Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

«A carrinha dos afectos»

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Não me lembro de aqui, alguma vez, falar do sítio onde nasci. Não tem importância. Não foi na Avenida de Roma, e pudera bem ter sido. Foi num sítio mais tranquilo, e sobretudo bem mais bonito. Fica ali em baixo, na fotografia, ali onde o Guadiana recebe a ribeira que chega da direita. (A legenda acima é para ignorar, neste caso. Mas não tenho, em carteira, vista melhor).

Nunca falei, pois, dessa terra. Mas é um prazer ver outros fazerem-no. Sobretudo quando o fazem tão bem. Foi o caso, hoje, de Fernando Madrinha, no «Expresso». Leiam. Dá gosto saber que há disto no mundo.

A CARRINHA DOS AFECTOS

Não é a primeira vez que se ouve falar de Mértola a propósito de prémios de excelência – e não só pelo extraordinário trabalho de Claúdio Torres (Prémio Pessoa 91) enquanto primeiro responsável pelo campo arqueológico. Há uns anos, a C+S de Mértola foi declarada pela OCDE “estabelecimento escolar exemplar a nível mundial”, num grupo de 24 escolas de cidades tão diferentes da pequena e bela vila de Mértola como Helsínquia, Tóquio ou Melbourne.

De um dos concelhos mais votados ao abandono e ao esquecimento, é extraordinário que cheguem com esta frequência notícias de pessoas, realidades e iniciativas exemplares. Todos sabemos que a necessidade aguça o engenho, mas isso não só não desmerece, como valoriza ainda mais o trabalho dos responsáveis por essas iniciativas. É o caso da carrinha que percorre aldeias e montes ao encontro dos velhos que os habitam, para lhes dar assistência médica e um pouco de atenção. Chega a cada uma das localidades uma vez por mês, resolve pequenos achaques, rastreia doenças mais graves e, acima de tudo, leva um pouco de humanidade a quem dela precisa e já desesperou de a encontrar.

Esse mini-consultório ambulante para todas as especialidades, em particular para os males da solidão, é uma invenção da Câmara Municipal dirigida por Jorge Pulido Valente e responde pelo nome de unidade médico-social. A autarquia decidiu candidatar o projecto a um prémio de ‘boas práticas’ instituído pela ONU. E o resultado aí está: foi a primeira candidatura portuguesa a chegar à última fase de escolha, com outras 47 finalistas de todo o mundo.

Num país onde tanta gente e tantas instituições com orçamentos de milhões se queixam da falta de meios, a carrinha de Mértola dá que pensar. Há quem tenha muito pouco mas conheça a arte de fazer escolhas acertadas e perceba o que é essencial. Para os velhos e os pobres do concelho – condições que, por todo o Alentejo, em geral se acumulam – a unidade médico-social é um milagre acontecido. Infelizmente não ganhou o prémio da ONU, o qual, sendo em dinheiro ( menos de 2500 euros…), teria a grande utilidade de permitir melhorar o serviço. E como? Isabel Soares, responsável pela carrinha dos afectos, explica na TSF: poderíamos, por exemplo, passar a visitar os habitantes mais necessitados das aldeias e dos montes de Mértola não uma, mas… duas vezes por mês. Tão pouco. E tanto.

Peixoto, o bom

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O Grande Contador de Desgraças está de novo ao ataque. Peixoto, ele, o próprio. Um excerto do seu recente, e terceiro, romance está à disposição. E é novamente terrível, e mortificante, e bom.

Depois dum segundo romance de desgraças de pacotilha (o termo é cediço, mas exacto), parece chegar-nos aí o velho José Luís Peixoto.

Preparai a recolha aos ninhos, ó harpias.

A amarga vitória da esquerda… ou talvez não?

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Jan Peter BALKENENDE e Wouter BOS

Amanhã, um destes dois homens acordará primeiro-monistro holandês. Um, o cristão-democrata Balkenende, já o é há quatro anos. O outro, o socialista Bos, deseja-o há pelo menos tanto tempo.

As sondagens dão a vitória, mesmo se renhida, aos cristãos-democratas. Eles governaram com a direita, o Partido Liberal, e não foram mansos para os pobres. Sim, neste país de 16 milhões, dez por cento anda no rendimento mínimo, mais ou menos garantido.

