pé nem o sente. Mas ela já se inclinou, já descontou no palmo que a separa do parapeito, e Newton diria que o abismo se aproximou. Lisboa continua a entregar-se, há um júbilo naqueles ocres, naqueles tons laranja, num cada vez mais perceptível violeta. E a mesa vai caindo, vai convidando a coluna de ar que terá de percorrer-se, o passeio que haverá de enfrentar-se, a morte estúpida como se lhe chamará. «Ao peito, mantinha-se, miraculosamente intacto, o aparelho fotográfico. Verdadeiramente espectaculares, as fotografias virão inseridas na nossa próxima edição.»

A morte, mesmo uma assim – dizem – não é dolorosa. Dando por inevitável o embate, o cérebro lança ao organismo, em décimos de segundo, um banho de adrenalina que nos precipita em indescritível euforia. (Dizem! Não corra a experimentar. Tenha juízo). Grande e sábia natureza é esta nossa, ainda mesmo ali, quando vai findar-se às portas de um hotel mundano.

Não se chegou a tanto desta vez. Nem sempre os sádicos têm sorte. Uma finíssima unha, que afiançam negra, interpôs-se entre a inclinação que na mesa vinha a descrever-se e o ponto donde não teria havido já regresso. Sentido de equilíbrio, instinto de preservação, algo foi que atalhou o avanço à morte. O pé da mesa descansava já, de novo indiferente, no ladrilho.

Dum salto, viu-se no chão. O susto, o tremor, a sensação do transitório de tudo tomaram-no por instantes. Estivera a um passo de saber como era morrer, e sem uma razão forte. A escassos metros dele, pelas mesas ocupadas, prolongava-se o saboreio do exotismo peninsular. Ninguém olhou, ninguém dera por nada. E se alguma coisa o revoltou foi isso: a certeza de que, momentos antes, ele teria desaparecido no precipício sem um oh de ninguém.

As fotografias eram espectaculares.

Este texto foi inicialmente publicado no «JL», há uns bons anos. A história é, em cada pormenor, verídica. A foto não pertence ao caso, nem é tomada sequer do Sheraton. Mas dá uma ideia.

Você também googla?

logo_sm.gif

Hoje, no DN, uma interessante coluna de Diogo Pires Aurélio sobre presente e futuro do Google e as vantagens que traz ao investigador. Que tenha sido o publicista Pires Aurélio a expor-no-lo, aí está o que faz grande bem a um simples mortal.

E você? Ainda se envergonha de reconhecer que googla?

Há uns anos, uns bons anos, uma fotografia de Vasco Pulido Valente (julgo, já não sei, que acompanhando um texto meu a seu respeito) mostrava-lhe, em cima da mesa de trabalho, o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora. Nada de especial? Nada, pois claro. O melhor estilista entre os portugueses vivos serve-se de instrumentos à mão de todos.

Não é pelos instrumentos, e sim pela inventividade, e pelo tino, que se distingue o artista.

Passeio bloguítico

Não sei se este «Perguntar não ofende» é o mesmo blogue que procurei durante tempos, e que suponho era (será ainda?) brasileiro. Mas este é português e é de partir o coco. Veja-se isto.

Mais selecto, mas igualmente fino, é um blogue que (julgo) acaba de surgir, «Não li nem quero ler», e que lembra o JPG (Recordam-se? O Leone dá boa conta da loja, mas que é feito, George?), conseguindo ser ainda mais feroz. Por exemplo, este apontamento, que não aumenta a glória de José Luís Peixoto – o autor, de resto, de algumas (outras, não li essa) rutilantes crónicas no JL.

Coisa já mais antiga, de Abril, mas com que só hoje dei, esta deliciosa história no blogue «Destaques a Amarelo». E não é, o blogue ele mesmo, uma festa para os olhos? Perguntar não ofende.

A tempo e horas:

Descubro que o autor de «Destaques a Amarelo» é o Sérgio (Aires) a quem Francisco José Viegas deve (e agradece) a «ordem» conseguida no seu blogue de textos. Ainda por cima, um tipo ordenado.

Vâjam lá!

Existem pronúncias feias? Os linguistas, gente pragmática, precatada, afirmam que não. Que – isto pelo menos – ‘feio’ não é uma categoria linguística. Mas o cidadão em mim vive num desconforto. Veja-se, por exemplo… Isso, não vamos mais longe. «Veja-se» serve bem. E para simplificar, «veja».

