Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Blount, J. Fielding

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Este tratador de animais celebrizou-se depois de ter tentado dar um cigarro aceso a uma das elefantas do Luna Park, à laia de amendoim. Foi de imediato esmagado pelo paquiderme enfurecido. Um crime que, adicionado a dois homicídios anteriores, ditou o fim da pobre Topsy, assim se chamava esta elefanta indiana de seis toneladas. Fontes dificilmente verificáveis atribuem a Blount algumas relações com o círculo do filósofo e agitador Abraham Cutter, antes de uma tragédia familiar ou amorosa hoje insondável o ter entregue ao alcoolismo e a uma série de profissões não especializadas.

Atracção

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No início de 1903, o Luna Park, o grandioso parque de diversões de Coney Island, estava a receber os últimos retoques antes da inauguração. Alguns elefantes, comprados a circos, eram usados no transporte das cargas mais volumosas. Esta manada, que podia vaguear quase em liberdade pelo local, tornou-se numa atracção popular, recebendo a atenção de verdadeiras romarias de nova-iorquinos ao fim de semana.

Alternada/Contínua

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AC/DC: a guerra sem quartel que, na transição entre os séculos XIX e XX, opôs Thomas Edison a Nikola Tesla. A corrente contínua, defendida por Edison, acabaria por sair derrotada: com a tecnologia da altura, o seu transporte a longas distâncias implicava perdas incomportáveis. No outro canto do ringue, estava a Westinghouse Electric Co, armada com o trabalho do genial e misterioso Tesla, cientista de origem sérvia e reputação quase sobre-humana. Sabendo-se condenado à derrota, Edison recorreu a alguns golpes publicitários para persuadir o público dos riscos que a corrente alternada representaria: passando pela execução de animais e pelo patrocínio da primeira cadeira eléctrica. No domínio circense, Tesla também não esteve mal, encenado apresentações em que servia de condutor humano para acender lâmpadas. Apesar do desenlace que o aproveitamento hidroeléctrico do Niagara trouxe, só em 2005 é que se apagou o último sistema de distribuição pública de corrente contínua: em Manhattan muitos elevadores continuaram até então a usar os antigos circuitos de Edison. Ironicamente, sabe-se hoje que a corrente alternada de baixa frequência facilita a indução de fibrilhação ventricular, sendo assim um pouco mais perigosa.

Coisas que dão mau nome à Esquerda

Há muito que a malta do costume já nos tirou a pinta: sempre em pé de guerra com acusações estapafúrdias, sempre prontos a ensaiar grotescos levantamentos populares, cronicamente incapazes de entender o funcionamento do mundo real.
Notem que se trata de generalizações simplistas e redutoras, claro. Mas, de quando em vez, lá surge alguém que se empenha em dar-lhes uma amostra de razão. Fazendo eco de folclores ridículos via SMS; acusando de censura, nem mais, o doclisboa por se ter resguardado de um processo legal que talvez nem tivesse forma de custear; apontando hoje o dedo justiceiro para a Banca: que o que paga de impostos está “longe, muito longe, daquilo que legalmente deveria pagar”; que usufruiu de uma isenção fiscal para “depósitos colocados em Offshores”; que o “último registo de lucros da banca é da ordem dos 30%”, em pungente oposição às “famílias endividadas”.
Isto quando a realidade é bastante mais complexa. E menos passível de ser iluminada com tiradas estridentes, panfletárias e simplistas (claro que a Banca não paga menos do que a lei exige, apenas se agarra a todos os buracos da mesma; tratava-se sim de obrigações emitidas em paraísos fiscais, não de depósitos; 30%? De quê? ).
Pessoalmente, agradeço à Joana Amaral Dias por ter ajudado a afundar a última candidatura presidencial de Mário Soares; mas parece ideia recomendável que se abstenha de participações muito activas, por exemplo, na campanha pelo “sim” à despenalização da IVG.

