1 de Setembro de 2006. Enquanto aguardo o comboio, ando pelas mesas duma livraria no hall da estação. E ali está ele, ainda, De Broncode (O código-fonte), saído em 2004, já em oitava edição. Lembro-me do meu artigo na «Única» do Expresso de 27 de Novembro daquele ano. Era – é ainda – uma história apaixonante. Aqui vai ela, novamente. Os informados informáticos que nos digam das possibilidades do invento. Nós, os leigos, continuamos subjugados.
O CÓDIGO PERDIDO
Um holandês morreu (foi assassinado?) antes de patentear a sua invenção capaz de revolucionar o mundo digital. Agora, um livro relata, em detalhe, esse misterioso invento

Sede da Philips, em Amesterdão. Foi aí que Jan Sloot demonstrou pela primeira vez as virtudes do seu invento
Tinha todos os ingredientes de um «thriller», mas foi um caso real. Havia uma invenção digital misteriosa, quase mágica, que iria reduzir multinacionais gigantescas a escombros, fazendo incalculavelmente ricos meia-dúzia de investidores, entre eles o «número dois» da Philips. A morte, talvez o assassinato, do inventor veio em socorro da ordem mundial.
O mundo seria hoje diferente, muito diferente, se, no Verão de 1999, o holandês Jan Sloot, pacato reparador de televisões, não tivesse inesperadamente morrido. Preparava-se para depositar num notário o código-fonte de um programa fora do comum: permitia comprimir dois milhões de vezes qualquer ficheiro digital. Graças a isso, dez, mesmo vinte, filmes caberiam, inteiros, nos 126 «kapas» do «chip» dum cartão multibanco, reproduzíveis sem a mínima perda de qualidade. Assim se exprimiria a publicidade. Mas não era tamanha compressão uma impossiblidade matemática? Claro. Só que não era uma «compressão».
Sloot perdia a cabeça quando assim se falava do seu invento. Não era comprimir o que ele fazia, era codificar. Ao longo de vinte anos, sozinho no sótão, desenvolvera um sistema de cinco algoritmos (instruções para a solução de um dado problema) que funcionavam articuladamente. Num acervo de dados básicos (comparáveis a «samples» musicais numa placa de som), esses algoritmos, guiados por um código-chave, reconstituíam qualquer livro, qualquer sinfonia, qualquer filme (uma explanação técnica encontra-se em www.endlesscompression.com). Eram esses códigos-chave, de pouco mais que um kilobite cada um, que o utente descarregaria para um simples cartão. No aparelho reprodutor, uma memória de 270 «megas» (um terço de um CD virgem) mantinha em armazém tudo com que refazer, impecavelmente, O Crime do Padre Amaro, o Clair de Lune de Debussy ou o genial papel de Tom Cruise em Magnólia. Exemplos, evidentemente.
A história da invenção é relatada, com impressionante detalhe, num livro aparecido em Setembro passado, De Broncode (O Código-fonte), do jornalista holandês Eric Smit, director-adjunto da «Quote», revista mensal de negócios. O essencial era já conhecido de dois artigos seus de 2001, que haviam inspirado uma reconstituição radiofónica. O livro mereceu dezenas de recensões (cépticas, bastantes delas) na imprensa tradicional e electrónica e exaltou os ânimos em «blogues» e «sites» de discussão. Na televisão pública, dois documentários foram dedicados ao assunto (no fundo musical, alguns instrumentais dos Madredeus, banda de culto na Holanda).
A misteriosa invenção foi revelada, em 1998, a quatro ou cinco investidores. Tinham muito dinheiro, muita fé no futuro e poucos conhecimentos de computação. Eram, para Jan Sloot, os interlocutores ideais. Ele acreditava, como toda a gente, que as patentes do automóvel a água acabavam sempre na gaveta das companhias petrolíferas. Mas até a proximidade de um informático ele temia. Os princípios básicos do seu produto, asseverava, eram tão «simples» que já uma amostragem superficial constituía risco.