No Alentejo, pronunciamos «vêja». Coisa normal, já que reduzimos o ditongo para «ê». Ditongo? Qual ditongo? Pois, o de «vejo», que o padrão português pronuncia «veijo», e que se opõe a «beijo» só pela consoante inicial. Coerentemente, no Minho, ou mais alargadamente em Entre-Douro-e-Minho, o som da forma verbal «vejo» e o do substantivo «beijo» são indistinguíveis.

Mas a classe média-alta de Lisboa e Coimbra passou (possivelmente já no século XIX) a pronunciar «vâijo», tal como «cadâira». E as modificações não pararam aí, estando a citada classe na fase do «vâja». E, se bem ouço, também da «cadâra» (portanto, da «câdârâ»). Trata-se, importa lembrá-lo, de uma pronúncia originada, um dia, em bairros populares lisboetas, e que – o fenómeno é conhecido – as classes superiores recuperaram.

É feia, essa pronúncia? Tenho de confessar que não a consigo achar maviosa. Eu sei, daqui a cem anos (olá, futuro!), estamos todos a falar assim, e feias serão já outras coisas. Mas, de momento, isso cria alguns novos homófonos. E é bizarro lermos António Lobo Antunes (e os seus revisores…) a mostrar, no dedo de um fulano, um «lenho», quando, vendo bem, aí não se consegue mais que um «lanho».

Sendo assim, não é improvável que, numa repartição pública, alguém acabe por escrever (se é que não sucedeu já) «LEVANTE AQUI A SANHA». Mas, se o vir, não se assanhe você, por tão pouco.

Actualizado graças ao comentário de «sdm», que se agradece.

Aquém e além do Minho

FozDoMinho.jpg

A Foz do Minho, vista da Galiza. Ao fundo, as praias do nosso Norte, a costa de Portugal, o Mundo.

O blogue galego O Levantador de Minas, que regularmente se vem ocupando das relações culturais entre a Galiza e Portugal, faz larga referência ao nosso post sobre «Floribella», a actual novela da Sic, e as pronúncias portuguesas de «ei» e de «ou».

No fórum do Portal Galego da Língua, onde o nosso amigo Luís Magarinhos colocou o aludido post, trava-se um debate, mais ou menos esclarecido, entre galegos, brasileiros e portugueses a pretexto dele.

A sul do Minho, directa ao assunto, a Geração Rasca transcreve o post, e submete-o a comentários.

Nem de propósito: a meados de Outubro, haverá na Universidade do Porto um Encontro Luso-Galaico de Weblogs. Toda a informação aqui.

Voltaremos ao tema. Entretanto, se ficou curioso com o que diz O Levantador sobre a entrevista dada por um blogueiro do Aspirina a «La Voz de Galicia», encontra a conversa aqui em PDF.

Floribella estraga-se

floribella_hist_gr.jpg

Quando me apercebi de que «Floribella» era uma série de sucesso, o linguista em mim entrou em êxtase. Portugal inteiro poderia transformar-se num grande laboratório linguístico. Muito concretamente, podia dar-se o caso de a pronúncia nortenha de Flor levar a desacelerar processos activos na nossa fala. Quem sabe se, mesmo, inverter um ou outro.

Luciana Abreu dizia «primêiro», não «primâiro». Dizia «dôu», não «dô». Isso era um novidade em ficção televisiva nacional, decerto em personagem de relevo. Os dois ditongos «êi» e «ôu» vêm da Alta Idade Média, tendo-se formado no Noroeste peninsular acima do Douro (do «Dôuro», claro). Para sermos mais exactos: são invenções galegas puro-sangue. Foram, mais tarde, levados assim para o Brasil, onde se mantêm.

Em Portugal, os dois ditongos sofreram, em séculos recentes, transformações no Sul. Assim, «ôu» deixou de ser ditongo para passar a simples vogal, «ô». (Uma interessante hipercorrecção a Sul – as hipercorrecções são sempre reveladoras – é grafar-se «poude» para reproduzir a pronúncia «pôde»). O ditongo é ainda hoje audível acima do Mondego, mas isso cada vez menos, e aceleradamente.

