
«Por dentro tenho 20 anos»
Um dos dois testemunhos de vida que mais me tocaram, e que por isso nunca esquecerei, foi o do prof. Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão, quando disse, numa entrevista, suponho que na «Visão», que desejava morrer. Assim mesmo. Foi já no fim da vida, que ele carregou até aos 91 anos. Nascera em 1906 e teve o que desejava em 1997.
Pergunta a gente o que pode levar alguém a cansar-se de existir. A acordar de manhã e pensar ‘Que chatice! Ainda estou vivo’. Isto, não porque se ficou doente incurável, entrevado, surdo, ou cego, ou emudecido. Mas pelo simples cansaço de andar por cá.
E o outro testemunho, esse, é tão bonito que enternece. Foi o de Jacinto do Prado Coelho, que escreveu, num prefácio dum dos seus últimos livros (cito de cor, mas suponho textual): «Por dentro tenho 20 anos e ninguém sabe». Tinha nascido em 1920. Teve vinte anos até 1984.
DESENHO #20
Sol a mais
O “Sol” é mais ou menos o que eu esperava do seu director/inventor: uma versão chunga do “Expresso”. Mas o pior é mesmo o ramalhete de cronistas que por ali se acoitou. A coisa desafia a imaginação.
Começando pelo inenarrável Luís Filipe Borges, que vem esparramar a sua absoluta falta de graça no suplemento “Tabu”. Um exemplo? Isto: “Daqui a um ano: Madonna recebeu mais uma encomenda de África mas, inadvertidamente, adoptou um pigmeu por engano.” Nunca pensei que este dia nascesse: sinto uma apertada saudade do Badaró. Na mesma revista ainda surge a Bomba, com os seus típicos estrugidos que misturam “espargatas irrepreensíveis”, uma “super-dupla de criadores” de moda e descrições empolgadas de… um jantar no Império. Deve haver quem goste.
Mas o “Sol” propriamente dito também se apresenta como um bestiário da crónica indigente: o conhecido industrial do cinema António Pedro Vasconcelos a insinuar que Pedro Costa fez “No Quarto da Vanda” apenas porque não tinha dinheiro para filmar pastelões tamanho-família como o “Titanic”; Margarida Rebelo Pinto auto-investida no cargo de “Carrie Bradshaw da Bobadela” perorando sobre as parecenças entre um prato de ostras e o cunnilingus (ideia assaz original e um primor de requinte); o esforçado director, himself, que acabou de reparar que as mulheres já não vivem à frente dos fogões e nos anuncia com estrépito a chegada de uns ditos “Casais do Futuro”, em que ambos trabalham ao mesmo nível: “as mulheres começam a não aceitar ficar na sombra dos ‘grandes homens’, querem ter existência própria”. As desavergonhadas; as rematadas insurgentes! No meio da desgraça, Paulo Portas, com um interessante digest sobre a revolução húngara de 1956, até consegue fazer a pretendida figura de estadista ilustrado.
Como não tenciono comprar esta espécie de jornal, a coisa não me apoquenta por aí além. Aliás, até vejo vantagens em semelhante concentração de banalidade, mau gosto e tontice: como a minha mãe diz sempre que vê um casal composto por duas criaturas execráveis, “ao menos, assim só se estraga uma casa.”
Interpolar
O EQUADOR continua a influenciar o clima blogosférico, contribuindo para estes dias de S. Martinho estival em que muita castanha está a ser distribuída. O nosso amigo Jagudi aproveitou a distracção para injectar um composto de alta inteligência numa caixa de comentários, o qual recolheu célere o selo de garantia do Fernando. Generosidade tamanha não é para desperdiçar.
Qualquer um reconhecerá em MST o cronista exemplar das fealdades paisagísticas a que uma corja de patos-bravos, e os portugueses em geral, vêm sujeitando o país todos os dias. Ou o que nos ajuda a distinguir a América da liberdade original e dos direitos fundadores, da perigosa América actual, conduzida por fanáticos medíocres. Ou o autor de reportagens e relatos de viagem como os que nos deixou em SUL. MST tem a ousadia, a lucidez e o desassombro que ao jornalista competem. O que ele não tem é o sentido estético do ficcionista. E não manifesta saber, em EQUADOR, que o trajecto da ficção narrativa é multifacetado, mas segue um caminho tão estreito como o fio duma navalha. Onde o artista se estatela ao mais ligeiro escorregar do pé.