Mais uma conversa da treta, a propósito do aborto

Eduardo Pitta acaba de retomar uma conhecida argumentação acerca da lei portuguesa que regulamenta o aborto. Conhecida e errada, aliás.
De acordo com a rediviva teoria, a lei existente é igual à espanhola sendo, portanto, bem capaz de dar conta do recado. Ou seja, não faz falta um referendo, urge sim obrigar os relapsos dos médicos a cumprir os preceitos legais: “a lei espanhola foi decalcada da nossa: permite o que se sabe porque, num Estado de Direito, as leis cumprem-se”.
Ciclicamente, esta invenção com aparência de coisa sensata vem de novo à tona. E importa relembrar de novo o óbvio:
O artigo 140.º do nosso Código Penal descreve os casos em que a IVG não é ilícita, começando por:
“a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;”
Por acaso, o artigo 417 bis do Código Penal dos nossos vizinhos até faz exigência parecida: “Que sea necesario para evitar un grave peligro para la vida o la salud física o psíquica de la embarazada”. Só que se nota uma crucial divergência, mesmo aos olhos de quem, como eu, não é jurista: a falta dos adjectivos “irreversível” ou “duradoura” a classificar os perigos que a saúde física ou psíquica da mulher grávida terá de correr. O que faz toda a diferença: imaginam algum psiquiatra a certificar que alguém — que não um convalescente de AVC ou de lobotomia — vai por certo ter problemas psíquicos indeléveis ou delongados? Claro que não.
Mas há mais. A Lei 90/97 veio deixar claro que “o Governo adoptará as providências organizativas e regulamentares necessárias à boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez”. Isto aconteceu com a Portaria n.º 189/98, que obriga à constituição de “comissões técnicas de certificação”, compostas por “três ou cinco médicos como membros efectivos e dois suplentes”, incluindo “a presença obrigatória de um obstetra/ecografista, de um neonatologista e, sempre que possível, de um geneticista, sendo os restantes elementos necessariamente possuidores de conhecimentos categorizados para a avaliação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez”. Coisa simples e pouco burocrática, claramente vocacionada para simplificar a vida às grávidas em risco. Eis como a lei se viu regulamentada com generosa abrangência.
Já se começa a tornar claro o abismo que separa esta situação da espanhola, não? É que lá, nas clínicas que hoje atraem inúmeras portuguesas, basta um “dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico de la especialidad correspondiente, distinto de aquel bajo cuya dirección se practique el aborto” para que a intervenção possa ocorrer.
Não, Eduardo. Como se vê, esta não é uma mera questão de “chiliques”.

Recordações em remix

A quase-revolucionária obra-prima de David Byrne e Brian Eno, My Life in the Bush of Ghosts foi recentemente objecto de uma reedição ampliada e melhorada. Para quem anda há 25 anos fascinado com a esta colecção de sobreposições de ritmos ocidentais com objets trouvés sonoros vários (de uma gravação de um exorcismo a orações em Árabe), eis uma excelente notícia. Para quem gosta de desfazer e remontar obras alheias até as transformar em coisa sua, também: no site dedicado a este projecto, dois dos temas originais estão disponíveis para download às peças, com total liberdade de uso para os remixers. Até por lá anda um top das melhores versões recebidas até agora. Não sei se é, como os autores afirmam, uma estreia mundial, mas a visita recomenda-se, mesmo aos que não têm inclinações para a bricolage musical.

Just another compassionate conservative

O Blasfemo CAA, por norma tão preocupado com a propriedade privada, resolveu agora fazer humor a propósito das recentes inundações. O facto de centenas de pessoas estarem neste momento a braços com prejuízos terríveis, para já nem mencionar a vida que se perdeu, pouco importa quando comparado com o fim último da coisa: gozar com quem anda a anunciar a iminência de um aquecimento global.
Um dia, ainda irei entender o fervor quase religioso com que esta malta se encarniça, sem ter de entender peva do assunto, contra qualquer preocupação com o estado do planeta. Eu, por mim, não tenho certezas absolutas sobre o efeito das actividades humanas no clima; mas parece-me da mais elementar prudência ir acautelando o futuro. Um dia destes ainda se prova mesmo que andámos a fazer asneira; o problema é que aí talvez seja tarde de mais para emendar a mão.

A soberba em forma de gente

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No “Público” de hoje, Miguel Sousa Tavares trata de trucidar o “Esta Noite a Liberdade”, livro de onde sacou à má fila, para usar a feliz expressão do Fernando Venâncio, algum “colorido narrativo”. Tal livro “não é ficção, é um relato histórico, e muito mau” e de lá só se aproveitam mesmo as fotografias. Não sei se a cruel descrição corresponde à verdade, pois não li a obra em (des)apreço. Mas dá para desconfiar de alguém com um umbigo de tal forma inflacionado que lhe tapa a vista e o bom senso ao ponto de se sair com esta: “Sem modéstia, escrevi um grande livro”. “Grande”, só se for pelo número de páginas. “Grandes” são obras como “Moby Dick” ou “Gravity’s Rainbow”. O resto é conversa.

AAA emigrou para a Twilight Zone?