O caso de «êi» foi diferente. Poderia ter-se vocalizado em «ê» (e, na realidade, nós, os alentejanos, fizemo-lo), mas o eixo Coimbra-Lisboa resolveu a coisa diferentemente, modificando o ditongo para «âi». E o processo continua, aproximando-se da pronúncia «ái». Por vezes, numa série portuguesa, não percebemos se a personagem diz «Sei», ou «Sai!». E em alguns locutores é difícil saber se os trabalhadores apresentaram «queixas», ou «caixas».

Ora, que aconteceu a Floribella, a linda mocinha de Gaia? O «êi» mantém-se-lhe. Veremos por quanto tempo ainda. (Tempo, decerto, haverá, já que os autores do script vêem jeito de, a cada episódio, evitarem cinco vezes, in extremis, o final da série. Isso diverte imenso a pequenada, que adora quiproquós, e que lhe contem, cem vezes que seja, as mesmas histórias). Mas o «ôu» de Luciana, ao fim de uns meses de ambiente meridional, já se perdeu na maioria dos casos.

É isso. Do empolgante laboratório nacional, resta o deprimente condicionamento de Luciana Abreu. A norma de Lisboa soma vitórias, e uma delas está em ecrã todas as noites.

Restam-nos os miminhos. Esses, vá lá, parecem garantidos.

«O código perdido»

1 de Setembro de 2006. Enquanto aguardo o comboio, ando pelas mesas duma livraria no hall da estação. E ali está ele, ainda, De Broncode (O código-fonte), saído em 2004, já em oitava edição. Lembro-me do meu artigo na «Única» do Expresso de 27 de Novembro daquele ano. Era – é ainda – uma história apaixonante. Aqui vai ela, novamente. Os informados informáticos que nos digam das possibilidades do invento. Nós, os leigos, continuamos subjugados.

O CÓDIGO PERDIDO

Um holandês morreu (foi assassinado?) antes de patentear a sua invenção capaz de revolucionar o mundo digital. Agora, um livro relata, em detalhe, esse misterioso invento

Philps-A'dam.jpg

Sede da Philips, em Amesterdão. Foi aí que Jan Sloot demonstrou pela primeira vez as virtudes do seu invento

Tinha todos os ingredientes de um «thriller», mas foi um caso real. Havia uma invenção digital misteriosa, quase mágica, que iria reduzir multinacionais gigantescas a escombros, fazendo incalculavelmente ricos meia-dúzia de investidores, entre eles o «número dois» da Philips. A morte, talvez o assassinato, do inventor veio em socorro da ordem mundial.

O mundo seria hoje diferente, muito diferente, se, no Verão de 1999, o holandês Jan Sloot, pacato reparador de televisões, não tivesse inesperadamente morrido. Preparava-se para depositar num notário o código-fonte de um programa fora do comum: permitia comprimir dois milhões de vezes qualquer ficheiro digital. Graças a isso, dez, mesmo vinte, filmes caberiam, inteiros, nos 126 «kapas» do «chip» dum cartão multibanco, reproduzíveis sem a mínima perda de qualidade. Assim se exprimiria a publicidade. Mas não era tamanha compressão uma impossiblidade matemática? Claro. Só que não era uma «compressão».

Sloot perdia a cabeça quando assim se falava do seu invento. Não era comprimir o que ele fazia, era codificar. Ao longo de vinte anos, sozinho no sótão, desenvolvera um sistema de cinco algoritmos (instruções para a solução de um dado problema) que funcionavam articuladamente. Num acervo de dados básicos (comparáveis a «samples» musicais numa placa de som), esses algoritmos, guiados por um código-chave, reconstituíam qualquer livro, qualquer sinfonia, qualquer filme (uma explanação técnica encontra-se em www.endlesscompression.com). Eram esses códigos-chave, de pouco mais que um kilobite cada um, que o utente descarregaria para um simples cartão. No aparelho reprodutor, uma memória de 270 «megas» (um terço de um CD virgem) mantinha em armazém tudo com que refazer, impecavelmente, O Crime do Padre Amaro, o Clair de Lune de Debussy ou o genial papel de Tom Cruise em Magnólia. Exemplos, evidentemente.