Pieper assina, em 20 de Maio de 1999, no Hotel Okura, na capital holandesa, o contrato para a empresa Fifth Force, que vai impor a tecnologia de Sloot ao mundo
Dois problemas de monta tinham, ainda assim, de ser resolvidos. A invenção necessitava de uma patente. Ora, por mais que se esforçasse, Sloot, que nem terminara a escola técnica, reconhecia-se incapaz da tarefa. Qualquer ajuda alheia estava, todavia, fora de questão, e assim se arrastavam os meses. Depois, e por analfabetos que fossem em informática, os amigos investidores sabiam que só uma empresa de grande porte podia comercializar tão avançada tecnologia. E aqui, sim, impunha-se enfrentar riscos.
O único contacto sério de que dispunham era logo, também, o melhor de todos. Tratava-se de ninguém menos do que Roel Pieper, que a Philips acabara de ir buscar aos Estados Unidos, tencionando fazer dele, em breve, seu patrão máximo. Com 40 anos de idade, o «wonderboy» da electrónica fizera furor na América, ao vender uma firma, a Tandem, por três mil milhões de dólares à Compaq.
Uma primeira demonstração, feita em Amesterdão, na nova sede da Philips (cujo topo abandonou, nos anos 90, Eindhoven), deixou Roel Pieper boquiaberto. Dezasseis filmes, numa definição perfeita, revezavam-se de um instante ao outro num monitor, passando instantaneamente do meio para o princípio ou o fim. Tudo isso comandado duma pequena caixa sem partes móveis, sobretudo sem disco rígido. Pieper declarara-se imediatamente interessado e uma demonstração nos laboratórios de Eindhoven ficava aprazada.
O exacto papel de Roel Pieper no caso nunca será, talvez, totalmente esclarecido. O desinteresse dos técnicos de Eindhoven pelo invento, diz-se, foi manobra sua. O americanizado Pieper estava desiludido com a cultura burocrática da Philips, e ia em breve despedir-se. Nesse preciso momento, o destino lança-lhe no regaço a invenção do século. Dias depois de deixar a multinacional, Pieper já é patrão da Fifth Force, a empresa que vai impor a tecnologia SDCS (Sloot Digital Coding System) ao mundo inteiro. Dentro de um ano, à entrada na Bolsa, serão feitos cem milhões de dólares (78 milhões de euros). Em 2004, a empresa irá valer trezentos mil milhões. Não demora, e Bill Gates há-de felicitar-se por tratá-lo, a ele, por «Roel». De caminho, a californiana Silicon Valley ficará às moscas.
Com tal perspectiva, a desconfiança de Jan Sloot, a sua quase paranóia, conhece um apaziguamento. Pieper sabe avaliar, como nenhum outro, o génio do reparador de televisões. E só ele, Pieper, garante ao modesto inventor o que merece: tornar-se, com 50% das acções da companhia, o homem mais rico do planeta.
Sloot, Pieper e dois outros accionistas percorrem, em inícios de 1999, os Estados Unidos, deixando, de costa a costa, os gurus da Nova Economia embasbacados diante dum monitor onde se passa o impossível. E são eles, os grandes investidores, a darem cartões, a fazerem-se lembrados. Faltam ainda os bancos. Mas também os bancos irão telefonar, asseverando que alinham. Agora, e cada vez mais, Pieper pressiona Sloot. A patente tem de ser pedida rapidamente. A entrada na Bolsa está marcada. Dia e noite, Jan trabalha na patente. No momento em que a entregar no notário, mesmo em envelope fechado, receberá do banco ABN-Amro os primeiros milhões.

Em finais de 1999, Roel Pieper (o mais alto, à esquerda) torna-se membro-consultor dos investimentos Gilde
Faltam dois dias para a ida ao notariado, quando tudo se desmorona. Na manhã de domingo, 11 de Julho de 1999, Jan Sloot é encontrado sem vida no quintal traseiro da casa. Alarmados, os amigos acharão arrumado um sótão onde sempre reinara a desordem. Da milagrosa caixa nem sombra. Os apontamentos e as disquetes nada contêm de importante. E, sobretudo, não há rasto do código-fonte. Durante semanas, as melhores agências especializadas passam tudo a pente fino. Interrogam pessoas, investigam cofres em bancos, escavam o quintal, desmantelam o carro. Mas nada encontram. Alguém terá chegado, julgam, a tempo de apoderar-se do código.
Depois, aquela morte é demasiado oportuna para os que com ela lucram, e que não serão poucos. Custa a crer que fosse natural. Mas já é tarde quando alguém se lembra de pedir uma autópsia.
Amargurados, os accionistas, com Pieper à cabeça, põem a empresa em «hibernação», aguardando que o código-fonte, que consideram propriedade do colectivo, acabe por aparecer. Roel Pieper, que não quis colaborar no livro de Eric Smit, aceita um lugar de catedrático, continuando administrador de meia-dúzia de grandes firmas. Dos outros, tentando esquecer os biliões, foi cada um à sua vida, que é, em todo o caso, folgada.
E o mundo… O mundo tem, a cada ano que passa, capacidades de armazenamento digital mais vertiginosas. E, se for verdade (como parece que é) que as grandes invenções são feitas em simultâneo por mais de um indivíduo, haveremos, mais ano menos ano, de armazenar música e filmes à escala que Sloot prometeu. É disso que andamos mesmo precisados? Talvez não. Mas, quando isso chegar, diremos como sempre: «O que eles inventam!» E corremos às lojas a comprar.
Texto de Fernando Venâncio