Princípio de Cláudia

«Cláudia Domingues, Marketing Manager da IKEA Portugal, garante que esta campanha não tem “qualquer intenção ou propósito de contribuir, seja de que forma for, para o debate partidário e para o atual contexto pré-eleitoral que se vive no País”.

De acordo com Cláudia Domingues, esta ação pretende retratar “o próprio humor” com que muitas vezes os portugueses “abordam os temas mais sérios”. “Trata-se de uma campanha de mupis bem-humorados, descontraídos, que, partindo de temas e termos da atualidade, servem única e exclusivamente para animar e divertir quem por eles passa”, afirma.»

Fonte

A campanha de que fala a Cláudia Domingues é um dos maiores sucessos publicitários dos últimos anos em Portugal. Tudo graças ao mais antigo suporte de comunicação comercial registado na história, um simples cartaz de rua. Quer dizer que lhe saiu baratíssima a brincadeira, obtendo índices de notoriedade galácticos por via da amplificação mediática alcançada (earned media, como dizem os franceses, os cultos). 31 caracteres fizeram a magia: “Boa para guardar livros. Ou 75.800€“. Significa, então, que a senhora tem razões para se agarrar à garrafa de champanhe e beber pelo gargalo com sofreguidão e êxtase? Calmex.

Sucesso na notoriedade de uma qualquer campanha de uma qualquer marca não equivale, necessariamente, a sucesso nas vendas, sucesso na reputação, sucesso na simpatia ou sucesso na construção da marca dentro do posicionamento considerado mais forte. É inútil dar exemplos reais, demasiado distantes e datados. Basta imaginar o que aconteceria se a IKEA lançasse uma peça publicitária com a mensagem “Venham às nossas lojas, cabrões!“; ou uma outra com o rosto de Ingvar Kamprad e a mensagem “Fui nazi. Agora, já não preciso.” A amplificação mediática seria igualmente himalaica, chegando aos principais órgãos de comunicação social. Mas não seria fixe para a marca, né? Pois.

Estamos perante uma aberração na estratégia de comunicação da IKEA, o que fica claro ao vermos as restantes peças que compõem o ramalhete: uma diz “Puxámos o tapete à inflação“; outra “Para se aquecerem sozinhos ou coligados“; e ainda “A nossa geringonça para o frio“. Estes 3 headlines são bocejantes, trocadilhos banais destinados ao esquecimento instantâneo. Sei do que falo porque fui autor de muitos assim ao longo de muitos anos. Se a campanha fosse só isto, ou mais disto, nem sequer o propalado objectivo de “animar e divertir” teria sido alcançado dada a insipidez amadorística do trabalho. Seria a tranquila continuação do registo passado, onde ninguém liga pevide à publicidade da IKEA em Portugal. Mas eis que a agência teve uma epifania: aproveitar o dinheiro e o património simbólico do cliente para fazer uma peça de canalhice sectária, e logo nas vésperas de umas eleições legislativas nascidas de uma colossal crise política e institucional com a Justiça na embrulhada. A Cláudia Domingues, especialista em humor português para portugueses, alinhou, passou o cheque e aplaudiu.

Podemos imaginar uma campanha onde a peça que explora a operação Influencer seria parte de um conjunto com a mesma pragmática de comunicação. Por exemplo, haveria um outro cartaz na linha deste do Vargas, ou um como o que Miguel Pedro Araújo sugere. Não faltam oportunidades para desopilar com intertextualidades e subtextos a partir dos objectos vendidos pela IKEA. Se tivesse também aparecido algo como “Gémeas em cunha” (vendo-se duas cadeiras iguais lado a lado formando um ângulo agudo), a campanha deixaria de ser sectária para passar a ser apenas suicida. Porque então seria atacada por todos os lados, sendo carimbada de populista. E ficando como escândalo que a marca sueca estivesse a contribuir para o descrédito das mais altas autoridades do País recorrendo a insinuações indecorosas e difamantes sobre casos em investigação judicial.

