A Arrojada Parúsia II

Arrebatados pela Segunda Vinda de Mestre Arroja, os Blasfemos andam imparáveis. Agora, descobrimos que a proposta de cedência remunerada de votos não era um improvável exercício de ironia. Afinal, era apenas uma forma de dar “ainda mais encanto ao fascinante mundo da especulação financeira”.
Claro que o importante é mesmo jardinar os tais encantos, não impedir que o poder político fique apenas ao alcance de quem tem capital para investir. Afinal, a fazer fé nos Blasfemos, já toda a gente vende o seu voto a troco de promessas mirabolantes, portanto nem iríamos dar pela diferença. Já que suportamos o Valentim, podemos bem passar a fazer dessa chaga vergonhosa a regra oficial.
Presumo que a venda antecipada dos proventos laborais futuros de crianças e adolescentes não seja ideia a deitar fora sem cuidadosa ponderação pelos auto-nomeados cardeais do pensamento ultra-liberal (nada mais natural, depois das vénias e do beija-mão a quem já se entreteve a gabar as virtudes económicas da escravatura, fechando o olho míope ao pequeno pormenor da liberdade dos envolvidos). Tudo a bem dos “encantos” da especulação mobiliária; mas desde que não envolvesse os rebentos dos liberais, é bom de ver. Essas coisas da compra e venda da consciência são mesmo próprias do povinho: gente ilustrada fica de fora, a intermediar e dirigir tais transações cheias de encanto.

A Arrojada Parúsia

Nem vale muito a pena glosar pela milésima vez as fantasias alucinadas do regressado Professor Arroja, agora aclamado como santo padroeiro da Liberdade, nem mais. Do insigne combatente contra a tirania, recordo uma intervenção na TSF, já há um ror de anos, em que ele defendia o futebol como sendo a indústria de maior êxito, mesmo internacional, do nosso piolhoso país. Vai daí, bom, bom seria aplicar os seus métodos de gestão ao governo e convidar o supra-sumo dos empresários de sucesso, Pinto da Costa, para nos capitanear.
Não riam, que a coisa é verídica e séria. Para uma legião de académicos sem contacto com as realidades do nosso país, é mesmo boa ideia deixar os empresários lusos em roda livre. Que a coisa redunde quase sempre em conluios, cambalachos e outros arranjinhos limitadores da concorrência e da liberdade de escolha, é uma minudência sem qualquer interesse. Importa é o lindo mundo da teoria, onde o futebol joga com toda a lisura, sem fugas aos impostos nem corrupções, onde um pacote de sal tem o preço escolhido pelo mercado e onde figuras como Pinto da Costa e Valentim Loureiro são faróis a iluminar o nosso destino glorioso, entregues à Mão Invisível.
A liberdade de sermos dominados por quem pague mais. Eis o arrebatador programa destes génios incompreendidos.

Pode o Direito ser a alternativa à cegueira de uma Guerra Perpétua?

Douglas Burgess, na Legal Affairs

TO UNDERSTAND THE POTENTIAL OF DEFINING TERRORISM as a species of piracy, consider the words of the 16th-century jurist Alberico Gentili’s De jure belli: “Pirates are common enemies, and they are attacked with impunity by all, because they are without the pale of the law. They are scorners of the law of nations; hence they find no protection in that law.” Gentili, and many people who came after him, recognized piracy as a threat, not merely to the state but to the idea of statehood itself. All states were equally obligated to stamp out this menace, whether or not they had been a victim of piracy. This was codified explicitly in the 1856 Declaration of Paris, and it has been reiterated as a guiding principle of piracy law ever since. Ironically, it is the very effectiveness of this criminalization that has marginalized piracy and made it seem an arcane and almost romantic offense. Pirates no longer terrorize the seas because a concerted effort among the European states in the 19th century almost eradicated them. It is just such a concerted effort that all states must now undertake against terrorists, until the crime of terrorism becomes as remote and obsolete as piracy.

But we are still very far from such recognition for the present war on terror. President Bush and others persist in depicting this new form of state vs. nonstate warfare in traditional terms, as with the president’s declaration of June 2, 2004, that “like the Second World War, our present conflict began with a ruthless surprise attack on the United States.” He went on: “We will not forget that treachery and we will accept nothing less than victory over the enemy.” What constitutes ultimate victory against an enemy that lacks territorial boundaries and governmental structures, in a war without fields of battle or codes of conduct? We can’t capture the enemy’s capital and hoist our flag in triumph. The possibility of perpetual embattlement looms before us.

If the war on terror becomes akin to war against the pirates, however, the situation would change. First, the crime of terrorism would be defined and proscribed internationally, and terrorists would be properly understood as enemies of all states. This legal status carries significant advantages, chief among them the possibility of universal jurisdiction. Terrorists, as hostis humani generis, could be captured wherever they were found, by anyone who found them. Pirates are currently the only form of criminals subject to this special jurisdiction.