É sobretudo em nome dos párias que a esquerda se veio levantando. E tem, nas sondagens, um avanço espectacular. Mas… essa esquerda pode nem sequer – e mais uma vez – entrar no governo. E Wouter Bos, o líder trabalhista, morrerá, de novo, à vista da praia.

E porquê? Porque um segundo partido de esquerda, tão socialista que se chama isso mesmo, Partido Socialista, e até hoje com escassa representação parlamentar, pode bem aproximar-se da percentagem trabalhista (e até, segundo uma das sondagens, ultrapassá-la, tornando-se o segundo partido do país), mas, por isso mesmo, fazendo afastar do governo a esquerda inteira.

Dentro de três horas encerram as urnas. Restam três horas para votar útil.

Votar útil. Há-de tê-lo feito o eleitorado da direita, esquecendo liberais e até ultras, para assegurarem a Belkenende a vitória, e o lugar de primeiro-ministro. Há-de tê-lo feito a esquerda, também. Dos eleitores socialistas-socialistas aos encantadores verdes, muitos terão talvez votado Bos, para assim tirarem a direita do poder.

Não se diga que a Holanda é um país monótono, mesmo com toda esta planura sob o nível do mar.

Só mais uma coisa: os sorrisos dos senhores protagonistas. Nada que se compare com a cerimónia portuguesa. Não se está a ver, pois não, José Sócrates, Marques Mendes e Francisco Louçã, na noite anterior às eleições, num talk show televisivo, tratando-se naturalmente por tu (como quase todos aqui se tratam, no governo ou no parlamento), em distendida cavaqueira… Enfim, e não acredita você em universos paralelos.

Mas, também nestes baixos países, o poder não brinca. Primeiro-ministro, mesmo sorridente, haverá só um.

Amsterdão, já caída a noite.

Actualizado nos comentários.

Ena Pá Independentes!

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Recebi da editora Esfera dos Livros a informação de que o historiador espanhol Rafael Valladares irá a Lisboa, nos dias 23 e 24 de Novembro, «explicar como foi o reaparecimento de Portugal como país independente e, como se deu a ruptura entre Portugal e Espanha». Há uma vírgula ali perdida, mas vamos ao assunto.

O interessante, o perturbador, é que o livro – que suponho tradução do seu La Rebelión de Portugal. 1640-1680, de 1998 – tenha como título portguês A Independência de Portugal.

Num artigo, António Manuel Hespanha já o apodou de «castelhanista» e de «preconcebido». Não custa crer. Mas, à parte ter sido «A Rebelião de Portugal» um título fabuloso, o título adoptado grita, da capa, o maior disparate da nossa História según España, que é esse de chamar «Independência» à nossa Restauração. E muito bom espanhol (estará Valladares entre eles?) crê que Portugal data de 1640… Até aí esteve séculos a hesitar, vai-não-vai, a engonhar, quero ser Espanha, não quero ser Espanha, até que apanhou com um Rei espanhol, que até era legítimo cá, para só depois, tarde e a más horas, aproveitar a balbúrdia castelhana na Catalunha para – pumba, catrapuz! – defenestrar um fulano e proclamar a… Independência.

Como cidadão, protesto, ó nobre Esfera dos Livros.

O jovem que sobe à capital

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Impagável, a crónica de VPV hoje no Público, «Cavaco e Sócrates». É mais um daqueles paralelos arrepiantes que ele constrói com malvadez, embora este não arrepie tanto como o que ele fez, um dia, entre Cavaco e Eanes, e muito menos ainda do que aquele que traçou entre Cavaco e…Salazar.

Leia-se. Aqui vai o início do texto:

«O dr. Cavaco e o eng.º Sócrates são de certa maneira muito parecidos. Saíram os dois de um obscuro canto da província (um de Boliqueime, o outro da Beira) e em Lisboa, no Governo e, no caso de Cavaco, até em Belém, nunca verdadeiramente se adaptaram à cultura urbana. Vem neles sempre à superfície o constrangimento do estranho, uma certa reserva de quem não está em casa e uma atávica desconfiança da volubilidade e das maneiras de uma classe média e de uma burguesia com uma educação mais sofisticada e cosmopolita. Não “pertencem”. Mas, por isso mesmo, têm uma enorme vontade de poder, servida por uma enorme paciência e disciplina. É a velha história, que encheu dois séculos de literatura, do jovem que sobe à capital para a dominar, na sua variante moderna e portuguesa».

