Trump e a alface

Os eleitores republicanos que ontem deram uma vitória esmagadora a Trump nas primárias do Iowa tiveram de enfrentar frio extremo — nalguns locais podendo chegar a -37º — ao saírem de casa para ir votar. Ou seja, não apenas sofreram o desconforto da deslocação e eventual espera como, literalmente, arriscaram a sua saúde ao participarem na escolha do candidato. É um belíssimo exemplo da essência da democracia, o cidadão não abdica da sua liberdade nem debaixo de uma colossal intempérie. Ao mesmo tempo, o resultado da soma dessas liberdades democráticas conduz ao paradoxo de se ter dado o arrasador triunfo a quem é o principal responsável pelo mais grave ataque à democracia norte-americana, a invasão do Capitólio, e se assume como um escroque megalómano acima da lei.

Trump obriga a reescrever os livros de ciência política. Conseguiu o impensável ao se tornar presidente dos EUA, continua a deixar transidos de espanto aqueles que anseiam por racionalidade humanista nos sistemas políticos. Deixa-nos descoroçoados, mergulhados em pessimismo, face à possibilidade de poder voltar à Casa Branca. Mas eis que a democracia nos vem salvar do desespero. Porque ela aceita até aqueles que a querem destruir ou diminuir, enquanto nas tiranias todos os democratas são perseguidos, censurados, presos, assassinados ou expulsos.

A violência de 6 de Janeiro de 2021, em que energúmenos feriram e mataram polícias a defenderem as principais instituições da democracia americana, é o mais nítido retrato do que Trump é e quer. É uma besta violenta, quer ser rei absoluto. O facto de, mesmo assim, poder voltar a concorrer à presidência significa que a força da democracia não é a da exclusão, antes a da inclusão. E a democracia continuará a ser uma das mais fundantes realizações da civilização bem depois de Trump já estar a comer alface pela raiz.

12 thoughts on “Trump e a alface”

  1. Há um problema com a Constituição americana: não previu que uma pessoa que se acha com direito a ser criminoso, e que tenha, de facto, cometido crimes, alguns dos quais no exercício da função de presidente, se possa candidatar ao mais alto cargo da nação (uma segunda vez), mesmo preso. Não só pode, como pode ser eleito. Salvo erro, a Constituição apenas prevê esta dúbia disposição da emenda XIV:

    “Seção 3
    Não poderá ser Senador ou Representante, ou eleitor do Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar
    qualquer emprego civil ou militar subordinado ao Governo dos Estados Unidos ou de qualquer dos
    Estados aquele que, como membro da legislatura de um Estado, ou funcionário do Poder
    Executivo ou judiciário desse Estado, havendo jurado defender a Constituição dos Estados Unidos,
    tenha tomado parte em insurreição ou rebelião contra essa Constituição, ou prestado auxilio e
    apoio a seus inimigos. O Congresso pode, porém, mediante o voto de dois terços dos membros de
    cada uma das Câmaras, remover a interdição.”

    Portanto, a democracia aqui falhou na definição das suas regras. E podia não ter falhado.

  2. Vocês são um espetáculo. São os arautos da máxima: “Ó meu amigo, Democracia é quando eu mando no meu amigo, ditadura é quando o meu amigo manda em mim!”

    2009 a 2024 são 15 anos com 11 de democratas (um deles prémio Nobel da paz com 8 meses de mandato – é o Nobel pela expectativa da ação; o outro um senhor, infelizmente para ele, que não está na posse das suas capacidades) e 4 de republicanos (com o destravado Trump, que é basicamente isso que é: destravado https://www.youtube.com/shorts/OjLSTv2hVtE).
    Mas não se cumprem os anseios de “racionalidade humanista nos sistemas políticos”. Mas que vergonhosa falácia, dá até para vos insultar, seus Racionais Humanistas!

  3. @Penelope
    Problema? Isso suscita varias outras questoes:
    Problema porque (?), de quem (?), para quem (?), em comparacao com o que?
    E que para os arquitectos e redactores da contituicao, esta foi e continua a ser uma solucao.
    Excelente e duradoura acrescente-se!
    A Constituicao foi desenhada de raiz para limitar o ambito da democracia na nascente nacao Americana e garantir que nunca seria o povo a decidir os destinos daquela nacao.