Ora, nem a agência nem a cliente são pessoas que queiram mal a si próprias. É ao contrário, têm-se em alta consideração. E sabem que não há penalizações para atacar o PS ou os governantes socialistas. Afinal, é isso que constatam diariamente, horariamente. Até de procuradores e juízes recolhem esse exemplo, é essa a ecologia do regime. Viram uma oportunidade para recorrerem à schadenfreude com intento político e resolveram não a desperdiçar. De imediato, jornalistas e políticos que passam a vida a perseguir a xuxaria vieram dizer que se fartaram de rir com os 75.800€. Eram eles o real público-alvo da campanha, obviamente. A marca IKEA e a decência a que está obrigada como entidade comercial, a salubridade comunitária no espaço público onde o sectarismo não parece ser veículo inteligente para vender mobiliário, tudo isso valia nada face ao frenesim de apontar ao PS e disparar o canhão da pulhice.

Resta saber se o patrão da Cláudia Domingues acha que ela já atingiu o seu grau de incompetência máxima ou se é conveniente mais uma promoção para o estrago ser ainda maior.

Exactissimamente

«Infelizmente o comunicado não explica como é que deitar fogo a um outdoor e partilhar o vídeo, permitindo ao partido em causa mais tempo de antena e o aprofundar da senda de vitimização, de radicalização e de ódio que são todo o seu programa, pode combater o fascismo.

Em verdade, a primeira coisa que ocorre perante a estultícia infantilóide do comunicado e da “ação” pirómana é que, se o partido do outdoor é o evidente beneficiado por ambos, pode muito bem ser o responsável. Como tanta gente comentou no Twitter, se não foi a pedido ou por obra de gente do Chega, parece.»

A beleza de beneficiar fascistas

Revolution through evolution

Couples: Caring for oneself can lead to happier relationships – on both sides
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Important to involve both parents in breastfeeding
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Beyond BMI, Ohio State expert says complete approach to measuring health is better
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How the brain responds to reward is linked to socioeconomic background
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Young people from poorer families make fewer friends
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Bystander support is crucial for tackling anti-social behaviour – new research
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Right-wing nationalists are seen in the labour market as less creative, open-minded and empathetic, greens as better organised
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Dominguice

Durante a ascensão de Ventura como personalidade capaz de levar para o Parlamento um grupo de pândegos a armar aos fachos, foi comum à esquerda o apelo para não se lhe dar notoriedade. Donde, para não debater com ele, no pressuposto de que o badalhoco ficaria sempre a ganhar por recorrer a insultos, calúnias e chungaria, boicotando qualquer racionalidade dialógica. Sempre achei tal postura um erro estratégico caso a intenção fosse a de o tratar como uma ameaça à democracia — até porque a sua táctica apenas difere no grau da usada pela direita decadente há décadas. Ao ficar a falar sozinho no seu universo comunicacional, ou a fazer comícios na Assembleia da República, ele continuaria com eficácia de atracção para os públicos-alvo vítimas de apelos ao medo, ao ódio e à devassa das instituições. Ora, Ventura é um bufão, não tem qualquer honestidade intelectual nem escrúpulos. Irá até onde o deixarem ir, mentindo e envenenando enquanto ninguém o confrontar implacavelmente.

A direita nunca o desmascarou, preferindo uma ambivalência hipócrita por antecipar vir a usá-lo para ser Governo. A esquerda está ocupada com o umbigo, como quase sempre. É ao centro que se faz a bela peleja pela democracia. Assim haja alguém com esse amor à cidade.

Faça-se justiça

A decisão da Relação ao validar a acusação do Ministério Público no processo Marquês é uma vitória política para a parte que transformou o caso num processo político. Nada nos diz, porém, sobre a inocência ou culpabilidade de Sócrates. A esse respeito, estamos exactamente como no final da exposição de Ivo Rosa em Abril de 2021: a haver corrupção (algo para o qual há indícios), ninguém sabe onde nem como ocorreu. O que, de acordo com os princípios fundantes do direito, leva a que não se possa provar tal, muito menos a condenar alguém sem provas.

Claro que o julgamento de Sócrates já foi feito na praça pública logo na sua detenção, e cristalizou-se como uma necessidade do regime. Daí o choque causado pela coragem de Ivo Rosa, vítima de uma campanha de assassinato de carácter e de ameaças desde que ficou com o caso nas mãos. Para se aferir do seu trabalho, basta referir que os seus argumentos para invalidar quase tudo na acusação não foram atacados, mesmo após ele os ter explanado com minúcia, ao que se apontou foi ao seu critério “demasiado” legalista. Ou seja, Ivo Rosa não prestava por causa da sua mania de querer ser justo e defender os direitos dos cidadãos.