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Futebol: crueldade e ironia

Como se não lhe bastasse ter conduzido o Gil Vicente para os labirínticos meandros jurídicos do tristemente célebre Caso Mateus, o inenarrável presidente Fiúza insistiu, durante semanas, numa estratégia de tudo ou nada, que passava pelo recurso sistemático aos tribunais e por consecutivas faltas de comparência aos jogos da Liga de Honra. Esta semana, um tribunal de Lisboa indeferiu a última esperança legal dos gilistas e o clube lá teve que se deslocar a Vila do Conde, para defrontar o Rio Ave e evitar males maiores. O jogo foi ontem. O resultado: uma derrota por 1-0. E como é que aconteceu essa derrota, após vários meses de inactividade? Com um auto-golo, sempre humilhante e traumático. Um golo na própria baliza, depois de todos os tiros nos pés. Deve ser a isto que se chama justiça poética.

Aspirina V

Assim de repente, Fernando, não imagino este blogue sem a tua prosa refinada, a tua candura, a tua generosidade, as tuas provocações e o teu bom senso. Vê lá isso.

PS – Se a pré-despedida for apenas um estratagema para tirar da toca os colaboradores tresmalhados, já viste que acertaste na mouche, pelo menos na parte que me diz respeito.

Assinatura ilegível

Lisboa. Sexta-feira, 29 de Maio de 1986

Pela primeira vez neste país, está estampada, visível, na capa de um semanário de grande tiragem, a expressão ‘bancos de esperma’. Ouço o miúdo perguntar ao pai: ‘Ó pai, o que é esperma?’. Está o pai com visitas, está o pai na cervejaria, no estádio, está o pai com a mãe sentado no sofá. E este pequeno frémito do pai resume uma civilização.

Lisboa, 3 de Agosto de 1986

Querida Kárin,

Foi com certo contentamento e uma mais certa incredulidade que li a tua carta que ontem me chegou. Dentro de menos de três meses – se bem fiz as contas – o teu bebé irá nascer. E eu passo desde ontem o tempo a segredar, que digo eu, a gritar a mim próprio que eu nada tenho a ver com isso. Que o problema e, neste caso, também a alegria são exclusivamente teus. Quiseste de mim esse filho, agradeceste-mo com gentileza que eu jamais pensei me coubesse em sorte. Mas, com isso, estavam as contas saldadas.

Quiseste que o teu filho fosse meu. Desculpa, exprimo-me mal. Quiseste que o filho que tivesses achasse em mim o progenitor. Progenitor, sublinhaste – não ‘pai’. O que até (acrescentaste, como prevendo reservas minhas) nada tinha de original, pois umas amigas tuas tinham tido pouco antes um filho ‘pelo mesmo processo’.

O processo era simples, pude convir. Um boião esterilizado, um termómetro e um homem. O termómetro indica o dia azado, o homem produz, o boião transporta. O transporte devia fazer-se rápido, mas eram só dois quarteirões. Nada de listas de espera, nada de médicos e enfermeiras, nada de milhares de coroas para as clínicas de Estocolmo. Eu tocava à porta, tu abrias, um beijo furtivo, e reentravas na solidão. Que era só para a quebrares que nela agora te fechavas.

‘Descansa, ele há-de saber quem foi o progenitor’ – asseguravas. E eu ria-me intimamente de tantas garantias. Podes crer: tanto se me dava. Tinha achado engraçada a proposta que me fizeras, e havia em toda aquela andança certa aventura. E nem a gratidão de que afiançavas estar repleta conseguia enternecer-me. Pensava, sim (e quem mo levaria a mal), que o ‘processo’ era, como dizer, passível de simplificação. Dispensava-se o boião, as distâncias encurtavam grandemente. Mil vezes me propus fazer te essa contraproposta, com delicadeza suma. Mas mil vezes me dei conta de que nada indicava que só a mim me surgissem tais espertezas. Era evidente que isso não te estava nos propósitos. E não era já excelente elogio o que me fazias?

Porque, disso estou certo, não era só pelos meus olhos verdes ou pelo alourado dos meus cabelos que me pediras colaboração. Tu sabias que eu nunca te humilharia ao ponto de te lembrar, nem logo nem jamais, que também havia para essas coisas processos mais simples.

Agora a criancinha vai nascer. Crescerá sueco ou sueca. E um dia, daqui a muito tempo, perguntar-se-á, perguntará: Quem é o meu pai? Agora sou eu que to peço: Diz-lhe.

Teu do coração,

(assinatura ilegível)

de «Um Selvagem ao Piano»