A história da invenção é relatada, com impressionante detalhe, num livro aparecido em Setembro passado, De Broncode (O Código-fonte), do jornalista holandês Eric Smit, director-adjunto da «Quote», revista mensal de negócios. O essencial era já conhecido de dois artigos seus de 2001, que haviam inspirado uma reconstituição radiofónica. O livro mereceu dezenas de recensões (cépticas, bastantes delas) na imprensa tradicional e electrónica e exaltou os ânimos em «blogues» e «sites» de discussão. Na televisão pública, dois documentários foram dedicados ao assunto (no fundo musical, alguns instrumentais dos Madredeus, banda de culto na Holanda).

A misteriosa invenção foi revelada, em 1998, a quatro ou cinco investidores. Tinham muito dinheiro, muita fé no futuro e poucos conhecimentos de computação. Eram, para Jan Sloot, os interlocutores ideais. Ele acreditava, como toda a gente, que as patentes do automóvel a água acabavam sempre na gaveta das companhias petrolíferas. Mas até a proximidade de um informático ele temia. Os princípios básicos do seu produto, asseverava, eram tão «simples» que já uma amostragem superficial constituía risco.

Pieper-Okura.jpg

Pieper assina, em 20 de Maio de 1999, no Hotel Okura, na capital holandesa, o contrato para a empresa Fifth Force, que vai impor a tecnologia de Sloot ao mundo

Dois problemas de monta tinham, ainda assim, de ser resolvidos. A invenção necessitava de uma patente. Ora, por mais que se esforçasse, Sloot, que nem terminara a escola técnica, reconhecia-se incapaz da tarefa. Qualquer ajuda alheia estava, todavia, fora de questão, e assim se arrastavam os meses. Depois, e por analfabetos que fossem em informática, os amigos investidores sabiam que só uma empresa de grande porte podia comercializar tão avançada tecnologia. E aqui, sim, impunha-se enfrentar riscos.

O único contacto sério de que dispunham era logo, também, o melhor de todos. Tratava-se de ninguém menos do que Roel Pieper, que a Philips acabara de ir buscar aos Estados Unidos, tencionando fazer dele, em breve, seu patrão máximo. Com 40 anos de idade, o «wonderboy» da electrónica fizera furor na América, ao vender uma firma, a Tandem, por três mil milhões de dólares à Compaq.

Uma primeira demonstração, feita em Amesterdão, na nova sede da Philips (cujo topo abandonou, nos anos 90, Eindhoven), deixou Roel Pieper boquiaberto. Dezasseis filmes, numa definição perfeita, revezavam-se de um instante ao outro num monitor, passando instantaneamente do meio para o princípio ou o fim. Tudo isso comandado duma pequena caixa sem partes móveis, sobretudo sem disco rígido. Pieper declarara-se imediatamente interessado e uma demonstração nos laboratórios de Eindhoven ficava aprazada.

O exacto papel de Roel Pieper no caso nunca será, talvez, totalmente esclarecido. O desinteresse dos técnicos de Eindhoven pelo invento, diz-se, foi manobra sua. O americanizado Pieper estava desiludido com a cultura burocrática da Philips, e ia em breve despedir-se. Nesse preciso momento, o destino lança-lhe no regaço a invenção do século. Dias depois de deixar a multinacional, Pieper já é patrão da Fifth Force, a empresa que vai impor a tecnologia SDCS (Sloot Digital Coding System) ao mundo inteiro. Dentro de um ano, à entrada na Bolsa, serão feitos cem milhões de dólares (78 milhões de euros). Em 2004, a empresa irá valer trezentos mil milhões. Não demora, e Bill Gates há-de felicitar-se por tratá-lo, a ele, por «Roel». De caminho, a californiana Silicon Valley ficará às moscas.

Com tal perspectiva, a desconfiança de Jan Sloot, a sua quase paranóia, conhece um apaziguamento. Pieper sabe avaliar, como nenhum outro, o génio do reparador de televisões. E só ele, Pieper, garante ao modesto inventor o que merece: tornar-se, com 50% das acções da companhia, o homem mais rico do planeta.

Sloot, Pieper e dois outros accionistas percorrem, em inícios de 1999, os Estados Unidos, deixando, de costa a costa, os gurus da Nova Economia embasbacados diante dum monitor onde se passa o impossível. E são eles, os grandes investidores, a darem cartões, a fazerem-se lembrados. Faltam ainda os bancos. Mas também os bancos irão telefonar, asseverando que alinham. Agora, e cada vez mais, Pieper pressiona Sloot. A patente tem de ser pedida rapidamente. A entrada na Bolsa está marcada. Dia e noite, Jan trabalha na patente. No momento em que a entregar no notário, mesmo em envelope fechado, receberá do banco ABN-Amro os primeiros milhões.

