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Don Duarte nos Infernos

Cheguei à hora pontual, as batidas vasculares superando os toques dos sinos da Igreja de São Francisco. O encontro fora um desastre.
Ela. Na imobilidade do fóssil, no grito silencioso, no alto da sua maturidade, filmava-me em câmara lenta, perscrutinando detalhes ofensivos, pormenores insultuosos. Ele. Imóvel, protegido por óculos sombrios, aguardava. As portas do Inferno abriram de par em par.
Ambos bebericavam um café sumido, desviando olhares, empedernidos na ignorância duma presença absurda. Agressiva e determinada, pedi um sumo de laranja, um pão com manteiga e um pingo.
Observei-lhe a cara de emplastro, caiada como um claustro na Primavera, as mãos ressequidas, o olho baço, os lábios insuficientes para o bâton, o corpo magro, apagado, sem atractivos, a lividez de um Outono latente, prenunciando o desgaste final.
A verdade, inimiga da máscara libertina, dançava sobre o tampo da mesa, rindo-se do desconforto de Don Duarte. A verdade queimava o ar de enxofre, prendendo Don Duarte em estalidos de mentira, na clareza e evidência dos crimes disseminados, na procura da mulher inconcebível.
Descortinei-lhe os olhos infernais, na combustão pesada do ódio contido, e a frieza dos gestos mortais nas mãos enlameadas de um húmus perdido. Os significantes convergiram no alcance da verdade e Don Duarte prostrou por terra, fugindo do espelho oferecido.

Cláudia

Alta cena, alta bronca

No Dia dos Namorados, o Duarte meteu-me os cornos. É que nem na Sexta-feira, dia 13, o dia me correra tão mal. No telemóvel dele, descobri uma “Coelhinha” (eu era a “Menina Linda”). A Coelhinha dizia assim: “Amor, vens hoje a casa almoçar?”. Sem ele ver, tirei o número da coelha, esperando o meu momento de glória: o da vingança.
No primeiro bar da Ribeira, fui à casa de banho. A minha vontade de mijar era muita, mas nem me lembrei de o fazer. Peguei no meu telemóvel (já passava da 1h da manhã) e telefonei. Tocou. Ninguém atendeu. Então escrevi: “Sou a namorada do Duarte. Agradecia que atendesse.” A coelha respondeu-me: “E eu sou a Senhoria do Duarte. Não tenho nenhum assunto a tratar com a Senhora.”
A Coelhinha, a senhoria dele?
O gajo, após ter levado com a minha crise de ciúmes e berros e palavrões à mistura, levou com mais:
-Então a senhoria? Convém graxar a senhoria, não convém? Umas facilidades e tal.
O Duarte, que entrara numa de mutismo tenso pouco habitual, lançou-me o olhar de Lúcifer, a besta das chamas.

Desde ontem não sei nada dele, mas ganhei uma amiga: a Coelhinha que se chama Diana.

Cláudia

Agradecimento

Eu costumo agradecer quando me oferecem algo. Todos os dias, ouvimos Bom dia, Obrigado, Desculpe, Com licença. E mesmo aqueles que não agradecem, por orgulho, por complexo, lá no fundo, agradecem, nem que isso se note após em actos. Há também os ingratos. A ingratidão. Contudo, como um dia, ouvira a determinada pessoa: Nunca te arrependas do bem que fazes.
Esta introdução, para quê? Para agradecer a influência positiva, fulcral, que o João Pedro da Costa teve sobre mim, ao indicar-me o caminho das traduções.
Esquecera-me das palavras e até da verdade que as próprias pedras teriam uma vida para além das leis imutáveis que nos querem impor. Esquecera-me de mim.
Portanto, fica aqui a minha gratidão para com o meu ex-colega da Faculdade e ex-blogueiro do Aspirina B.