Marcelo deu ontem a entender que já sabia desta decisão. E agora se percebe muito melhor o encontro de Passos com Carlos Alexandre para festejarem de copo na mão a boa nova a caminho. Aposto que partilharam as fotos do regozijo triunfal com Joana Marques Vidal.

Parelhas

A primeira leitura vai muito bem com a segunda.

«“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”

Quem me disse isto nasceu em 1968, a exatos 50 anos do final do final da dita guerra - uma guerra que conhecemos nos livros e em alguns filmes, narrativa tão distante e onírica como o faroeste americano ou as invasões francesas. Foi a primeira vez que percebi, em vertigem de desalento e estupor, como é possível aquilo que me parece impossível: que haja, nas gerações mais novas, quem ache que uma ditadura não é uma coisa assim tão má, e que uma democracia não é uma coisa assim tão estimável. É que não fazem qualquer ideia da diferença; todas as suas vidas e referências estão imersas, ensopadas, no sistema democrático.

Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas - coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.

Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são conquistas da democracia.

Não passamos a vida a reparar que vivemos num dos países mais seguros e pacíficos do mundo e com uns dos serviços nacionais de saúde mais eficazes (sim, um dos mais eficazes). Aliás, pelo contrário: se há coisa em que passamos a vida a reparar é naquilo que falha.»

“Saudades da ditadura” — Fernanda Câncio

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«Sou um politico, e com razão, taxado de optimista, o que é uma nota discordante no meio do pessimismo, que é hoje muito vulgar. Tendo uma vida já longa, e tendo me sempre interessado no movimento politico, vejo que conquistámos a liberdade e a egualdade civil, que, ha sessenta annos, era ainda, em grande parte, um desideratum, e para muitos uma utopia. A geração de agora dá pouca importância a esta vantagem, porque não viveu nos tempos em que ella não existia. Os costumes públicos teem melhorado e progredido consideravelmente; a tolerância, esta virtude essencialmente moderna, tem augmentado; a applicação da justiça tem-se aperfeiçoado; e até a criminalidade, apesar dos recentes attentados do anarchismo, que é uma loucura occasional, tem diminuído. Á questão propriamente politica succede agora a questão chamada social. Está esta nos seus princípios, mas ha de afinal, depois das inevitáveis luctas, resolver-se, como, successivamente, todas as questões se resolvem n'um período mais ou menos largo. Em quanto aos progressos da sciencia, teem elles sido de tal ordem no nosso tempo, que esta só circumstancia é uma nota agradável na vida moderna, para os que pensam. Eis porque sou optimista.»

António de Serpa Pimentel apud Bulhão Pato, Memórias — Tomo II, 1894

Revolution through evolution

Dopamine is critical for keeping love alive
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Third major study finds evidence that daily multivitamin supplements improve memory and slow cognitive aging in older adults
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How does materialism in social media trigger stress and unhappiness?
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The fate of novel ideas
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Psychotherapy effective in treating post-traumatic stress disorder following multiple traumatic events
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Male gender expression in schools is associated with substance abuse later in life
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Scientific study shows we are not addicted to mobile phones but to the social interaction they facilitate
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Dominguice

Tudo é contextual. Que o mesmo é dizer mutável, provisório, em devir. Paisagens alteram-se, pessoas mudam, memórias desaparecem. O nosso corpo é o mesmo e sempre outro a cada instante. A Lua não está hoje à mesma distância da Terra em que estava ontem. E, de repente, um coração sai de órbita e dá por si noutro sistema solar, numa galáxia muito distante.

Assustador? Não, libertador. Só aqui chegámos porque aqui não estávamos.

Silêncio e gozo

[...] desejo juntar à suspeita de viés político na investigação do processo EDP, que está na base da referida reclamação, uma outra informação que entretanto foi tornada pública pela revista “Sábado“ – um dos procuradores do processo EDP desempenhou funções de assessor num gabinete ministerial no Governo PSD-CDS. Repito: um dos procuradores foi assessor num governo PSD-CDS.
Este facto, Senhora Procuradora-Geral, este simples facto, devia levar a Procuradoria a olhar a suspeita de motivação política com outros olhos.
Veja bem. Primeiro facto, o alegado favorecimento à EDP por parte de um governo socialista é investigado há doze anos por um antigo assessor do governo do PSD-CDS. Absolutamente extraordinário. Segundo facto, esse mesmo procurador, que ocupou funções num gabinete de um governo PSD-CDS, decidiu não investigar o financiamento da campanha eleitoral do PSD de 2015. Finalmente, esse é também o procurador que abriu um inquérito crime contra o atual primeiro-ministro socialista, criando uma crise política, fazendo cair o Governo e provocando eleições antecipadas. Julgo que nada mais é preciso dizer.