O resto é melhor ainda.

PS. A – encantadora – ilustração foi tirada de Imagens do Kaos graças aos bons serviços do Google Imagens.

A voz

Nas carruagens do metropolitano de certa cidade europeia, sai dos altifalantes, já desde há muitos anos, uma voz de homem, timbrada, envolvente, daquelas que transmitem tranquilidade (muito práticas em documentários), daquelas que inspiram confiança (muito práticas em anúncios de seguradoras). Mas pouca gente sabe – e é bom que assim seja – que o dono daquela voz… já não está no mundo dos vivos.

Arrepiante? Não. Pelo contrário, há aqui – como diríamos – certa mensagem de perenidade. De que o fim, parecendo-o, nunca é bem o fim.

Pessoalmente, isto toca-me. Existem centenas, talvez milhares de portugueses, que me ouvem, a mim, nos seus carros, quando querem saber o caminho mais exacto de A para B. Figuro ali, é verdade, com outro nome. Mas isso não muda nada. Mesmo com o meu nome próprio, eu ser-lhes-ia um desconhecido. Espero, sim, que a voz inspire confiança, e, já agora, transmita tranquilidade.

E também isto, bom, também isto me faz pensar no futuro. Um futuro que eu, ainda assim, desejo, se me permitem, um tanto distante.

Ena, ena!

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O Luis, e com ele o Aspirina, ascendeu ao «Diz-se», no Espaço público do «Público». Assim:

“Seria simpático que Santana, como qualquer cadáver político que se preze, se dedicasse mais à decomposição e menos à composição destas rábulas grotescas.”
Luís Rainha

aspirinab.weblog.com.pt, 14-11-06

Nem mais.
Nem menos.

Apressa-te lentamente

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Atravessará Portugal um período de democracia musculada? Não nos vamos tornando, cada dia que passa, um pouco mais críticos da discriminação positiva? Acabará Salazar entre os dez «maiores portugueses», convertido em déspota esclarecido? Não se sentiu você já paralisado numa dupla fidelidade? Enfim, não se escreveu aqui, no Aspirina, que o melhor do Gonçalo M. Tavares era um desleixo estudado?

Sempre os paradoxos me fascinaram. Sobretudo esses assim, apertadamente semânticos. Eles causam, um por um, um curto-circuito mental, uma minúscula confusão, estimulantes e deliciosos.

Um dia pus-me a coleccioná-los, aos mais correntes, e dessa colecção de paradoxos forneci, aí acima, os da letra «D». Ele há-os banalizados, como publicidade negativa (e a reconfortante afirmação de que ela não existe), há-os descaradamente eufemistas, como crescimento negativo, e há-os consagrados, transformados em cultura, como o pessoano título O Banqueiro Anarquista. Aliás, do autor do opúsculo se diz que prezava um fingimento sincero. E é esse Pessoa estuante de engenharia conceptual aquele que mais nos fala, sejamos honestos.

Outros paradoxos são de mais difícil gestão. Eles existem em línguas estranhas (em mentes estranhas, é bem de ver), sem que nos tenham ainda suficientemente ocorrido. Assim, eu gostaria dum correspondente português para o alemão «Schadenfreunde», o prazer na desgraça alheia. Ou para o inglês «selffulfilling prophecy». Ou para o neerlandês «remmende voorsprong», o progresso inibidor, ou o avanço retardante (por exemplo, as primeiras cidades com metropolitano têm também o material mais antiquado). Ou o também neerlandês «plaatsvervangende schaamte», a vergonha pela desvergonha alheia.

Aqui vão mais alguns.

caos organizado
fracasso sublime
imprevisto desejado
(em «Estação», de Nuno Bragança)
indignação selectiva
loucura lúcida
neutralidade colaborante
oposição construtiva
resistência pacífica
susto retroactivo
(num artigo de David Mourão-Ferreira, de 1990)
tolerância repressiva

Se souber de outros, vá dizendo. Ainda acabaremos o que se diz espertos.