Cláudia Rodrigues

NAMOREI UM TERRORISTA

Entendido em leis, perito em informática, poliglota, avesso à carne de porco e às bebidas alcoólicas, Mohammed nunca perdia uma oração às Sextas-feiras. No dia em que me conheceu, amaldiçoou Jesus Cristo e toda a cristandade. Eu não fazia parte dos planos.
Sou uma ocidental, mas não uso decotes pronunciados, desavergonhados. Não sou de falar alto, de mascar uma chiclete sem pudor. Enfim, cativei o “crânio” das traduções mais hieroglificamente orientais e da informática sem segredos.
Não sei se era vontade de Alá, mas ele não me tocava em parte alguma: só depois do casamento. O que eu sofria, Meu Deus. Travou-se então uma luta entre a cristã pouco católica que eu era com o mais íntegro dos muçulmanos.
Ofendendo os preceitos de Maomé, cedeu-me. Se era o que eu queria… Impus a regra mais básica numa situação dessas: o preservativo. Ao abrir a caixa, tremia pelo pecado que cometia: preservativos. Nunca na vida dele tinha usado semelhante coisa. Eu estava a pô-lo maluco.
Mohammed partiu para o acto como quem vai entrar num campo de batalha. Rompeu atabalhoadamente, esguichou duas ou três vezes e ficou hirto pela ignomínia cometida. Eu fiquei aquém da expectativa e concluí que mais me valia ficar pelos ocidentais.
Neste momento, encontra-se na Itália, perseguindo objectivos mais nobres do que a satisfação sexual de uma mulher na cama.

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Oferta da nossa amiga Cláudia, um ficção cheia de realidade.

Salazarofilia

Só consigo estar no Governo porque nunca saio da rotina. Como poderia aguentar estes anos a ganhar eleições, ir ao Parlamento responder a perguntas, correr a inaugurar?

Senhor Doutor Salazar

(citado em As Máscaras de Salazar, de Fernando Dacosta)

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Oferta da nossa amiga Cláudia para a inauguração oficial de 2009.

TI’ SILVINA

Da nossa amiga Cláudia, recebemos esta bela oferta:

Ti’ Silvina. Era assim que a nomeavam. Na voz da minha madrinha, havia censura, um cariz tabu numa qualquer tentativa de abordagem da minha parte. Era-me defendido indagar. Havia sol, luz e flores. Porque ofuscar o horizonte com perguntas tão inapropriadas para a minha idade?
O que havia de mal na Ti’ Silvina? Que teria ela feito para que a minha madrinha, tão racional, a quisesse afastar da esfera do real?
Ti’ Silvina trazia sempre um chapéu de palha espampanante de abas largas e laços coloridos. Ria, bebia, dançava, e confidenciava-me que os moços se apaixonavam por ela. Ti’ Silvina tinha 64 anos.

Todos os dias, via-a caminhar para a caixa do correio. Ti’ Silvina era analfabeta. Todos os dias, esperava uma carta do Primeiro Ministro.

Um dia em que decidiu não falar sobre o Governo, pois este continuava cerrado num silêncio de sepulcro, revelara-me que tinha uma colecção de bonecas de todos os tamanhos, expostas em cima da cama. Esperei que ela me dissesse que me ofereceria uma ou que teria uma em particular guardada só para mim, mas seguiu caminho, orgulhosa, altiva, a cantarolar uma ária popular.

Na festa da padroeira, apareceu feliz. Dançava com frenesi. Quantas saias traria ela naquela noite? O bâton carmesim invadia para além da linha natural dos lábios ressequidos e cerzidos, patenteando a figura triste do palhaço ou da boneca maltratada. John encontrava-se a meu lado. Soou no ar:
– It’s so sad.
Onde via ele tristeza numa pessoa daquela idade, com mais vida e alegria do que um qualquer seu conterrâneo? Com 64 anos, acreditava no amor e procurava em bailes e festas a pessoa que a faria feliz. Nunca tinha visto a Ti’ Silvina chorar. Era forte como a Serra de Montemuro, forte como a geada das manhãs de Inverno, forte como os madrugadores das labutas do bronze.

Um dia em que tudo parecia perfeito e o sol brilhava, a luz se expandia e as flores sorriam, atrevi-me:
– Maman, porque é que a Ti’ Silvina é assim?
Notei o primeiro impulso, movimento de repulsa. A rejeição. Porém, conformou-se, acalmou. Inalou o ar apaziguador daquela tarde amena e recebi as palavras de minha mãe:
– Ela não teve sorte. Perdeu o marido e o filho em África. Foi a partir daí que ela ficou assim.
Imaginar que ela teria sido uma mulher como as outras, comungando das mesmas preocupações, azedumes e contentamentos, afigurou-se-me monstruoso, terrível, o golpe que a transformara. Minha mãe prosseguia e através da névoa criada pelo meu cérebro eu distinguia:
– Passa a vida a escrever aos ministros a pedir os corpos que ficaram em África. O mais certo é terem desaparecido. Ela não sabe escrever, mas pede a quem sabe. Nunca obteve resposta. Já lá vão 20 anos.