Pimenta e pão de milho

Hoje eu vou-lhe contar umas coisas daqueles tempos, mas peço que as escreva direito. Eu falo torto porque não tenho letras, mas o senhor sabe o que eu quero dizer. O pessoal ri-se da gente, dos modos como a gente fala, mas se os senhores escrevem isso tal e qual a gente fala não falta quem diga que é… como se diz?… Literatura, é isso. Quer dizer que a gente fala, e dá para rir; os senhores escrevem, e levam palmas.
Eu não aprendi a ler porque havia só uma escola de rapazes, alguns cinquenta, ou mais, do professor Francisco Costa, que parece que depois foi posto daqui para fora de castigo, porque não gostava do Salazar. Acho que foi para Setúbal, mais ou menos por trinta e um. Bem, mas a verdade é que meu pai precisava de mim para trabalhar, minha mãe teve oito filhos, morreram dois rapazes e duas raparigas, de machos fiquei só eu e meu irmão, era preciso dar ao gadanho se a gente queria comer. Lembro-me de uma vez à noite estar deitado cheio de fome, a gente não tinha ceado, minha mãe deu-nos água quebrada da friura para beber e enganar o estômago, e eu ia pedir uma nica de pão, mas mal disse “mamã” ela percebeu que eu ia pedir de comer e deu logo um assopro na luz, apagou-a, a modos que quando eu disse “tenho fome” ela respondeu “agora já apaguei a luz”. É triste, e ainda hoje tenho pena dela, que eu ouvi-a chorar na cama, e foi por não ter pão para dar à gente.
Já se sabe que muitas vezes se comeu pão de milho com pimenta salgada, o sal e a água que se bebia enganavam mais a fome do que o resto, era como as sardinhas de Lisboa, aquilo era só sal mas consolava a comer. O senhor pode não acreditar mas uma sardinha de Lisboa dava para a gente todos, a barriga não era sempre para o mesmo, era cada um a sua vez, porque era o que todos gostavam mais. A gente comia mais pelo cheiro que outra coisa, com uma grande tigela de chá e pão de milho, já se sabe, que o de trigo era vê-lo.
Meu pai, que Deus lá tem, se Deus não acode não chegava a ver os filhos crescer. Deu-lhe uma pneumonia, mas a gente pensava que era gripe, foi-se aguentando com chazinhos com uma nica de açúcar, que minha irmã Conceição ia comprar por um ovo, e ainda trazia o petróleo e uma unha de queijo para meu pai meter na boca. Quando minha mãe viu que aquilo ia cada vez pior, chamou o senhor doutor, ele viu meu pai naquele estado, chamou minha mãe de parte e perguntou “Maria do Rosário, tens uns dois contos de rei?” Acho que foi isso, dois contos de rei. Minha mãe tinha a graça de Deus que é grande, disse “ó senhor doutor, para que é que é preciso os dois contos de rei?” O senhor doutor disse que meu pai estava difícil de se salvar, mas podia experimentar penicilina, que era remédio novo nesse tempo e era muito caro porque parece que vinha de Espanha, e disse a minha mãe “já tens os filhos criados, tem paciência que o teu homem não está nada bom, vai contando com o pior.”
Aquilo foi de frio que ele apanhou. Dizem que agora não faz frio como antigamente, mas experimente o senhor a vestir roupinha de cotim por riba da pele e dormir numa casa que o vento entrava por todos os buracos, tapado com mantas de retalhos, e veja se não há frio como naquele tempo. E descalço por esses caminhos, que não havia sapatos, eu só tomei a Nosso Senhor quando os pés serviram nos sapatos de meu irmão. E meu pai tomou a Nosso Senhor descalço, e não foi só ele, que só teve um par de sapatos na vida toda, os do casamento. E sabe como foi o jantar dos noivos de meu pai e minha mãe? Pão de trigo com queijo de cabra, uns canjirões de vinho e uns bolos de massa sovada que uma tia de meu pai cozeu. Mas quando havia casamentos quase toda a gente mandava aos noivos um prato de louça fina, não era da Lagoa, cheio de trigo. O prato ia de oferta com o trigo, tudo junto dava para as primeiras cozeduras ou para guardar para a festa do Santíssimo e do Natal, que era isto o mais certo. Agora não falta fartura, mas naquele tempo as pessoas eram mais amoráveis, acho eu.