Chega-me aí o microfone

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A política – aí está um terreno em que nada me atrai. Suponho-a uma profissão de recurso, para os que não deram coisa que enchesse melhor a vida. Políticos interessantes, não vejo um sequer. E, depois, aquele ar cronicamente stressado, aquela fluência de lugares-comuns, aqueles reflexos tão bem treinados de, fingindo responder às perguntas, ir passando a insensata mensagem. Nada para mim, repito.

Mas, às vezes, em momentos de fraqueza… Sim, vou confessar um secretíssimo anelo: eu apreciaria fazer um discurso no Parlamento. Tal e qual. Mas sem televisões, sem rádios, sem jornalistas. Só para aquelas circulares bancadas, só para aquele espaço imponente e luminoso, só para aqueles 150 escolhidos ouvintes.

Sei que o desejo é vão, e que exprimi-lo é altamente inconveniente. Mas, entre as loucuras mansas, esta pode ter, até, uma misericordiosa cotação.

De resto, não seria – ouso pensar – um completo desatino dar-se, de vem em quando, a um paisano o microfone parlamentar. A voz popular encheria então a vertiginosa abóbada. Não digo que o poder tremesse. O poder não treme. Mas haveria, pelo toque mágico de umas babelas bem esgalhadas, um certo descontrair daqueles rostos.

Fica a sugestão.

Bem-vindo à perdição

Eu queria pôr aqui uma foto catita de Eduardo Prado Coelho, mas o «Movable Type» emperrou agora por ali. Vai um biografiazinha, sacada ao site dum nosso comum editor portuense, meu e dele (temos dois, ah ganda Porto!).

Nova tentativa. Não, definitivamente, o «upload file» do «Type» só produz barulhos esquisitos, extraterrestres. Vamos ao caso.

Terão reparado no tom de EPC quando fala em «blogues». Há ali uma distância, uma sobranceria. Há ali, sumo requinte, uma estudada ignorância. Aquele (este) não é o mundo dele, nunca o será, Deus o livre.

Não, nada aqui há que se aproveite, que se possa citar, que merecedor seja duma alusão. Como o sabe ele? É questão da mais pura fé. É que EPC não lê blogues. Possivelmente a mágoa é mais vasta ainda. EPC, tudo leva a crê-lo, ignora a Internet. Não me lembro de apanhá-lo cedendo uma «url» à massa leitora. Faz bem, esta aranha interplanetária que nos tem nas penugentas patas não é de recomendar.

Mas o que fere – e ele sabe que fere, porque inteligente é ele – é o alcantilado desprezo que nos vota. Sentimo-nos, a seus olhos, não a minúscula grei de bons selvagens que nos supúnhamos, mas os soturnos diáconos dum culto lúgubre, sórdidos oficiantes de fatais missas negras, diárias para mais, enfim, isto torna-me lírico.

Mas a nossa vingança vai ser terrível. Não tarda, e EPC terá também a sua cela nestas húmidas paragens. Isto, senhor, é um vórtice a que ninguém escapa. Bem-vindo à perdição.

Nem por teima:

Hoje, sábado, no «Público», o magnífico Rui Tavares sai, de mangas arregaçadas, em denodada defesa do nosso convento. Eia, sus! Dá-lhe!

«Por dentro tenho 20 anos»

Um dos dois testemunhos de vida que mais me tocaram, e que por isso nunca esquecerei, foi o do prof. Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão, quando disse, numa entrevista, suponho que na «Visão», que desejava morrer. Assim mesmo. Foi já no fim da vida, que ele carregou até aos 91 anos. Nascera em 1906 e teve o que desejava em 1997.

Pergunta a gente o que pode levar alguém a cansar-se de existir. A acordar de manhã e pensar ‘Que chatice! Ainda estou vivo’. Isto, não porque se ficou doente incurável, entrevado, surdo, ou cego, ou emudecido. Mas pelo simples cansaço de andar por cá.

E o outro testemunho, esse, é tão bonito que enternece. Foi o de Jacinto do Prado Coelho, que escreveu, num prefácio dum dos seus últimos livros (cito de cor, mas suponho textual): «Por dentro tenho 20 anos e ninguém sabe». Tinha nascido em 1920. Teve vinte anos até 1984.