Tendo presente quanto há de pessoal e subjectivo na apreciação duma obra, dir-se-á que EQUADOR não passa do sofrível. Tem uma história a contar e muito para dizer, já isso não é pouco, se anda este mundo pejado de figuritas imberbes a dar-se por escritores. Mas é um trabalho desequilibrado e prolixo, a espraiar-se em secundárias peripécias longuíssimas, que apenas lhe roubam vigor e o empobrecem. O todo ganharia com outra economia.
Há nele situações mal cosidas, em que o pesponto se vê. Mas o grande senão é o modo de contar, que nada de novo nos propõe. Não se conta hoje uma história com as técnicas narrativas, o tipo de linguagem, os mesmos exercícios e recursos dos finais do séc. XIX. Ainda por cima sem a artilharia requintada que nesse tempo alguns sabiam usar. A técnica primaríssima e descuidada de que MST faz uso, se é apropriada e eficaz num trabalho jornalístico, resulta de todo inadequada, e gasta, e anacrónica em literatura. Por isso o seu efeito estético é nulo, já que também o jogo sonoro da frase, a harmonia e o ritmo do discurso utilizado são ausências. Ora nada disto a literatura pode dispensar, por infindável que seja a discussão sobre o que ela é.
Lá onde MST brilha é quando se conserva no seu campo. É quando analisa, quando aponta, quando denuncia, quando levanta o véu da nudez dum império a fingir. O seu EQUADOR vendeu muito, com mais proveitos para o editor que para a literatura. E os leitores.
Jagudi
Interrupção voluntária do rigor
Eduardo Pitta continua sem perceber muito bem onde é que meteu água, no seu primeiro post acerca da IVG. Mais uma vez: não é apenas ao requerer “comissões de certificação” que a legislação lusa difere da espanhola. É, antes de tudo o mais, na exigência de “perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida”. Alguém julgará que é fácil determinar que uma “lesão psíquica” vai ser duradoura?
Depois, as tais comissões não se limitam, como o Eduardo pensa, a obstetras, com ou sem “tomates”: elas têm de incluir “a presença obrigatória de um obstetra/ecografista, de um neonatologista e, sempre que possível, de um geneticista, sendo os restantes elementos necessariamente possuidores de conhecimentos categorizados para a avaliação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez”.
Finaliza assim a coisa: “Por que razão a lei funciona em Espanha e aqui não? Porque em Espanha a classe médica endossa à mulher a responsabilidade de declarar se há, ou não, dano psíquico, e se o mesmo tem, ou não, carácter reversível.” Errado, errado, errado.
1- A lei funciona em Espanha porque é diferente da nossa, quer na sua formulação, quer na posterior regulamentação;
2- A classe médica espanhola não “endossa” coisa alguma à mulher: ali, a IVG carece de um “dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico de la especialidad correspondiente, distinto de aquel bajo cuya dirección se practique el aborto”;
3- A avaliação do “carácter reversível” dos danos psicológicos não é da responsabilidade de ninguém, pois essa exigência não faz parte da lei espanhola.
Mas será que custa assim tanto investigar um pouco os assuntos antes de emitir sentenças definitivas e grandiloquentes?
Quem lixou o «Freedom»?

Eu não sou grande técnico. Mas sou o suficiente para saber que estas coisas exigem estudos. Sejamos sucintos e directos: o «Freedom» foi «hackado». Onde se dava com um blogue desengonçado, que tentava dar um golpe em «Equador» de MST, vai-se agora desaguar num blogue sobre… «Equador» de MST. Ora vejam.
E por onde pára o antigo «Freedom»? Desactivou-se. E desapareceu? Não. Fomos dar com ele (obséquio do novamente esplendoroso Ligações perigosas) noutro sítio, aqui. Copiado. Por outrem? Pelo mesmo? Saberemos. Ou não.
Em cima: capa da edição de «Equador» na minha outra língua.