38 thoughts on “Pimenta e pão de milho”

  1. Isabel, eu faço asneira com frequência quando “posto” alguna coisa. Hoje foi marcar também o seu nome, além do meu. E lá ficámos ao lado um do outro na definição da autoria do texto. Que ao menos não a envergonhe a companhia a que foi obrigada pelo meu descuido.
    Desculpe.
    Um abraço.
    Daniel

  2. Um menino analfabeto e cheio de fome a chamar “mamã” à mãe, um médico a falar de penicilina 20 antes dessa porcaria ser comercializada em Portugal e uma família de Setúbal (terra de carrapau e sarrdinha)a comer peixe de Lisboa são alguns dos pontos altos desta história.Melhor que isto só as profecias de Bandarra, o livro de S. Cipriano ou a História do Zé do Telhado.

    E uma coisa mais pobre que esse casamento nunca se viu. Aqui há tempos estive eu a ouvir uma senhora que hoje tem 88 anos contar de como foi o seu casamento nos anos 30. Quatros dias de comes e bebes com muito bailaricos e acordeon e várias mudas de vestidos novos que não foi brinquedo. Seria rica? Não. Vivia à luz da candeia e usava tamanco. De facto quando era solteira palmilhava kilómetros de serra do Algarve ao Alentejo para ir ganhar uns pataquitos na aceifa. Depois de casada até teve que emigrar para outra parte de Portugal em busca de vida melhor. Já se sabe para onde onde – para os lados de Setúbal, pois.

  3. Poi é, tu escreves e é mesmo Literatura, tu escreves e eu bato sempre palmas.Mas é que bato mesmo!Essas histórias não fatigam; essas histórias deviam vir nos manuais escolares; essas histórias são peregrinações de sangue, suor e lágrimas, os melhores retratos históricos do tempo dos vampiros e das mordaças.
    Presenciei muitos quadros de fome e de doença,famílias que dormiam inteiras num só quarto, “onde o vento entrava poe todos os buracos”. A minha mãe acudiu a muita dessa gente. Ela tinha um irmão médico, fundador da Casa De Saúde de S. Lázaro,(eu tinha-lhe um medo!)que um dia lhe disse:- tu pensas que eu abri a clínica para tratar os teus alunos e família? Mas como a minha mãe era a “filha” mais nova de oito irmãos, e como a minha mãe tinha um coração de manteiga e prometia recompensa divina, o meu tio, embora herege,lá fazia a caridade, mas sempre com ar carrancudo.
    Eu ficava sempre encolhida, agarrada às saias da minha santa mãe,sempre que ela, feita samaritana, lá ia com roupas e alimentos, socorrer como podia, pois também não éramos ricos.Os professores não ganhavam em período de férias grandes. Qualquer dia acontece o mesmo!Já faltou mais.
    Essa Isabel que figura aí ao teu lado é uma felizarda.Também escreve na “Aspirina B?”

  4. Chico Estaca, atente no texto. O professor “foi posto daqui para fora de castigo […] Acho que foi para Setúbal…”, ou seja, o narrador não está, nem estava em Setúbal. Esqueça a história das sardinhas, portanto.
    A referência “mais ou menos por trinta e um” diz respeito, mais uma vez, à partida do tal professor para Setúbal, e não ao ano em que o médico sugere a compra de penicilina. Esta, aliás, é referida no texto como vinda de Espanha, pelo que até podemos depreender que se estava então no início dos anos 40, pois que na segunda metade dessa década já a penicilina era comercializada em Portugal.
    Quanto ao “mamã”, que impertinente. A minha avó era analfabeta e chamava “mamã” a sua mãe, no início do século XX.

    (Daniel, peço desculpa pelo puxão de orelhas ao seu leitor, mas faz-me confusão este analfabetismo funcional que por aí grassa, sobretudo quando parece convenientemente propositado.)