Quem lixou o «Freedom»?

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Eu não sou grande técnico. Mas sou o suficiente para saber que estas coisas exigem estudos. Sejamos sucintos e directos: o «Freedom» foi «hackado». Onde se dava com um blogue desengonçado, que tentava dar um golpe em «Equador» de MST, vai-se agora desaguar num blogue sobre… «Equador» de MST. Ora vejam.

E por onde pára o antigo «Freedom»? Desactivou-se. E desapareceu? Não. Fomos dar com ele (obséquio do novamente esplendoroso Ligações perigosas) noutro sítio, aqui. Copiado. Por outrem? Pelo mesmo? Saberemos. Ou não.

Em cima: capa da edição de «Equador» na minha outra língua.

Mãe! Olha eles!

Eles. Sim, eles voltaram. Ou querem voltar. Os blogues clandestinos do literário. É que há-os de superfície, ou de salão, como o Da Literatura. Passo lá de raspão, mas não passo sem passar. Cisma minha.

Mas falava eu dos clandestinos. Dos que alimentam – e se alimentam da – pequena clandestinidade que faz ainda mais apetecível a literatura. Não, não falo desse pobre e desaparecido FreedomToCopy (Tá a ver? Mas eu não lhe disse «desaparecido»? Já não se confia nas pessoas?).

Pois é. Refiro-me a coisa mais fina, como o intermitente, mas saudosíssimo, porque utilíssimo, Ligações perigosas, que desde Abril eu ia abrindo, com nunca esmorecente esperança, e que piscou de novo. Três vezes piscou.

E há o suculento Não li nem quero ler, que deu piscadelas recentes, reacendendo perspectivas.

Não dizia o outro (vários, a plagiarem-se) que o que interessava era que as pessoas lessem, nem que fosse A Tal? Pois eu digo (autoplagiando-me) que o que interessa é que a literatura ande na praça pública. Vestidinha, despidinha, tudo serve. É que, caramba, queremos ser falados! E, se nos comprarem uns livrinhos, a gente nem acredita. É o sol que raia. São aleluias que cantam. E não precisam de ler, senhores. Isso, oh, ainda é o menos.

Bem-vindas, pois, ó intermitências.

O que se diz lapidar

A frase do ano – bom, sejamos discretos, a do fim-de-semana – está numa «carta ao director» no Público de hoje. O leitor fala do recente debate ibérico, aquele com sondagens de opinião de lado a lado e com audição de peritos, como o José Saramago… a favor da fusão das empresas, estão lembrados?

Pois bem, esse leitor, António Pedro A. Costa Santos, escrevendo de Florença, afirma (e vai em negrita para parecer ainda mais lapidar):

«Se uma eventual união ibérica fosse a cura para qualquer dos males que aflige Portugal, então o suicídio seria também a cura para o cancro…»

«Um envelope individual»

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Apetecia-me há já algum tempo dizer isto: encontrei um texto de GMT (habituem-se, Gonçalo M. Tavares) de que gostei. Estou a ser forreta. Gostei muito. Algures nos alçapões deste blogue, o crítico (ele diz que não, mas é patente modéstia) Jagudi chama a GMT «críptico». É ser generoso. Por mim, não tenho tempo de vida – nem disposição – para ter as leituras que me permitissem achar prazer em GMT. No GMT habitual.

Mas há um outro. E esse escreveu, há uns meses, «Água, cão, cavalo, cabeça», que a Caminho publicou. São contos. Curtos. Alguns curtíssimos, e é assim que eles são bons (lembrem-se de Mário-Henrique Leiria, ou do José António Franco, ou do Paulo Kellerman, ou do nosso Jorge Carvalheira) e é assim que eles são difíceis.

Aqui vai um. Integral. Desse mesmo livrinho (o «lay-out» original é mais agradável à vista). Se a Caminho não gostar, mande a continha, sim? Se o GMT não gostar, tenha paciência ou aprenda a escrever maus contos.

