Há uns dias, eu e o Zé Mário passámos em revista o pelotão de desertores da extrema-esquerda que hoje engorda as engravatadas fileiras do liberalismo. Confesso que dedicámos longos minutos à patusca figura de João Carlos Espada, o oxfordiano de obra invisível e famoso amigo póstumo de Karl Popper, antes um assanhado controleiro marxista-leninista-estalinista.
A páginas tantas, pergunta-me o Zé Mário: “será que o inverso também é possível, e muita desta malta que hoje escreve em blogues liberais vai dar em esquerdista daqui a uns anos?”
Por muito que me divertisse a visão do João Miranda de T-shirt do Che ou do Luciano Amaral numa manif de braço dado com a Odete Santos, tive de ser realista: “Não me parece. Aquilo deve oferecer melhores condições que a Esquerda. Pensando bem, é igualzinho ao que se passa com a homossexualidade: os gajos que para lá vão nunca voltam.”
Arquivo da Categoria: Luis Rainha
Ironias da política americana

O caramelo que se refugiou no Champagne Squadron, a milhares de quilómetros da guerra, conseguiu fazer passar a ideia de que John Kerry, ex-combatente no Vietname, insultou os soldados americanos.
A equipa de spin doctors dos republicanos continua em forma. Kerry continua a dar provas de que não nasceu para isto da política. Bush, o homem das mil gaffes, continua a gozar de um estatuto único: a ele, todos os deslizes são perdoados com um encolher de ombros.
O Movable Type está tipo imóvel
Momento Bandarra
Algumas expressões que vamos ouvir muitas vezes no futuro próximo:Read/Write Web; WebOS; Parakey.
Os 10 Mandamentos Liberais