Pieper-Gilde.jpg

Em finais de 1999, Roel Pieper (o mais alto, à esquerda) torna-se membro-consultor dos investimentos Gilde

Faltam dois dias para a ida ao notariado, quando tudo se desmorona. Na manhã de domingo, 11 de Julho de 1999, Jan Sloot é encontrado sem vida no quintal traseiro da casa. Alarmados, os amigos acharão arrumado um sótão onde sempre reinara a desordem. Da milagrosa caixa nem sombra. Os apontamentos e as disquetes nada contêm de importante. E, sobretudo, não há rasto do código-fonte. Durante semanas, as melhores agências especializadas passam tudo a pente fino. Interrogam pessoas, investigam cofres em bancos, escavam o quintal, desmantelam o carro. Mas nada encontram. Alguém terá chegado, julgam, a tempo de apoderar-se do código.

Depois, aquela morte é demasiado oportuna para os que com ela lucram, e que não serão poucos. Custa a crer que fosse natural. Mas já é tarde quando alguém se lembra de pedir uma autópsia.

Amargurados, os accionistas, com Pieper à cabeça, põem a empresa em «hibernação», aguardando que o código-fonte, que consideram propriedade do colectivo, acabe por aparecer. Roel Pieper, que não quis colaborar no livro de Eric Smit, aceita um lugar de catedrático, continuando administrador de meia-dúzia de grandes firmas. Dos outros, tentando esquecer os biliões, foi cada um à sua vida, que é, em todo o caso, folgada.

E o mundo… O mundo tem, a cada ano que passa, capacidades de armazenamento digital mais vertiginosas. E, se for verdade (como parece que é) que as grandes invenções são feitas em simultâneo por mais de um indivíduo, haveremos, mais ano menos ano, de armazenar música e filmes à escala que Sloot prometeu. É disso que andamos mesmo precisados? Talvez não. Mas, quando isso chegar, diremos como sempre: «O que eles inventam!» E corremos às lojas a comprar.

Texto de Fernando Venâncio

«You’re a lady»

Peter-Skellern-Publicity-Photogr-288014.jpg

Possivelmente, a humanidade divide-se – também – nestes dois grupos: o daqueles que um dia ouviram «You’re a lady», cantado por Peter Skellern, e o dos que nunca o ouviram. A existência jamais será a mesma para quem escutou essa canção soberba, saída em 1972. Não vou sequer tentar explicá-lo. Se você pertence ao grupo dos que a ignoram, não será por isso inferior, ou infeliz. Mas mais não consigo dizer.

Infeliz fui eu, que me apaixonei pela peça, sem cuidar de reparar nem no título nem no intérprete. Quando finalmente quis sabê-lo, já era tarde. Imagina você o que é andar por lojas de discos e cantarolar qualquer coisa à incompetente populaça que flanca (quando flanca) o lado errado do balcão? Pois é. Andei anos nisso. Até que me sentei ao piano, com um gravador à mão. Ajudou. Não logo, mas ajudou. Um jovem empregado, aí pelos vinte e cinco anos, disse logo, ao quarto ou quinto compasso: «Isso é do Peter Skellern. Chama-se ‘You’re a lady’. Mas não temos».

Claro, tinham-se passado quase trinta anos, já nem era do tempo dele. Mas aí está, ainda se dá com alguém competente. Que fiz eu? Pois voltei para casa e googlei título e cantor (nessa altura, não havia Google propriamente dito, mas o Altavista fazia bom serviço), e a breve trecho tinha a discografia completa da faixa. Só que… no país onde procurava, nada encontrei.

Até ontem. Procurei no programa de download de mp3 (legal, pago, e nem é caro), e em minutos, nem isso, tinha uma vintena de ‘sources’. Uma bastava-me. Uma bastou-me.

Esta tarde, pus os auscultadores, saí a dar uma volta pelas cercanias, e fui feliz como uma criança.