Aprecie-se o estudado desmazelo da expressão, a estudada trivialidade da narrativa. Isto é uma arte. Só convém não exagerar, porque é uma arte difícil. Mas o resultado, aqui, é precioso. Chama-se a coisa

«Um envelope individual»

O exame electroencefalográfico tem doze registos que podem ser mono ou bipolares. Os exames captam os estímulos eléctricos de cada uma das áreas do cérebro; depois tiram-se conclusões.
Em repouso, o ritmo eléctrico do cérebro é diferente.

É necessário acreditar na verdade e não acreditar na mentira.
Uma escritora utiliza esta expressão: ficar individual. Uma pessoa que numa conversa, de repente, fica individual, é alguém que entra em si próprio, como se cada um fosse dois e pudesse o seu 2.° mergulhar no primeiro e fechar-se.
Existem momentos em que somos sociais, disponíveis; e existem momentos em que somos individuais.
No café detestam que eu leve livros e os leia, e que escreva. Aceitam e gostam de alguém que leva um jornal e lê durante horas, sentado. É uma questão de não se sentirem estúpidos, mas são estúpidos.
No fundo era apenas para contar a história de alguém que tinha um electroencefalograma para levantar num laboratório, mas morreu às duas horas da tarde, e o exame só estava pronto às três horas da tarde. Morreu de um ataque que vem de dentro da cabeça, mas os médicos têm outros termos. E o resultado do exame ficou anos no laboratório porque não foi levantado e no laboratório não são obrigados a distinguir quem morre de quem se atrasa ou se esquece.
Na organização de um dos anos posteriores, esse exame foi rasgado e deitado ao lixo, sem sequer ser aberto.

O exame electroencefalográfico, já o disse no início, tem doze registos, registos que podem ser mono ou bipolares. Os exames captam os estímulos eléctricos de cada uma das áreas do cérebro e depois tiram-se conclusões.
Naquele caso a conclusão era que o cérebro estava bem. Tanto em esforço como em repouso. E doze registos são sempre doze registos, não é um só.

Gonçalo M. Tavares

Prontos, pá!

No seu nunca demasiado reconhecido blogue Letratura (sic, sic!), um dos mais ‘úteis’ da blogosfera portuguesa, escreve Helder Guégués sobre a grafia Épa duma publicidade com os Gato Fedorento. A grafia deveria ser «Eh pá», sim senhor. Mas Helder Guégués (o apelido é, posso afiançar, autêntico ouro legítimo) prossegue, afirmando que o uso de «Pá!» se generalizou, ou floresceu, ou exorbitou, com os revolucionários de 74.

Posso testemunhar que não é o caso. Já nos anos 50 o uso era o dos futuros revolucionários ou o de hoje. E faz-me lembrar o que se passou com «Prontos!». A popularidade do Miguel Esteves Cardoso da «Noite da Má Língua» (o grande cronista já então era menos popular) fez atribuir-lhe a paternidade da interjeição. Ná, também «Prontos!» era, na Lisboa dos anos 50 (de mais cedo não sou testemunha), já frequentíssimo.

Curioso, este egocentrismo das nossas convicções linguísticas. Não é fácil ser jovem.

«Traduzir galego»

No suplemento «Actual» do Expresso de ontem saiu este texto cá do Degas. Leia e trema.

Editar em português a literatura galega põe particulares exigências. A tremenda proximidade dos dois idiomas (ou das duas variedades de um só idioma) vem semear, a cada frase, escolhos ao tradutor. Muitos termos, muitas expressões, têm em galego um significado, ou um valor, ou uma carga, que não são os nossos. A própria morfologia cria problemas. O galego desconhece o nosso presente composto (em galego, «tenho lido» significa outra coisa), assim como ignora o mais-que-perfeito composto («tinha lido») e dá ao simples («lera») também sentido de perfeito («li»). Só o assíduo contacto com o galego escrito e falado pode guiar um tradutor.

Como se tal não bastasse, o galego actual, mesmo o literário, encontra-se repassado de castelhano. Tal como, um dia, sucedeu ao português. Mas as descoincidências connosco são inúmeras. Assim, um bom tradutor do galego tem de sê-lo, também, do espanhol. Esquecer isso é expor-se a riscos.

Li, recentemente, Ser ou Não, de Xurxo Borrazás (n. 1963), que a Deriva Editores, grande divulgadora entre nós das letras galegas, publicou. É um livro ousado, imensamente perspicaz, donde o mundo literário, o da escrita, mas também o do «marketing» e dos prémios, sai gostosamente desnudado.