Com a recente confissão de Pedro Arroja — “O liberalismo é um produto do cristianismo e não é viável sem ele” — confirma-se algo de que sempre desconfiei: a versão do liberalismo professada por alguns nossos amiguinhos de folguedos é mais uma questão de fé que de razão. Aliás, bastava ler as suas reacções ao relatório Stern e os remédios que apontam para as alterações antropogénicas do clima (esquentadores inteligentes e SUVs híbridos, p. ex.) para topar que tanto fervor evangélico, tanta cegueira voluntária, só podia mesmo brotar de obsessões religiosas, não de pensamento sóbrio.
Depois desta revelação, os nossos intrépidos repórteres puseram-se em campo. Penetrando com ousadia na sede lusa do Grande Templo Liberal, apoderaram-se de um draft espantoso. Trata-se, nem mais nem menos, dos 10 Mandamentos Liberais, como constavam nas tábuas que o ressuscitado e venerando profeta Arroja trouxe da sua última visita a Chicago. Leiam e ponderem.
1. Amar o Mercado sobre todas as coisas.
2. Usar o nome da Liberdade sempre que possível; clamando, acima de tudo, que as ideias dos outros (leia-se “a Esquerda”) a ofendem.
3. Nunca, mesmo em momentos de fraqueza, não rir ao mencionar o “Aquecimento Global”.
4. Honrar qualquer governo dos EUA, desde que Republicano. Idem para Israel, mas independentemente do seu governo.
5. Abjurar a ideia de que a sociedade deve proteger os mais fracos; trata-se de uma tirania insuportável sobre os mais fortes e ricos.
6. Reconhecer na Iniciativa Privada infindas virtudes miraculosas e lutar quotidianamente para que mais e mais aspectos das nossas vidas sejam entregues aos iluminados desígnios dos Empresários.
7. Denunciar a incapacidade total do Estado para fazer seja o que for sem meter água.
8. Recusar um só tostão dos contribuintes à Cultura. Quem precisa de Brecht se pode ter La Féria? A quem interessará Emanuel Nunes quando anda por aí a lucrativa Ruth Marlene?
9. Atribuir aos madraços dos trabalhadores as culpas em qualquer conflito laboral ou em qualquer coisa que nos corra genericamente mal.
10. Acusar quem não acate qualquer um dos Mandamentos supra de iliteracia económica, corrupção científica, má-fé, ateísmo ou mesmo — t’arrenego! — comunismo.
É da minha vista…
Uma noite no football
Pela primeira vez num quarto de século, fui assistir a uma partida de futebol profissional. Ficou-me na retentiva o simpático rapaz vestido de verde que fez o primeiro golo do SLB e a assistência para o segundo. Imune a essas desventuras, a claque do Celtic acabou o jogo com palmas e cânticos; afinal, e ao contrário do que pensam os tugas, futebol é festa, não drama e depressão. Mas também eu cantaria se soubesse que estava prestes a regressar a um país civilizado. Cá fora, os adeptos do Benfica agradeciam a visita dos irlandeses com simpáticos “Celtic go home”. Enfim; a tristeza do costume.
Sol a mais
O “Sol” é mais ou menos o que eu esperava do seu director/inventor: uma versão chunga do “Expresso”. Mas o pior é mesmo o ramalhete de cronistas que por ali se acoitou. A coisa desafia a imaginação.
Começando pelo inenarrável Luís Filipe Borges, que vem esparramar a sua absoluta falta de graça no suplemento “Tabu”. Um exemplo? Isto: “Daqui a um ano: Madonna recebeu mais uma encomenda de África mas, inadvertidamente, adoptou um pigmeu por engano.” Nunca pensei que este dia nascesse: sinto uma apertada saudade do Badaró. Na mesma revista ainda surge a Bomba, com os seus típicos estrugidos que misturam “espargatas irrepreensíveis”, uma “super-dupla de criadores” de moda e descrições empolgadas de… um jantar no Império. Deve haver quem goste.
Mas o “Sol” propriamente dito também se apresenta como um bestiário da crónica indigente: o conhecido industrial do cinema António Pedro Vasconcelos a insinuar que Pedro Costa fez “No Quarto da Vanda” apenas porque não tinha dinheiro para filmar pastelões tamanho-família como o “Titanic”; Margarida Rebelo Pinto auto-investida no cargo de “Carrie Bradshaw da Bobadela” perorando sobre as parecenças entre um prato de ostras e o cunnilingus (ideia assaz original e um primor de requinte); o esforçado director, himself, que acabou de reparar que as mulheres já não vivem à frente dos fogões e nos anuncia com estrépito a chegada de uns ditos “Casais do Futuro”, em que ambos trabalham ao mesmo nível: “as mulheres começam a não aceitar ficar na sombra dos ‘grandes homens’, querem ter existência própria”. As desavergonhadas; as rematadas insurgentes! No meio da desgraça, Paulo Portas, com um interessante digest sobre a revolução húngara de 1956, até consegue fazer a pretendida figura de estadista ilustrado.
Como não tenciono comprar esta espécie de jornal, a coisa não me apoquenta por aí além. Aliás, até vejo vantagens em semelhante concentração de banalidade, mau gosto e tontice: como a minha mãe diz sempre que vê um casal composto por duas criaturas execráveis, “ao menos, assim só se estraga uma casa.”
Interrupção voluntária do rigor
Eduardo Pitta continua sem perceber muito bem onde é que meteu água, no seu primeiro post acerca da IVG. Mais uma vez: não é apenas ao requerer “comissões de certificação” que a legislação lusa difere da espanhola. É, antes de tudo o mais, na exigência de “perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida”. Alguém julgará que é fácil determinar que uma “lesão psíquica” vai ser duradoura?
Depois, as tais comissões não se limitam, como o Eduardo pensa, a obstetras, com ou sem “tomates”: elas têm de incluir “a presença obrigatória de um obstetra/ecografista, de um neonatologista e, sempre que possível, de um geneticista, sendo os restantes elementos necessariamente possuidores de conhecimentos categorizados para a avaliação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez”.
Finaliza assim a coisa: “Por que razão a lei funciona em Espanha e aqui não? Porque em Espanha a classe médica endossa à mulher a responsabilidade de declarar se há, ou não, dano psíquico, e se o mesmo tem, ou não, carácter reversível.” Errado, errado, errado.
1- A lei funciona em Espanha porque é diferente da nossa, quer na sua formulação, quer na posterior regulamentação;
2- A classe médica espanhola não “endossa” coisa alguma à mulher: ali, a IVG carece de um “dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico de la especialidad correspondiente, distinto de aquel bajo cuya dirección se practique el aborto”;
3- A avaliação do “carácter reversível” dos danos psicológicos não é da responsabilidade de ninguém, pois essa exigência não faz parte da lei espanhola.
Mas será que custa assim tanto investigar um pouco os assuntos antes de emitir sentenças definitivas e grandiloquentes?
Vermilion Heights —