Fotógrafo

Já o conhecíamos, ao João Camilo, como magnífico poeta. Veja-se A Ambição Sublime (Fenda, 2001). Menos conhecido, mas a merecer mais, é o ficcionista. Veja-se O Grande Frémito da Paixão (Fenda, 2002) ou a edição refundida de um livro de 1975, Retrato Breve de J.B. (Fenda, 2006), comentado por António Guerreiro no último Expresso.

Agora descobrimo-lo fotógrafo. Coimbra tem destas sortes.

O Médio Oriente redesenhado

MedioOriente-1.jpg

MedioOriente-2.jpg

O semanário holandês Vrij Nederland (Holanda Livre), órgão da resistência durante a segunda guerra mundial, hoje leitura habitual do intelectual de esquerda, publica dois mapas, concebidos, segundo se informa, pelo exército norte-americano e aparecidos inicialmente no Armed Forces Journal.

Mostra o Médio Oriente na actualidade e, em seguida, como o desejam, ou sonham, no futuro. O clou da coisa: as fronteiras étnicas. Resultado: um Curdistão, uma Jordânia maior, menores Irak, Paquistão e Turquia, e um Israel dentro dos limites de 1967.

Pequeno glossário: groot grande, vrij livre, heilig santo. A oeste da Arábia Saudita, surgiria um Heilige Islamitische Staat, um Santo Estado Islâmico. O Irak seria dividido num Irak Sunita e num Shiitistão Livre. Design your own world.

Actualização: leia-se um comentário abaixo, de Hugo Oliveira, para suplementar informação.

A boa acção do dia

TramAmsterdam.jpg

Ela veio sentar-se à minha frente, no eléctrico, em assento duplo, à janela. Era um daqueles eléctricos articulados, cinco módulos, longuíssimos, como há agora em Amsterdão. Cruzou os braços e olhou para fora. Não estava nem triste nem contente, devia ser o vulgar dela. Só nos olhávamos de relance, como bons desconhecidos. Não era nem bonita nem feia, só tinha um rosto marcado. Agruras? Sonhos fugidos? Andaria pelos quarenta.

Era o início daquela carreira, em frente da estação central, e entrava mais gente. Foi assim que outra mulher se sentou ao lado dela. Também uns quarenta feitos, nem bonita nem feia, marcada da vida, há mais disso. Quando calhava olharmo-nos, tinha um mortiço brilho, mas tinha algum.

Foi quando reparei em como as duas eram parecidas. O mesmo olhar, as mesmas fanadas cintilações. E os traços repetiam-se, pela fronte, pela boca, pelas faces. Pensei: são irmãs, encontram-se sempre neste eléctrico, nem precisam de falar-se. Só que os minutos passavam e elas ignoravam-se muito bem uma à outra.

O carro arrancou. A viagem não era longa. Eu trabalho no exacto coração da cidade, ou sou eu que o coloco lá. Mas chegou e sobrou para uma preocupação. A cada metro avançado, mais me convencia de que as duas mulheres eram aparentadas, decerto primas, mas quem sabe se irmãs, e não se conheciam. Era isso: tinham crescido juntas, mas um drama qualquer tinha-as separado, para nunca mais se encontrarem. Até àquele momento. Mas não o sabiam, as tristes. Sabê-lo, só eu.

Deveria, pois, dizer-lho? Começar por perguntar: são família? Não seria grave se o não fossem, riríamos do fantasista, e o episódio morria ali. Mas bem podia eu ter acertado, e elas encontrarem-se então, ao fim de dezenas de anos de buscas. Mana. Mana querida. Quanto tempo. Sim, quanto tempo esperei. E tudo o mais deixaria de existir: o mundo lá fora, o eléctrico, eu.

Não disse nada, nem então nem depois. Quando saí, já na segunda paragem, eu só me repetia: não disseste. E dizia-mo como um alívio. Compreendam-me bem. Tudo o que eu fosse causar, de tudo isso ficava responsável. O reencontro, as alegrias, um resto de existência sem sobressalto. Mas também, recordava-mo, todo o desestabilizar de duas vidas, os conflitos que haviam dormido, os infindáveis ajustes de contas.

Elas lá terão continuado, desconhecidas, mas livres de pesadelos. E eu não mexi no mundo. Foi, quero acreditar, uma boa acção para o dia.