José Sócrates

Não existem ladrões que se dediquem nas suas horas vagas ao policiamento da urbe, mas existem polícias que durante as horas de serviço se aplicam na ladroagem e demais crimes de catálogo. Existem, há casos transitados em julgado. Idem para militares no exercício de funções militares. Até juízes aparecem em tribunal no papel de acusados e de lá saem no embrulho de condenados. O que faz supor não serem os procuradores do Ministério Público feitos a partir de um ADN imune à prática de ilícitos.

Se um procurador for apanhado a fanar uma carteira no Metro ou ao leme de um veleiro com sacas de cocaína no porão, as autoridades não terão grandes dúvidas sobre o que fazer com ele. Mas como se lida com um procurador que utiliza os recursos da Justiça para perseguir e lesar inocentes ou que abdica de utilizar esses mesmos recursos para investigar um potencial crime em ordem a proteger os suspeitos? Quem se lembra de ver noticiado, discutido, analisado algum caso desses? Será que sofremos todos de amnésia ou que é impossível existirem procuradores com esses comportamentos? É que não temos registo de tal. Do que nos lembramos bem é do foguetório à volta do episódio do então procurador Lopes da Mota. Recordemos: dois outros procuradores alegaram terem sido pressionados por ele, numa conversa, acabando o Conselho Superior do Ministério Público por lhe aplicar uma pena de suspensão de 30 dias. Pensemos: uma conversa entre procuradores pode alguma vez ser uma forma de pressão? A farsa deste caso interessa só pelo aproveitamento político que foi feito. A mesma lógica para as campanhas caluniosas, assumidas ao mais alto nível do PSD e CDS, contra Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, então procurador-geral da República e presidente do Supremo, respectivamente.

Nunca houve o menor indício de abusos do poder na Justiça para favorecer políticos socialistas, ainda menos para perseguir políticos de direita. Não existe nenhum procurador com queda para apanhar direitolas nem existe nenhum super-juiz que dê entrevistas onde revele não precisar de julgar arguidos para os considerar culpados, calhando serem do PSD e o processo estar nas suas mãos. Mas a perseguição ao PS existe, é factual, contabilizável, sistémica. Em parte, porque o PS tem estado mais tempo na governação, é o factor estatístico. E, no fundo, porque a direita portuguesa sabe não ser competitiva no plano do projecto político, pelo que escolheu explorar o ressentimento e rancor corporativos dos agentes judiciais para encher os seus canhões mediáticos.

Se tivesse aparecido um procurador com um cargo de assessoria num Governo socialista no currículo a abrir investigações que duram 12 anos a ex-governantes do PSD, a recusar investigar suspeitas sobre financiamentos ao PS, e a inventar uma cagada judicial capaz de derrubar um Governo e uma maioria absoluta de direita no Parlamento, mais o interesse nacional, provavelmente assistiríamos a um cerco à Procuradoria-Geral de República, seguido da defenestração do sujeito. Porém, como na realidade o alvo é sempre o PS, e como aqui o denunciante é Sócrates, reina supremo o silêncio dos cobardes e o gozo dos cúmplices.

Ventura é o mercado da calúnia a funcionar

Os básicos da direita decadente estão em pânico por causa dos broncos da direita fascistóide. O império Balsemão entrou em modo de guerra total a Ventura, depois de olhar para sondagens onde se desenha um cenário em que o Chega pode ficar próximo do PSD em votos. Seria desopilante se não fosse o segundo acto da tragédia. O que Ventura faz na sua técnica retórica onde apela ao medo e à alucinação está suportado na estratégia de degradação do regime que a direita política e mediática tem praticado contra o PS desde 2004. Não há novidade. Há continuação, evolução.