  5. Chico Estaca
    Percebo que o seu caso é o de um verdadeiro especialista em generalidades. E agora compreendo a verdade daquilo que você disse há dias, que sabia de tudo mais do que eu, excepto futebol. Como é que se lhe meteu na cabeça que a família era de Setúbal? O professor Francisco Bernardo Costa, que nasceu em Ponta Delgada em 1903, leccionou aqui na Maia, em S. Miguel, de 1926 a 1931,tendo sido transferido para Setúbal por razões disicplinares unicamente de motivação política. Os daí vinham exilados para cá, os daqui iam para aí. Os casos mais graves iam parar ao Tarrafal de S. Tiago. (O nome deriva de “tarrafa”, uma pequena rede redonda de pescar na costa. Há outros dois em Cabo Verde, um em Santo Antão e outro em S. Nicolau.) Coisas do regime… As crianças cá, e quase todas as pessoas adultas, dizem é “mamã” e “papá”. Para as crianças, invariavelmente, há ainda o “vavô”, a “vavó, o “titi” e a “titia”.
    Eu não datei a história, mas o narrador fala de um tempo em que já havia penicilina, portanto o Chico deveria ter percebido que estávamos por meados da década de 1940. Conheci um senhor, que nasceu mais ou menos em 1920, que esteve num desses famosos casamentos só com pão de trigo, queijo de cabra e vinho. A massa sovada não me lembro se a houve nesse caso.
    Quanto à sardinha, é de pouca qualidade a que se pesca por cá. Antes de aparecerem os barcos com sistema de frio, do Continente (dito Lisboa, ainda que fosse Leixões, por exemplo) só vinham as sardinhas salgadas, de que famílias inteiras comiam uma ou duas apenas.
    Lia, parece que entendeste, e bem, que o relato é real, apesar de a pneumionia ter sido inventada para o caso concreto. E isto porque, se fosse uma tuberculose, por exemplo, teria de ser um pouco depois do tempo que na minha mente ia decorrendo, já que a estreptomicina só apareceu nos finais da década de 1940. Na de 1960, passei muitas horas fazendo companhia a uma rapariga muito amiga, que era tratada com estreptomicina vinda de Barcelona.
    Essa outra Isabel também é “visita” cá no Aspirina, e, como o seu nome surge abaixo do meu, marquei-o por engano, quando deveria ter marcado era o quadradinho destinado a definir que eu também sou “visita”.
    Um abraço. Ou melhor, um par deles, que vai um também para o Chico refilão.

  6. Margarida
    Obrigado. Curiosamente, estávamos os dois à mesma hora a desfazer os equívocos do Sr. Chico. São precisamente pormenores como esse da penicilina que servem para situarmos os acontecimentos em vez de estar a dizer foi no ano tal ou tantos.
    Lia, fizeste uma pergunta a um comentador nascido em Barcelos que não respondeu. Não há nada nos Açores com esse nome, a não ser um insignificante pico que nem me lembro agora onde é.

  7. Chico também é o papagaio da Amália Rodrigues que ainda hoje na cozinha repete «Ai que tristeza!» Ai que tristeza, Chico…

  8. Isabel Margarida.

    Deixe-me ver se o meu analfabetismo funcional reparou em algo mais. Ah, sim. Temos que o nosso homem, apesar de analfabeto, sabe que a Literatura se ri da maneira como o homem do povo fala. E parecia bem informado dos motivos politicos que teriam levado o professor Costa a ir para Setúbal. OK, admito, assumi erradamente que o senhor estaria em Setúbal ou por ali perto. Não se esqueça para a próxima de situar os seus contadores de histórias em relação ao terreno da experiência.Para nos ajudar, pelo menos. Senão iremos chamar aos seus textos Literatura que ri.

    Do que já não tenho a certeza, de acordo com o seu recontar, é do exacto tamanho das “sardinhas de Lisboa”. Presumo que sejam mais ou menos do mesmo tamanho das de Olhão, Setúbal, Sesimbra, Peniche ou Nazaré, mas estas, tanto quanto sei, nunca deram para matar a fome , mesmo que ilusoriamente, a uma família de seis pessoas. Suponho que se trata de caso idêntico ao da sombra do chouriço na anedota alentejana, para levarmos isto para o lado do gozo funcional.