«Uma guerra sem fim»

Hoje, no «Público», com o título ‘Uma guerra sem fim’, escreve Pedro Paixão um texto de exemplar formato. Algumas passagens:

«Quando, em 1948, a fundação do Estado de Israel é declarada, o país é de imediato reconhecido pelos EUA e a União Soviética e atacado, no dia seguinte, por quatro países árabes vizinhos. É nesse combate que a independência e existência de Israel se consolida. As armas para Israel são cedidas por Estaline.»

«Do lado de Israel os que sonham e combatem por um “Grande Israel” são os aliados de facto dos grupos terroristas do lado palestiniano. A possibilidade de uma paz defensável moral e politicamente depende da desistência dos colonatos e do reconhecimento de um Estado palestiniano ao lado do Estado de Israel. O povo palestiniano, particularmente através da primeira Intifada, mostrou não só ser digno como ser justo ver a sua soberania reconhecida.»

A ilusão literária

A obra do poeta José do Carmo Francisco (também jornalista, com actividade cívica no centro de Lisboa) foi estudada pelo crítico Ruy Ventura em «José do Carmo Francisco – uma aproximação», com a chancela da Mastigadores do Mundo. O próprio estudado mantém na «Gazeta das Caldas» uma crónica quinzenal. Duma delas extrai-se o que aqui segue.

Tudo começou com as histórias do meu avô em Santa Catarina ao lume nas noites frias de Inverno. O meu fascínio pela literatura começou, assim, pela literatura oral. O meu avô punha um púcaro com vinho ao lado do borralho e, com vinho quente e açúcar, não há frio que resista. Só comecei a interessar-me pela literatura enquanto tal no chamado Ciclo Preparatório com o livro de leituras «Mar Alto». Foi aí que descobri a poesia de Cesário Verde e os contos de José Loureiro Botas. Dito de outra maneira: os calceteiros lisboetas de Cesário e os pescadores vieirenses de José Loureiro Botas.

Ora acontece que, por mero acaso, descobri num livro de Vitorino Nemésio («Jornal do Observador») uma frase muito certeira que vem mesmo a calhar para esta ocasião. Repare-se na exactidão e na profundidade do juízo crítico: «A glória literária é uma ilusão. Pensar que se dura mais do que o comum dos mortais, só porque se deixou palmo e meio de livros da própria lavra na estante, é uma puerilidade, senão uma presunção! Enquanto durar a nossa língua! Pois sim…» Mais à frente e reflectindo já mais em concreto sobre a obra poética, Vitorino Nemésio adverte: «A mensagem poética é como a carta de prego levada pelo navio de que, logo à saída do porto, tivesse morrido o capitão. Meia hora depois morria o imediato… Poesia, de certo grau ou nível semiótico para cima, é comunicação estanque, código para meia dúzia de decifradores generosos».

Este texto de Vitorino Nemésio não o leio como um murro no estômago, mas como um alerta de quem já viveu muito tempo e já mastigou muito mundo. Aqui há tempos publiquei uma crónica com o título de ‘Eu comovido a Oeste’ na qual reflectia com alguma tristeza nostálgica e com alguma ironia à mistura, o facto de em tempos terem dito que eu não tinha nome para escritor, tal como já o tinham feito antes com o José Loureiro Botas e com o Tomás Ribeiro Colaço. Colocado num «blog», o texto da minha crónica mereceu um «post» de Nicolau Saião nestes termos: «Para me congratular e irmanar com JCF felicitando-o por este texto, abandono por um minuto o meu exílio voluntário e deixo aqui este apontamento referente a gentes que não querem que ele tenha nome de escritor (estatura tem-na ele e grande): considerável tempo atrás houve um fulano escrevedor que, posto perante a minha alta estima por ele, me disse esta coisa nefanda: ‘Não ponha esse indivíduo tão alto… ele nem é licenciado!’ O nome não o deixo agora por uma questão de piedade. A JCF e Ruy Ventura a estima e o apreço sempre renovados por parte de alguém que também não tem nome de escritor e mesmo assim anda contente na existência!».

Já agora, para quem tiver curiosidade em ler mais em pormenor, o nome do «blog» é Alicerces1. Vitorino Nemésio diz que a glória literária é uma ilusão. Eu ao menos, e pelo menos, tenho uma vantagem: nunca tive ilusões…

José do Carmo Francisco