A pequena cidade do Illinois onde ocorreu, no dia 19 de Junho, o confronto entre Cutter e o famigerado “Elefante Eléctrico”. O que ali aconteceu ao certo jamais será conhecido. Da refrega, sobraram os restos calcinados de dois jovens membros da Irmandade, um monte fumegante de peças metálicas derretidas — tudo o que restou da enigmática arma de Nikola Tesla — e um enorme mistério a pairar sobre o desaparecimento de Abraham Cutter. Fosse ou não o espectro furioso de elefanta Topsy a enfrentar naquela madrugada chuvosa os raios de Tesla, certo é que a assombração de 1903 não mais voltou a ser vista.
Tesla, Nikola —

Hoje venerado como uma espécie de semideus da Ciência, um profeta vindo ao mundo cedo demais, Tesla é dificilmente distinguível do belo mito que o recobre. Além da invenção do motor a corrente alternada, as suas pesquisas levaram-no a registar patentes em domínios tão distantes como a robótica, as ondas de rádio, a balística, a física nuclear, os raios X, a supercondutividade. Os seus adoradores mais imaginativos creditam-lhe ainda a capacidade de gerar terramotos, a criação de um raio da morte que poderia destruir aviões a centenas de quilómetros, a descoberta de sinais de rádio extraterrestres, a refutação da Relatividade de Einstein e a transmissão sem fios de grandes quantidades de electricidade. O facto de os seus documentos terem sido confiscados pelo FBI e ocultos sob o selo “muito secreto” no dia seguinte ao da sua morte só veio aumentar a sua fama de génio maldito. Tesla foi um apoiante da Irmandade do Novo Paradigma, financiando-a generosamente nos seus dias de maior desafogo, embora nunca se lhe tenham conhecido grandes fervores religiosos. É certo que, pouco depois da sessão com os irmãos Eddy, Cutter visitou a Torre de Wardenclyffe, onde o cientista trabalhava no seu projecto de transmissão de energia à distância. Terá dali saído com um misterioso vagão coberto, carregando um “gerador de raios de partículas” ou canhão de plasma, segundo as teorias. Uma arma para matar espíritos, portanto.
Séance —

Em Maio do mesmo ano, Abraham Cutter terá participado numa sessão espírita com o par de médiuns mais famoso de sempre: os irmãos William e Horatio Eddy, descobertos 30 anos antes pelo coronel Henry Steel Olcott. Ao inquirir os videntes sobre a misteriosa fera ectoplásmica que assombrava o Sul dos EUA, os convivas viram-se face a um espectro que se materializou na sala envolto por “vapores nauseabundos que lhe ocultavam as feições”, de acordo com a teósofa Margaret Nelson, uma das organizadoras desta séance. O espírito declarou ser William Kemmler, a primeira vítima da letal da cadeira de Edison. A sessão acabou por ser invulgarmente dura e tensa, levando a que quase todos os participantes a abandonassem a meio, transidos de maus presságios e de um frio intenso. Apenas Cutter e os irmãos Eddy terão aguentado até ao final. Pelo pouco que Horatio revelou anos depois, o espírito de Kemmler tê-los-á alertado para o perigo que as aparições de Topsy representavam para todo o planeta: a presença de Deus no mundo estava a desfazer-se, contaminada por aquela abominação que ganhava força de dia para dia, alimentada pelos cabos de alta-tensão. Ao que parece, o alcoólico e analfabeto Kemmler ganhara vocabulário e cultura invulgares, no mundo do Além… Certo é que Cutter saiu do casebre no Vermont onde viviam os Eddy com a missão auto-atribuída de pôr um fim àquelas aparições. E com a localização precisa da próxima irrupção de Topsy no nosso plano da realidade.
Memphis —