A campanha para tratar o PS como um partido corrupto, onde qualquer decisão governativa ou autárquica socialista deveria ser considerada legalmente suspeita, não foi uma invenção do chegano-mor. Começou com Santana Lopes e teve desbragado seguimento com Ferreira Leite, e depois sucesso eleitoral com Passos Coelho. Uma ministra do Pedro anunciou o “fim da impunidade” ao comentar a notícia sobre buscas a ex-ministros do Governo anterior. Cavaco Silva, a partir de Belém, alimentou e amplificou essa campanha. Golpadas judiciais, em conluio com um domínio mediático totalitário que as explorou para criar o maior dano possível nos alvos, apelaram ao fanatismo e ao ódio contra os socialistas. Uma vedeta da indústria da calúnia, cuja obra como “jornalista” consiste em repetir que o “sistema político é corrupto” e que não é preciso provar a culpa de Sócrates para o aviltar e achincalhar obsessivamente, foi escolhido como representante e exemplo vivo dos mais altos valores da identidade cultural da Grei. Agentes da justiça cometem crimes, juízes abrem a boca a queixar-se do “excesso de garantias” dadas a arguidos e acusados, sindicalistas dos órgãos de Justiça vocalizam o seu desprezo pela classe política. Jornalistas usam o seu estatuto para violar o Estado de direito e disparar contra quem apareça a querer defendê-lo.

O efeito que 20 anos desta pulhice irracionalizante tem na sociedade deu-se a ver em 2017, quando Passos Coelho inventou um populista racista e xenófobo de seu nome André Ventura, fulano acabadinho de sair de um programa de paineleiros da bola. A intuição passista era a de que já havia condições para o PSD começar a agregar os alienados e miseráveis disponíveis para ouvir a cassete da extrema-direita. Tinha razão, só que antes do tempo. Incrivelmente, Rui Rio veio confirmar-lhe a aposta ao ceder à normalização do Chega via Açores. Uma normalização que mereceu declarações de apoio de Ferreira Leite e de Cavaco ao tempo, assim como de figuras do aparelho laranja, todos felizes da vida com a associação do PSD à chungaria.

A esquerda pura e verdadeira acaba a contribuir para a credibilização de Ventura sempre que repete alucinações equivalentes, diabolizando o PS e chafurdando num primarismo de permanente suspeita moral e de delírio conspiracionista. Para o bronco a assistir à retórica sectária de BE e PCP contra o PS, a conclusão é a de que o voto no Chega se justifica para “limpar” essa cambada de malfeitores.

Portanto, foi muita gente, durante muitos anos, a fazer a cama onde o traste do Ventura se veio deitar radiante e ufano. Agora, lidem com a concorrência.

Trump e a alface

Os eleitores republicanos que ontem deram uma vitória esmagadora a Trump nas primárias do Iowa tiveram de enfrentar frio extremo — nalguns locais podendo chegar a -37º — ao saírem de casa para ir votar. Ou seja, não apenas sofreram o desconforto da deslocação e eventual espera como, literalmente, arriscaram a sua saúde ao participarem na escolha do candidato. É um belíssimo exemplo da essência da democracia, o cidadão não abdica da sua liberdade nem debaixo de uma colossal intempérie. Ao mesmo tempo, o resultado da soma dessas liberdades democráticas conduz ao paradoxo de se ter dado o arrasador triunfo a quem é o principal responsável pelo mais grave ataque à democracia norte-americana, a invasão do Capitólio, e se assume como um escroque megalómano acima da lei.

Trump obriga a reescrever os livros de ciência política. Conseguiu o impensável ao se tornar presidente dos EUA, continua a deixar transidos de espanto aqueles que anseiam por racionalidade humanista nos sistemas políticos. Deixa-nos descoroçoados, mergulhados em pessimismo, face à possibilidade de poder voltar à Casa Branca. Mas eis que a democracia nos vem salvar do desespero. Porque ela aceita até aqueles que a querem destruir ou diminuir, enquanto nas tiranias todos os democratas são perseguidos, censurados, presos, assassinados ou expulsos.

A violência de 6 de Janeiro de 2021, em que energúmenos feriram e mataram polícias a defenderem as principais instituições da democracia americana, é o mais nítido retrato do que Trump é e quer. É uma besta violenta, quer ser rei absoluto. O facto de, mesmo assim, poder voltar a concorrer à presidência significa que a força da democracia não é a da exclusão, antes a da inclusão. E a democracia continuará a ser uma das mais fundantes realizações da civilização bem depois de Trump já estar a comer alface pela raiz.