A versão portuguesa é de Dina Almeida, com revisão de Isabel Ramalhete, mas o blogue do editor atribui à segunda a tradução, dizendo-a «rigorosíssima». Decerto, o português dela, ou delas, é nítido, desenvolto, a espaços brilhante. E a tradução do galego é, em si mesma, apurada. Mas labora num equívoco deprimente. Explico. Os galegos têm uma tolerância ao palavrão que nós desconhecemos e nos engana. Assim, e é um exemplo, o frequentíssimo «carallo» equivale, quase sempre, aos nossos «raio», «caraças», «carago», «diacho». Não mais do que isso. São, pois, imensamente inadequadas as passagens do tipo «um retiro do caralho», «A que caralho é que tu cheiras?», «a ti que caralho te interessa?», «Ao caralho! – exclamou o professor», e dezenas, dezenas de outras. O tradutor supor-se-á atrevido. Mas está apenas a ser ridículo.

Depois, há o material espanhol, já não questão de gosto mas de informação. Há centos de termos enganosos, os «falsos amigos», a pedirem cuidado. Que faltou a este livro. Aí damos com «apenas» (por «mal», «quase não»), «traje» (fato), «tópicos» (clichés), «compasso» (bússola), «Venha!» (Vamos a isso!), «noiva» (namorada), «chatear» (fazer um «chat»), «logro» (conseguimento), «colónia» (água-de-colónia), «prata» (dinheiro), «corrida» (ejaculação), «ovos» («tomates»), «por certo» (aliás), «escaparate» (montra), «torpe» (desajeitado), e mais, bastantes mais. Para quem recear um estado de coisas em que o espanhol desestabilizou definitivamente o português, este livro é um pesadelo.

Entenda-se-me bem. É importante conhecer espanhol, falá-lo com segurança, transmitir nele, com garbo, a cultura portuguesa. Mas, também, não ceder um milímetro do nosso idioma.

E quanto ao galego, mais isto. Tente conservar-se, onde for adequado, a coloração lexical ou idiomática do original. Não para que a absorvamos. Mas para que, tal como a brasileira, ela venha tocar-nos, serenamente, os sentidos e o entendimento.

Ai, Catalunha

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Graças a um sempre atento Portal Galego da Língua, soube-se que a escritora e jornalista catalã Isabel-Clara Simó escreveu a crónica que aqui se reproduz em «traduçom galega». O original catalão é do diário Avui.

Admiro os portugueses. Admiro-os porque, perante a poderosa maquinaria do exército castelhano, tenhem sabido safar-se; porque soubérom ganhar a independência; porque encontrárom aliados eficazes e constantes. Mas também os admiro porque tenhem demonstrado que tenhem imaginaçom. Há pouco mais de umha década, diversos movimentos culturais soubérom convencer a classe política que a cultura é umha arma formidável de propaganda e que é necessária como embaixadora de um país. Entom, o governo português destinou umha boa quantia de dinheiro – e nom se trata de um país rico! – para promover a sua literatura. O resultado é que nós, vocês e eu, lemos autores portugueses que dantes desconhecíamos, e que ainda por cima tenhem um Nobel.

Agora, som uns quantos empresários, políticos, economistas e pessoas preocupadas polo devir português que estám a montar umha agrupaçom de cerca de 600 pessoas com o nome Compromisso Portugal para tirarem, dizem, Portugal da sua mediocridade. Entom a minha admiraçom torna-se inveja. Porque será que os catalans nom podem fazer qualquer cousa do género? Como conseguem entom os portugueses, sem a tutela de nenhum partido político? O motivo é apenas Portugal. E ninguém os acusará nunca de fechados nem de pouco cosmopolitas porque, como tenhem Estado, é-lhes permitido serem patriotas.

Nom consigo imaginar isto nos Países Cataláns, apesar dos esforços neste sentido de Eliseu Climent e de outros beneméritos patriotas. A mania do espanholismo do ‘conmigo o contra mí’ penetrou em nós demasiado fundo. Ora bem: toda a gente tem sempre Catalunha na boca. Mas ninguém vai nunca mais longe. Nem que fossem uns metros. Ai!