    Isto nao e opiniao minha, Precisas de ler os textos deixados pela assembleia constituinte com atencao.
    Esta la escarrapachado, primordialmente nos escritos do James Madison – o principal intelectual e arquitecto do documento – mas tambem do John Adams, Alexander Hamilton, John Jay e George Washington – reconhecidamente um racista supremacista, especialmente contra a populacao indigena americana.
    Estou a descrever aquilo que esta publicamente disponivel no registo historico.
    Benjamin Franklin foi o unico, salvo erro a levantar preocupacoes sobre representatividade democratica na altura da redacao do documento e Thomas Jefferson so as expressou muitos anos mais tarde.

    Problema diz ela…
    TEEHEE!

  4. @Penelope:
    Acerca da XIV emenda da Constituicao esta foi criada, a pressa, com o intuito especifico de banir a eleicao de politicos confederados no pos-Guerra Civil Americana.

    Do ponto de vista legal, falo com menos a vontade.
    Nao sei de nenhum confederado (mas nao li sobre o tema exaustivamente) que tenha sido condenado por insurreicao nos tribunais – sei por exemplo que o Jefferson Davis nunca foi condenado por nada – mas, o Estado Federal, agora legitimado como poder supremo pela forca das armas, concedeu amnistia a todos os confederados para facilitar a Recontrucao e re-integracao dos Estados rebeldes. Esta amnistia contem em si mesma uma implicita admissao de culpa do crime de insurreicao por parte dos individuos que a aceitaram.

  5. PS
    @ Valupi
    Em abstracto concordo com quase todo o teu post.
    A minha objeccao de fundo que deixas implicita a ideia de que essa forma de Democracia idealizada existe numa forma reconhecivel nos EUA.
    Estamos muito mais perto desse ideal nos aqui no nosso pobre Portugal onde a nossa Constituicao superou sucessivos assaltos do Governo do Passolas culminando na confrontacao pos-leitoral de 2015.

    Nos EUA, a Constituicao combate activamente sempre que pode o processo democratico, o qual sobrevive, apesar de todo, coxo e cambaleante. Isto tem o inconveniente sub-produto de sucessivas crises constitucionais que periodicamente mergulham o pais em violencia interna de dimensao variavel.
    Inconveniente porque falamos do desgoverno do Imperio mais poderoso de sempre na historia da Humanidade dotado de armas capazes de aniquilar varios planetas Terra…

    A Guerra Civil foi o culminar de uma crise constitucional; a Guerra do Vietname quase levou a uma crise contitucional e no entretanto foi o banho de sangue que se viu (falo da violencia de Estado interna – nao os crimes de Guerra), o 6 de Janeiro foi o culminar da mais recente crise constitucional que agora recrudesce.

  6. prontos , façam um movimento a exigir o sufrágio censitário nos usa já que não gostam do sufrágio universal porque os americanos da rua não sabem votar.

  7. “A Constituicao foi desenhada de raiz para limitar o ambito da democracia na nascente nacao Americana e garantir que nunca seria o povo a decidir os destinos daquela nacao.”

    não há nenhuma nação onde “o povo decida os destinos”, quando muito elegem representantes para o fazer, caso sejam uma nação democrática, senão nem isso.

  8. É cedo para deitar foguetes. Até às eleições, muitos Procuradores e Juízes confessadamente adversários de Trump, pontapeando a separação de poderes e espetando garfos nos olhos da Democracia, tudo farão para impedir o povo americano de escolher livremente o seu Presidente.

  9. para mim constitui violência alguém ser livre para cometer violências. o que é justo é excluir a violência para inibir a violência e esse monstro, e outros monstros, nem sequer teria a possibilidade de gozar da liberdade para exercer violência na Cidade. simples.

  10. Lowlonder destapa um pouco a incidência da guerrilha constitucional que pode projectar os USA num beco-sem-saida com a eleicäo do ” locutor de variedades escabrosas “. Os democratas centristas que detêem o
    poder no partido näo convidaram Elisabeth Waren para os ajudar a indicar o caminho …da vitória. E a estrela
    de Obama , o grande prof.de Constitucional de Harvard, Laurence Tribe, calou-se depois de artigos incendiários no W. Post sobre as debilidades do ministro da Justica de Biden…Obama ” murmurou” há dias que a estratégia da campanha do seu antigo Vice näo era das melhores…Os dados estäo lancados mas nada está assegurado quando, a economia americana, se revela em grandes perfomances.

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