Inspirado por um artigo que leu há pouco, André Abrantes Amaral resolveu agora que os EUA não têm nada de estar envergonhados pela iminência de abandonar as areias movediças do Iraque entregues à sua sorte. Não: deveriam andar em paradas e foguetório comemorativo. Na realidade, venceram a luta contra o terrorismo!
Juro que isto vem lá escrito: “É certo que o mundo não está mais seguro que em 1998, mas está bastante menos perigoso que o esperado no dia 11 de Setembro de 2001. Os EUA nunca mais foram atacados, várias células terroristas foram destruídas, esquemas de financiamento aniquilados. Hoje é bastante improvável um ataque da mesma envergadura ao ocorrido em Nova Iorque e Washington.”
O ponto de vista é o de um americano radicalmente isolacionista: o resto do mundo nem sequer existe. Os EUA não foram mais atacados mas da mesma sorte não se podem gabar alguns seus aliados. As células foram destruídas e outras tomaram logo o seu lugar, como se vê pela chuva de bombas que cai todos os dias no Iraque; quanto tempo demorará até que aquela malta recém-formada se espalhe pelo mundo? Quantos mais estarão agora mesmo a converter-se ao fanatismo e à violência? E “improvável” já foi o 11 de Setembro; só por uma incrível mistura de sorte e incompetência das autoridades americanas é que um bando de grunhos armados de x-actos conseguiu aquilo. E, mesmo assim, a fazer fé no recente alarme em Londres, não vejo onde está a improbabilidade de uma reprise.
Por fim, como pode um país cantar vitória quando se deixou transformar pelo seu inimigo? Escutas arbitrárias, detidos sem processo, Guantánamo, sadismo no Iraque… cada uma destas tristes constatações soa a toque de finados pelo país justo e livre que os EUA já foram. Amarga vitória, a que o Blasfemo agora celebra.
Ele diz “com confiança que, tanto o terrorismo como a Coreia do Norte são problemas do passado”. O solipsismo tem um novo e fulgurante paladino.

Coisas giras que se lêem na blogosfera…

João Miranda, o inultrapassável paladino da liberdade em todas as actividades humanas, parece achar bem que um estado possa declarar que um dado cidadão estrangeiro é “combatente irregular” e o trancafie ad eternum sem lhe dar sequer um vislumbre do interior de um tribunal.
Miguel Sousa Tavares, o iracundo flagelador de maus hábitos e morais vacilantes, é bem capaz de ter plagiado extensas passagens do seu êxito, o “Equador”.
Já andam por aí alguns blogues a favor do “não” no referendo sobre o aborto. Um dos quais até inclui alguns conhecidos nossos. Outro, onde pontifica um tal “Camisa Negra”, lança estrídulos apelos a manifestações, com slogans de indiscutível inspiração maoísta: “Contra as manobras dos Pró-Abortistas e seus Lacaios.”
Isto vai andar animado…

Santana Lopes no seu melhor

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Certamente sem querer, o nosso ex-primeiro-ministro (ainda agora parece impossível que uma tal osga lá tenha chegado, não é?) desmentiu o João Pedro Henriques. Este acusou há dias Sócrates de mentir: “Eu, por acaso, acompanhei a campanha eleitoral que lhe deu maioria absoluta e não me lembro nada de o ouvir dizer que sim, que em determinadas circunstâncias até poderia acabar com umas quantas SCUTs”.
Hoje, Santana veio testemunhar que não foi bem assim: “(Sócrates) disse em várias ocasiões que com ele não haveria portagens nessas mesmas SCUTs a não ser daqui a uns anos, quando o nível de desenvolvimento dessas terras já o permitisse”. (Eu, por acaso, já não me lembrava disto; mas também não “acompanhei a campanha eleitoral” com o empenho do JPH…)
Moral da história: nem a chatear os adversários o Santana é competente.
Depois, na continuação da mesma crónica, ele esforça-se por nos explicar que continua sem entender nada do que lhe aconteceu nas eleições fatais. Afinal, ele perdeu não porque os portugueses estivessem fartos de ver um asno narciso e autista no poder, mas sim porque Sócrates fez “batota política”! A sério. E finaliza em tom poético-ressabiado: “A política não pode continuar a ser feita assim. Como em tudo na vida, só vale a pena se for com decência, com verdade e se for bonito.”
A lata da criatura não tem limites. “Com verdade”? O fulano que conquistou a Câmara de Lisboa montado numa resma infindável de promessas mirabolantes quem nunca ninguém cumpriu tem o descaro de vir agora queixar-se? São irritações destas que ainda me vão rebentar um aneurisma.
Amigo leitor: se quiser um curso instantâneo de demagogia barata, consulte a lista (por certo parcial) de promessas de Santana Lopes, ao candidatar-se contra João Soares. Julgo que só as duas primeiras, em 22, foram parcialmente cumpridas:

Continuar a lerSantana Lopes no seu melhor

O Insurgente rocks!