    Quando o médico disse isso sobre a pen. (início da década de 40, com diz) ainda essa droga estava numa fase de estudo e experiência. Mas acedo à implicação que você avança de que era possivel obter meia dúzia de injecções de penincilina em, digamos, 1948 por dois contos, equivalente a 20 semanas de trabalho dum operário não especializado desse tempo.

    No resto, parabéns por ter tido uma avó tão amorosa.. A minha também era assim, chamava-se Carmen Miranda e costumava dizer quando bèbèzinha: “Mamã eu quero, mamã eu quero, mamã ….eu quero mamar”…

    Ó Daniel,

    Desculpa lá isso, meu querido, mas eu nunca disse que sabia mais que tu em tudo excepto futebol. Vai lá reler, há uma subtil diferença.Como é que tu querias que eu me medisse contigo na sapiência dos tamanhos de sardinha nos Açores e de factos históricos de importância tão extraordinária como a existência dum professor Costa do ensino primário no distante mundo dos Açores na década de trinta? Por amor de Deus, filho.

    Agora já sei, quando falares em candeeiros a petróleo é porque foi antes da invenção da electricidade. Nada de anacronismos.

  9. Ao analfabetismo funcional e à impertinência associa-se agora a mesquinhez. Senhor Chico Estaca, temos Ministro!

    Já agora, não sei que associações fez para ligar o meu nome ao de Isabel, mas são reveladoras de um excelente perfil maníaco, o que me leva a reafirmar: temos Ministro!

    (Deputado, vá…)

  10. Chico, você é teimoso. E se eu lhe disser que um analfabeto me falava desse professor Francisco Costa? E se eu lhe disser que esse analfabeto teve um irmão, muito mais velho, que, por ser contra o Salazar nessa mesma altura, foi expulso das terras que fazia de renda, tendo os senhores ricos cá da terra proibido que fosse quem fosse lhe desse trabalho? A mãe era viúva, e ele o único sustento da família. Chegou a comer talos de couve para enganar a fome. Quanto à sardinha de Lisboa, ainda hoje vou falar com uns quantos amigos, e far-lhe-ei um relato de idades e número de pessoas na família para que dava uma sardinha. Claro que ela não alimentava, era só o pão, praticamente.
    Sabe quanto ganhava um homem nesse tempo? Era pago em milho, recebendo meio alqueire – no máximo três quartas, raramente – por dia de trabalho. Ora um alqueire de milho são cerca de doze quilos. E há que contar (ou descontar) os dias de chuva, os domingos e dias santos e outros em que não havia trabalho. Muitas vezes, o senhor mais rico da Maia pagava com roupa de cotim, que ele mesmo comprava, algo como acontecia nos seringais do Brasil. Levou anos a dizer que só morreria quando Salazar morresse. Por coincidência, morreu mesmo na manhã do dia em que o ditador morreu.
    A minha avó não tem nada que ver com isto. E a cena de apagar a luz é rigorosamente real.
    Agradeço que fale no mesmo registo de boa vontade com que tenho feito. Mas, se preferir o tom jocoso de mau gosto, a opção é sua.

  11. Relatório para o Chico Estaca
    Alberto Botelho dos Santos (família relativamente abastada), 69 anos – a sardinha era para dois.
    Manuel Ribeirinha, 50 anos – a sardinha era para o pai e os dois irmãos mais velhos (54 e 57 anos).
    Manuel Vieira, 68 anos – vivia com uma avó, a sardinha era para ele sozinho. (Curiosidade. Quando ele ia a ser levado para a igreja para ser baptizado, uma rapariga disse “com este é que me vou casar”. E casou-se mesmo.)
    Domingos, 54 anos – era para três.
    José Elizardo, 78 anos – “era para os que calhava”.
    Leonel Feleja, 58 anos – duas sardinhas para as sete pessoas da família.
    João Carlos Carreiro, 53 anos – sardinha para quatro.
    P.S. – Obrigado, Z, obrigado, Cláudia.

  12. E o Chico Estaca a dar-lhe com aquela das sardinhas divididas por dois e três! Estacou ali, o homem! Fique sabendo, Chico, que grandes ou pequenas tinham de ser divididas, porra! Eu vi! Se quiser, pode chamar-me mentiroso. Fico menos ofendido do que pelas gargalhadas que dá da miséria que nós presenciamos. Eu, O Daniel, a Lia ….