Nos arredores desta cidade do Tenessee, aconteceu a primeira das supostas aparições post-mortem de Topsy. Corria a noite de 17 de Março de 1903, quando dois vigilantes dos caminhos de ferro observaram uma “nuvem luminosa” a ganhar “corpo e peso” mesmo debaixo de um poste eléctrico junto a uma estação de comboios. Um deles, Joseph Mallard, aproximou-se no momento em que a “nuvem” coalesceu numa forma gigantesca, “assente em quatro patas”. No meio de urros terríveis, aquela massa de luz avançou para o pobre homem. Segundos depois, ele caiu carbonizado por uma descarga eléctrica de intensidade incalculável. O seu colega deu início ao frenesi que envolveu as seguintes visões de paquidermes luminosos quando garantiu que aquilo lhe parecera “a alma de um elefante furioso”. Alguns jornais do dia seguinte ligaram a tragédia à morte, semanas antes, de Topsy. Logo de seguida, quase ao ritmo de uma aparição por noite, as investidas fantasmagóricas sucederam-se um pouco por todo o país, sempre por perto de postes de electricidade, sempre no meio de bramidos de fazer gelar o sangue. Provavelmente, poucas passaram de ataques de histeria. Mas, fosse como fosse, nascera a lenda do Elefante Eléctrico.
Execução —

Artigo do jornal Commercial Advertiser de 5 de Janeiro de 1903: “Topsy, a irascível elefanta de Coney Island, foi abatida no Luna Park, ontem à tarde. A execução foi testemunhada por mais de 1.500 espectadores curiosos que viajaram até à ilha para ver o fim do grande animal a que tinham dado amendoins e bolos em Verões que já lá vão. Para tornar a execução de Topsy rápida e certa, deram-lhe 460 gramas de cianeto, misturado com cenouras. Então, um cabo foi colocado ao redor do seu pescoço, com uma ponta presa a um motor a vapor e a outra ligada a um poste. De seguida, colocaram nas suas patas sandálias de madeira revestidas a cobre. Estes eléctrodos foram ligados por fios de cobre à central eléctrica Edison e uma corrente de 6.000 volts atravessou o seu corpo. A grande besta morreu sem um urro nem um gemido”. O pequeno filme que a equipa do grande inventor fez deste elefanticídio ainda hoje circula pela Internet.
Edison, Thomas Alva —

A sua reputação de Prometeu contemporâneo, de inventor inexaurível, eclipsou durante décadas a herança de Tesla: o homem prático que confiava mais na experiência do que em teorias e cálculos complexos versus o génio excêntrico que se dispersava por todos os ramos do saber sem conseguir garantir lucros ou reputação firme em nenhum deles. Do seu laboratório em Menlo Park saíram inovações em quase todos os domínios da vida contemporânea: do gramofone ao cinema, da lâmpada eléctrica à pistola de tatuagem. A aposta na corrente contínua levou-o a esquecer a sua oposição à pena de morte, empenhando-se em propagandear as virtudes da cadeira eléctrica alimentada a corrente alternada. A execução de Topsy, que ele filmou com o seu Kinetoscope, acabou por ser um golpe já desesperado numa guerra havia muito decidida e perdida.
Dirigíveis Misteriosos —

Objectos voadores não identificados que enxamearam os céus dos estados ocidentais dos EUA em 1896 e 1897. De forma cilíndrica e aparentados com os dirigíveis, apresentavam luzes e ruídos bizarros, gozando de métodos de propulsão desconhecidos na época. Mais estranhos ainda eram os seus ocupantes: desde cavalheiros bem vestidos que se declaravam a caminho de Cuba para participar na guerra hispano-americana até putativos descendentes das tribos perdidas de Israel, havia de tudo um pouco. Em comum, todos patenteavam uma grande vontade de comunicar com as testemunhas dos seus voos e uma afabilidade notável, mesmo quando se entretinham a raptar cabeças de gado. Em 1909, algumas zonas de Inglaterra puderam assistir a uma reedição do fenómeno. Estes antepassados dos discos voadores foram evocados por Cutter ainda no início do “Caso Topsy”. E partilharam uma característica peculiar com os Viajantes Loucos, seus contemporâneos: a rapidez com que a imaginação popular os esqueceu. Uma década depois da sua chegada, já quase ninguém os recordava. Hoje, estes relatos surgem-nos como incongruências anacrónicas, aberrações em que dificilmente conseguimos acreditar. Ovnis nos ares e manadas de zombies migratórios nos prados… tudo isto soa mais a uma fantástica História alternativa do que a algo que pudesse mesmo ter ocorrido no pacato século XIX.
Dadas, Albert —