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Na nova residência do Insurgente (notícia bem atrasada) há quem tente animar as hostes com tiradas a leste das habituais prédicas a desmentir o aquecimento global, a extinção do bacalhau, o fiasco do Iraque, a Evolução, etc., etc.
O bom Helder (não confundir com os outros elders) presenteia-nos hoje com uma pequena celebração da chegada do último disco dos Motörhead. Não sei se ainda atordoado pela audição da coisa em altos berros, esquece-se de mencionar os Hawkwind ao falar de Lemmy Kilminster. Pecado mortal. E ainda se lembra de evocar Chet Baker a propósito de umas tais last rock’n roll stars.
No problemo. A simples leitura de coisas como “P**a que o p***u!” (“pariu” agora é palavrão?) no sorumbático Insurgente inspira a indulgência. Continua assim, Helder: dá-lhes com força. Mas tem atenção com as companhias. É que as más ideologias são como as más drogas: mais cedo ou mais tarde, dão-nos cabo da cabeça…

Orgulho e preconceito

João Pereira Coutinho gosta de se imaginar um aristocrata do pensamento. Vai daí, como todos os parvenus, decreta que os demais não passam de ignaros — a custo organizados em “hordas”, ou “tropas fandangas”— sempre animados da “ignorância larvar” que agora diagnostica, na sua coluna no “Expresso”, a toda a nossa classe política. Para ele, o povo gasta os seus dias a ulular aleivosias, a quilómetros das verdades supremas que esvoaçam nos amplos espaços daquele crânio abençoado. É que o rapaz sonha-se o único a saber ler (ou a consultar resumos na Amazon…) e acha que conseguir soletrar “Oakeshott” é prova de sapiência e elegância. Hoje, prova é que que não foi grandemente dotado nem de uma nem de outra.
O tema é o aborto. Para variar, o menino declara-se incomodado com o ruído que os inferiores andam a fazer em seu redor, começando pelo primeiro-ministro. É que ele, JPC, até já decidiu que não estamos a falar de “mulheres presas (quantas foram?)” nem de “tragédias de vão de escada (quantas existem ao certo?)”. E eis como a ignorância confessa se vê promovida a opinião: ele não sabe quantas pessoas afecta o drama do aborto, logo parece-lhe lógico, como bom solipsista, menorizar a questão.
As perguntas que realmente interessam ao jovem iluminado são: “será que um embrião constitui vida? E, em caso afirmativo, será que o Estado tem uma palavra a dizer quando a cessação de vida pode ocorrer?”
O português empregue nestas “primevas” questões é deplorável e o seu significado nebuloso (que é isso do “constituir vida”? E quem é que alguma vez duvidou que um feto estivesse vivo?). Mas, mesmo assim, ele não tem dúvidas em responder “sim” a ambas. Lá saberá porquê.
O que eu nunca entendi muito bem nestas discussões é a razão de quase todos aceitarem a inexistência de actividade cerebral como definição aceitável de fim da vida humana mas parecerem incapazes de usar padrão simétrico para marcar o seu início. Se um embrião ainda não possui sistema nervoso central activo, estando o seu córtex desligado do tálamo, não é ainda um ser humano. Poderá sê-lo “em potência” ou “aos olhos de Deus”; mas é tão senciente quanto um feto anencefálico. E que médico levaria até ao fim uma gravidez dessas?
Acho óptimo que cada um preze a sua própria bússola moral e acalente a superstição de sua preferência; mas não tentem obrigar os outros a segui-las, por favor.

PS: um pouco ao lado, na mesma página do “Expresso”, Daniel Oliveira trata de nos explicar que “quem ganha seiscentos ou setecentos euros não é rico. Nem sequer é de classe média”. Abaixo desse patamar, viriam os “miseráveis”. Pois. Mas em 2004, o ordenado mensal médio em Portugal não chegou a 922 euros. 769 para as mulheres. Ilíquidos. Agora, basta imaginar uma daquelas bonitas e úteis curvas em forma de sino para se ver o quão longe anda o Daniel de saber o que é na realidade a “classe média” deste triste país.