  13. Aqui, em Trás-os-Montes, o cenário era o mesmo, nesse tempo, só que se dizia “sardinhas de barrica” às tais que nos Açores se diziam “de Lisboa”. Não era a quantidade de sardinhas ou o tamanho do pedaço de sardinha que importava mas sim o gosto que deixava no pão. Assim a modos que a manteiga que o Chico Estaca (com uma destas pelo cu acima havia de ficar Esperto) barra no pão em vez de a comer às colheradas.

  14. Daniel,

    Foi depois de vocês começarem a comer sardinha nessas quantidades que a Direcção de Pesacarias inventou o defeso! E isso eram os homens. Já perguntaste às mulheres, ou elas não contam ou preferiam sardas?

  15. estas histórias, com ou sem sotaque, são belíssimos documentos. ou documentários, quase; as tuas descrições têm o mérito de serem muito vívidas.

    não liguem ao chico, ele anda só a cravar umas palmadas no rabo.

  16. Chico
    O peixe de nome científico “Sarda sarda” aqui é chamado serra. Se tivesses comido uma serra assada no forno â moda do Sr. Pereira, terias ficado amansado para o resto da vida. Fui eu que tratei do almoço do Salgado Zenha e comitiva, aqui na Maia, quando em campanha eleitoral. Cerca de setenta pessoas. Uns dos pratos foi serra assada no forno mais ou menos como o Sr. Pereira fazia. Até os continentais se deliciaram, apesar de ser novidade para eles.
    Quanto às mulheres, meu caro, vou contar-te uma história da própria família. Minha Mãe teve toda a vida remorsos porque, estando grávida (não sei se para nascer eu se a minha irmã), levantou-se de noite, cheia de fome, e comeu uma das batatas-doces assadas que era para os homens levarem para o trabalho no dia seguinte.
    Elas, as mulheres, foram as mais sacrificadas, de certo modo. Os homens penavam no trabalho, de sol a sol, pela tal meia dúzia de quilos de milho (raramente mais e com frequência menos), e elas sofriam que só Deus sabe. Imagina o que é ter uma rebanhada de filhos com fome e não ter nada para lhes dar. Se tiveres um mínimo de decência, mesmo escondido num pseudónimo meio aparvalhado, não voltarás a gozar com situações dramáticas como se viveram em Portugal de Norte a Sul, ilhas incluídas. Foi o distanciamento dos gabinetes de Lisboa que permitiu imaginar que Portugal era um país decente. Ver, sentir as coisas, não é o mesmo que idealizá-las.

  17. Daniel,

    Arriscando um pouco: eu acho que tu é que serás o produto dessa batata doce a que a senhora tua mãe não poude resistir.

    Falas com tanto sentimento ao coração deste pseudónimo aparvalhado que até começo a ficar com pena de ti. Então vocês não semeavam uma batatita, um nabito ou coisa que valesse para amortecer as arranhadelas da fome nas entranhas? Não ias à pesca, não havia caranguejo,nem ostra, ou mexilhão nas águas de mar mais próximas? Não havia uva, nem fruta para roubar? O que é que vocês faziam às cascas das laranjas? Não me digas que ai nos Açores ainda não aprenderam a fazer english marmalade?

    Não devias ter-te assustado nesses tempos. O regime de 38 calorias diárias se calhar até salvou muita gente de ter contraído diabetes II e diabetes III (Alzheimers). Alem disso, desde que haja água, o corpo humano está preparado para aguentar jejuns de trinta dias ou mais, o que é preciso é disciplina mental.

    E até podias ter aprendido a respirar fundo. Que é o que as árvores fazem e vê lá se elas não crescem. Isto é tudo CO2 com uma chuvazita.

    E quantas vezes é que o povo aí se revoltou contra essa situação de apertar o cinto de sol a sol.

    Queres falar de fomes a preceito, então fala-me de fomes que dizimaram milhões ou fala-me da África de hoje, não me fales de teatro de revista. Para bife de sardinha do lado do peito não tenho paciência.

  18. Chico, vou dignar-me a responder-te. Outros terão inteligência suficiente para te ignorarem, mas se tivesses que dividir uma sardinha neste preciso momento, não virias para aqui com tanta retórica.