O primeiro “Viajante Louco” — diagnosticado em 1886 — era um humilde trabalhador parisiense que começava a sentir uma vontade irresistível de viajar sempre que ouvia falar numa qualquer paragem longínqua; pouco depois, acabava invariavelmente por se pôr a caminho até alcançar destinos improváveis, por vezes a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Uma vez terminada a peregrinação insensata, desprovido de qualquer memória ou pista sobre a sua identidade, ele tratava de angariar o dinheiro suficiente para regressar de comboio. Só que perdia sempre o rumo a meio do trajecto, embarcando noutra viagem incompreensível, depois de rasgar mais uma vez os seus documentos. Constantinopla, Argel e Moscovo foram cidades nos itinerários destas demandas não de descoberta mas sim de esquecimento. Depois, à medida que relatos de tais viagens sem rumo transbordavam das revistas médicas para os jornais europeus, os transes peripatéticos de Dadas começaram a infectar a imaginação popular. E pouco tardou até que eclodisse uma verdadeira epidemia de Fugas Dissociativas, denominação actual deste distúrbio. Os contaminados partiam sobretudo de França, mas logo os caminhos da Alemanha, Rússia e Itália se viram juncados de tristes viajantes de olhos vagos e passos obsessivos. Abraham Cutter sustentava que estes nómadas alucinados obedeciam aos ditames de uma Egosfera desequilibrada, como bússolas humanas condenadas a perseguir um Norte sempre imprevisível e errático.
Cutter, Abraham —

Membro fundador da Sociedade Teosófica, recusou-se a acompanhar o coronel Henry Steel Olcott na migração da seita para a Índia, em 1876. Fundou de seguida a mais discreta Irmandade do Novo Paradigma, onde pode expandir o seu peculiar conceito de “Egosfera”. Esta, uma evolução do “sétimo corpo”, ou Atma, dos teosofistas, seria um campo de energia senciente que envolve a Terra, gerada por todos os organismos do planeta. Para Cutter, a Egosfera seria uma interface com o próprio Deus e também um ente ainda em crescimento, prestes a despertar para a consciência. Ele analisou delongadamente eventos psicossociais como a epidemia dos “Viajantes Loucos” do final do século XIX e a vaga de aparições de “Dirigíveis Misteriosos” que assolou os EUA no mesmo período. Cutter postulava que comportamentos anómalos e visões inexplicáveis eram apenas sintomas de distúrbios na Egosfera: a sua interacção com espíritos humanos e com a própria matéria inanimada estaria a ser distorcida pelo uso cada vez mais disseminado da electricidade. Claro está que o caso Topsy não poderia deixar de o atrair; no seu último artigo, publicado no Boston Chronicle sob o revelador título “Visitors from Within”, este visionário semi-louco fez um levantamento de todos os fenómenos similares até então recenseados e teceu uma complexa rede de relações entre essas anomalias e a sua peculiar cosmovisão. O seu desaparecimento nunca explicado deu a derradeira nota insólita à biografia do último grande místico americano.
Condenação —

Quando Topsy fez a sua terceira vítima mortal, os seus donos, a dupla de empresários do showbusiness Thompson e Dundy, decidiram que era hora de fazer algo ao animal endemoninhado. E, se possível, retirar algum lucro do processo. Assim, foi anunciada a execução pública da elefanta assassina, por enforcamento. Os defensores dos animais protestaram ante a crueldade inaudita do método proposto. E a electrocussão surgiu, com alguma ajuda de Edison, como a alternativa natural: o estado de Nova Iorque substituíra pouco antes a forca pela moderna e mais “humana” cadeira eléctrica.
Cadeira Eléctrica —

William Kemmler, condenado pelo assassínio a golpes de machado da sua mulher Tillie, morreu em 1890, tendo sido agraciado com a dúbia honra de estrear a cadeira eléctrica. Esta, obra de alguns engenheiros ao serviço de Thomas Edison, era alimentada por um gerador de corrente alternada adquirido em segunda mão, pois a Westinghouse, seu fabricante, recusou-se a vender um para tal fim. A execução correu mal: a primeira descarga eléctrica, de 17 segundos, não matou o condenado. Enquanto o gerador recarregava, Kemmler gemia e contorcia-se, preso à cadeira. O segundo choque, com maior voltagem, durou mais de um minuto e acabou por matá-lo, numa nuvem de fumo de carne queimada que agoniou todos os espectadores. No seu julgamento, várias testemunhas atribuíram grande parte das desavenças do casal Kemmler a um caso que Tillie teria mantido com um jovem chamado… Jim Fielding. Não é certo que se tratasse do mesmo indivíduo que veio depois a morrer sob as patas de Topsy.