João Pereira Coutinho gosta de se imaginar um aristocrata do pensamento. Vai daí, como todos os parvenus, decreta que os demais não passam de ignaros — a custo organizados em “hordas”, ou “tropas fandangas”— sempre animados da “ignorância larvar” que agora diagnostica, na sua coluna no “Expresso”, a toda a nossa classe política. Para ele, o povo gasta os seus dias a ulular aleivosias, a quilómetros das verdades supremas que esvoaçam nos amplos espaços daquele crânio abençoado. É que o rapaz sonha-se o único a saber ler (ou a consultar resumos na Amazon…) e acha que conseguir soletrar “Oakeshott” é prova de sapiência e elegância. Hoje, prova é que que não foi grandemente dotado nem de uma nem de outra.
O tema é o aborto. Para variar, o menino declara-se incomodado com o ruído que os inferiores andam a fazer em seu redor, começando pelo primeiro-ministro. É que ele, JPC, até já decidiu que não estamos a falar de “mulheres presas (quantas foram?)” nem de “tragédias de vão de escada (quantas existem ao certo?)”. E eis como a ignorância confessa se vê promovida a opinião: ele não sabe quantas pessoas afecta o drama do aborto, logo parece-lhe lógico, como bom solipsista, menorizar a questão.
As perguntas que realmente interessam ao jovem iluminado são: “será que um embrião constitui vida? E, em caso afirmativo, será que o Estado tem uma palavra a dizer quando a cessação de vida pode ocorrer?”
O português empregue nestas “primevas” questões é deplorável e o seu significado nebuloso (que é isso do “constituir vida”? E quem é que alguma vez duvidou que um feto estivesse vivo?). Mas, mesmo assim, ele não tem dúvidas em responder “sim” a ambas. Lá saberá porquê.
O que eu nunca entendi muito bem nestas discussões é a razão de quase todos aceitarem a inexistência de actividade cerebral como definição aceitável de fim da vida humana mas parecerem incapazes de usar padrão simétrico para marcar o seu início. Se um embrião ainda não possui sistema nervoso central activo, estando o seu córtex desligado do tálamo, não é ainda um ser humano. Poderá sê-lo “em potência” ou “aos olhos de Deus”; mas é tão senciente quanto um feto anencefálico. E que médico levaria até ao fim uma gravidez dessas?
Acho óptimo que cada um preze a sua própria bússola moral e acalente a superstição de sua preferência; mas não tentem obrigar os outros a segui-las, por favor.
PS: um pouco ao lado, na mesma página do “Expresso”, Daniel Oliveira trata de nos explicar que “quem ganha seiscentos ou setecentos euros não é rico. Nem sequer é de classe média”. Abaixo desse patamar, viriam os “miseráveis”. Pois. Mas em 2004, o ordenado mensal médio em Portugal não chegou a 922 euros. 769 para as mulheres. Ilíquidos. Agora, basta imaginar uma daquelas bonitas e úteis curvas em forma de sino para se ver o quão longe anda o Daniel de saber o que é na realidade a “classe média” deste triste país.