  19. Uma das pessoas com quem falei esta tarde foi com um homem de oitenta e tal anos que comia no trabalho muito pão de milho com uma laranja, incluindo casca e tudo.
    Havia e há mar. Nasci a cerca de trinta metros da rebentação das ondas, em noite de grande temporal. Tomo como mais uma piada essa das ostras e mexilhões, para não a atribuir à ignorância do tipo de mares onde existem umas e outros. Se me tivesses falado de lapas, aí sim, muita gente matou a fome com pão e lapas, aliás coisa deliciosa. Mas meta-se-te nessa cabeça que os homens não podiam dar-se ao luxo de ir pescar, porque não podiam viver de peixe somente. Tinham de dar o dia, percebes? Ou pensas que muitos não pescavam sempre que podiam? Ou pensas que isto era tudo gente tola como tu mesmo finges ser? Ou ainda não percebeste que a propriedade estava mal dividida, apenas pertencendo a meia dúzia de senhores, e com uns poucos mais a terem terras suas?
    Foi gente com espírito atoleimado ou velhaco como o teu que deixou má fama nos Açores durante a guerra. Na memória do povo ficaram as patifarias de vária ordem dos soldados continentais, e isso criou nele, povo, uma grande desconfiança quanto às gentes de “Lisboa”. Soldados iguais a quaisquer outros em qualquer parte do Mundo, mas aqui ninguém conhecera antes essa realidade. Houve alguns que por cá ficaram, excelentes pessoas, mas o mal deixa mais marcas.
    Não sei se voltarei a ter paciência para te responder. Já aqui disse que contra mim aceito tudo sem me aborrecer, mas tu estás a passar para além da minha pessoa. Não faltará muito para que tenha vontade de te mandar à fava. Quando o farei? Sabê-lo-ás pelo meu silêncio.

  20. Daniel,

    Começo, agora que o cheiro do tal peixe se foi, e ainda bem, a ficar curioso em relação aos portadores do tal espírito “atoleimado e velhaco” que tão má fama deram aos Açores. Desenvolve isso, com detalhes, se puderes. Confesso a minha completa igmorância da História da tua terra, mas pode ser que me descubra nela quando começares a caracterizar os alvos das tuas queixas. Small world, perhaps.

    E retiro as referências às ostras e mexilhões. Falei disso, como poderia ter falado em linguarões ou pichas, porque de piscicultura não percebo nada.

    Manda fava, sou de casca dura.

  21. Ainda que alguns textos tenham o condão da metáfora, a pobreza que se sentiu naqueles tempos não pode ter deixado de ser uma realidade para muitos, com ou sem sardinhas.

    Actualmente, é como dizes, temos gente bem pior, que nem água tem para beber. Por isso mesmo, não vejo porque seja tão difícil de acreditar no que aqui se deu a ler.

  22. Chico, não me recuso nunca a explicações. Nem me admiro de que não conheças a minha terra. Antes disso, uma única referência às marcas mais profundas deixadas pelos militares continentais. Os inevitáveis amores esquecidos depois da partida. Outros ficaram por cá, alguns gente de grande qualidade. Amores e suas consequências mais visíveis, anátema terrível nesse tempo.
    A Maia é uma freguesia da ilha de S. Miguel. Fica na costa Norte, e faz parte do concelho da Ribeira Grande. Em 1900 já tinha ultrapassado os dois mil habitantes. Em 1950 tinha mais de três mil e seiscentos. Foi fundada nos finais do século XV, por um grupo de povoadores chefiados por uma tal Inês da Maia, provavelmente oriunda das Terras da Maia.
    S. Miguel actualmente tem cerca de 130 000 habitantes. Antes da emigração da década de 1950 tinha cerca de 240 000. A sua superfície é de 747 km2.
    Como facilmente se percebe, era difícil alimentar tanta gente só com lapas e peixe. Ainda assim, era uma das freguesias com mais empregos garantidos, sobretudo para mulheres, na Fábrica de Tabaco, que já não funciona, e na do Chá Gorreana (colheita e transformação), a única que nunca deixou de laborar o chá desde 1889.
    Se tiveres curiosidade de saber mais, consulta o sítio criado por emigrantes:
    http://www.amigosdamaia.com/
    Se ligares o som, ouvirás música regional.
    (Se tiveres mais curiosidade ainda, no álbum de fotos nº. 17 há lá uma do meu casamento. Não foi posta por mim, como nenhuma das outras, aliás. É o par que está de costas para o fotógrafo ao pé do altar-mor. )

  23. Elypse, essa de haver gente que não tem água para beber é para ser levada a sério ou é para nós percebermos que o Portugal que tu conheces é uma entidade poética que só existe na tua cabeça?

  24. Daniel ainda não percebeste que este chico esperto não pega de estaca.
    Só mesmo com a tua paciência…

  25. “Zeca” da próxima, procura perceber o contexto. Respondia ao “Chico”, e como tal, referia-me a certas regiões de África…

  26. Daniel,

    Não acrescentaste nada, com eu cinicamente calculava. Afinal, uns deixaram amores desiludidos e outros ficaram por aí e, desses, uns quantos até se tornaram gente de destaque. A mim não me parece que isso sirva para alijar acusações de más famas nos costados dos visitantes.É até um interessante equilibrio, que eu chamaria natural e normalíssimo.

    E vives numa ilha bonita, sim senhor. E a pesca é a maior indústria dos Açores, mas poderia não ter sido durante os tempos amargos e difíceis que foram recordados neste post cheio de testemunhos.

    Nem só de peixe vive o homem. Concordo. Mas também vejo que se uma população cresce, como me informas, é porque existem condições naturais para a sustentar, especialmente numa ilha.

    Os reparos qjue fiz nos meus comentários andavam à volta dum, principal, e que nem é assim tão complicado e que permanece: há uma tendência para sobredramatizarmos as penúrias do passado no que concerne aos quinhões de cada um dos pratos do dia à base de peixes ded barrica importados de Lisboa.

    E persisto: tempos de fomes salazaristas dos anos trinta eram também tempos de fomes internacionais, na Europa, nos USA, basta ler a literatura de ficção desses tempos. Não há confinações geográficas para os heroismos das magras refeições.

    O resto é folclore muito duvidoso quwe se ajuda de psitacismos que de resto também se vêem noutras áreas das discussões solenes. Não fiques zangado.

    PS Dentro de minutos vou-me agarrar a uma cabeça de dourada. Não a vou comer com o gosto dos tempos salazaristas. Esta é de viveiro e provavelmente terá ingerido restos de tripas de boi com sangue do mesmo animal. Quem é que disse que mar não rima com abattoir?

  27. Elypse, para a próxima dar-te-ei uma ensaboadela a valer. Como queres que entenda o “contexto” se não indicas a quem estás a responder? Já agora era diabo e adivinho também.

  28. Chico, finalmente, homem! Já não era sem tempo que tivesses uma conversa a sério, com a qual estou plenamente de acordo. Eu não excluí o resto de Portugal e mesmo do mundo ocidental (porque o outro ainda é mais miserável do que por cá se era), pelo facto de falar da realidade da minha ilha. E acrescenta-lhe os anos da guerra, em que tudo piorou. Haverei de falar disso, com as especificidades insulares, que incluíam essa coisa incompreensível de haver alfândega e passaporte entre as ilhas.
    Que te tenha feito bom proveito, a dourada. Eu vou deliciar-me com uns chicharros (carapaus, já o sabes) grelhados com guelras e tripas, como o salmonete, acompanhados de inhame e batata-doce. E um bom vinho do Alentejo ou da Beira, conforme a inspiração do momento.

  29. “Zeca”, sempre havia a pista que se segue, entre outras:

    “Por isso mesmo, não vejo porque seja tão difícil de acreditar no que aqui se deu a ler”

    A pessoa que andava a discordar dos textos do Daniel era o “Chico”. Depois, respondo a seguir a ele, etc.

    Enfim, quanto a uma eventual ensaboadela (e a valer), só podes estar a brincar.

  30. O tipo de dificuldades retratadas era ainda comum na infância dos meus pais, que são de Ílhavo, no continente. Mas não sei como dividiam a sardinha… Hei-de lhes perguntar.
    Daniel, gostei do texto. Vim parar a este blogue hoje pela primeira vez, mas vou passar a ser frequentador.

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