Mãe! Olha eles!
Eles. Sim, eles voltaram. Ou querem voltar. Os blogues clandestinos do literário. É que há-os de superfície, ou de salão, como o Da Literatura. Passo lá de raspão, mas não passo sem passar. Cisma minha.
Mas falava eu dos clandestinos. Dos que alimentam – e se alimentam da – pequena clandestinidade que faz ainda mais apetecível a literatura. Não, não falo desse pobre e desaparecido FreedomToCopy (Tá a ver? Mas eu não lhe disse «desaparecido»? Já não se confia nas pessoas?).
Pois é. Refiro-me a coisa mais fina, como o intermitente, mas saudosíssimo, porque utilíssimo, Ligações perigosas, que desde Abril eu ia abrindo, com nunca esmorecente esperança, e que piscou de novo. Três vezes piscou.
E há o suculento Não li nem quero ler, que deu piscadelas recentes, reacendendo perspectivas.
Não dizia o outro (vários, a plagiarem-se) que o que interessava era que as pessoas lessem, nem que fosse A Tal? Pois eu digo (autoplagiando-me) que o que interessa é que a literatura ande na praça pública. Vestidinha, despidinha, tudo serve. É que, caramba, queremos ser falados! E, se nos comprarem uns livrinhos, a gente nem acredita. É o sol que raia. São aleluias que cantam. E não precisam de ler, senhores. Isso, oh, ainda é o menos.
Bem-vindas, pois, ó intermitências.
Vermilion Heights —

A pequena cidade do Illinois onde ocorreu, no dia 19 de Junho, o confronto entre Cutter e o famigerado “Elefante Eléctrico”. O que ali aconteceu ao certo jamais será conhecido. Da refrega, sobraram os restos calcinados de dois jovens membros da Irmandade, um monte fumegante de peças metálicas derretidas — tudo o que restou da enigmática arma de Nikola Tesla — e um enorme mistério a pairar sobre o desaparecimento de Abraham Cutter. Fosse ou não o espectro furioso de elefanta Topsy a enfrentar naquela madrugada chuvosa os raios de Tesla, certo é que a assombração de 1903 não mais voltou a ser vista.
Tesla, Nikola —

Hoje venerado como uma espécie de semideus da Ciência, um profeta vindo ao mundo cedo demais, Tesla é dificilmente distinguível do belo mito que o recobre. Além da invenção do motor a corrente alternada, as suas pesquisas levaram-no a registar patentes em domínios tão distantes como a robótica, as ondas de rádio, a balística, a física nuclear, os raios X, a supercondutividade. Os seus adoradores mais imaginativos creditam-lhe ainda a capacidade de gerar terramotos, a criação de um raio da morte que poderia destruir aviões a centenas de quilómetros, a descoberta de sinais de rádio extraterrestres, a refutação da Relatividade de Einstein e a transmissão sem fios de grandes quantidades de electricidade. O facto de os seus documentos terem sido confiscados pelo FBI e ocultos sob o selo “muito secreto” no dia seguinte ao da sua morte só veio aumentar a sua fama de génio maldito. Tesla foi um apoiante da Irmandade do Novo Paradigma, financiando-a generosamente nos seus dias de maior desafogo, embora nunca se lhe tenham conhecido grandes fervores religiosos. É certo que, pouco depois da sessão com os irmãos Eddy, Cutter visitou a Torre de Wardenclyffe, onde o cientista trabalhava no seu projecto de transmissão de energia à distância. Terá dali saído com um misterioso vagão coberto, carregando um “gerador de raios de partículas” ou canhão de plasma, segundo as teorias. Uma arma para matar espíritos, portanto.
Séance —

Em Maio do mesmo ano, Abraham Cutter terá participado numa sessão espírita com o par de médiuns mais famoso de sempre: os irmãos William e Horatio Eddy, descobertos 30 anos antes pelo coronel Henry Steel Olcott. Ao inquirir os videntes sobre a misteriosa fera ectoplásmica que assombrava o Sul dos EUA, os convivas viram-se face a um espectro que se materializou na sala envolto por “vapores nauseabundos que lhe ocultavam as feições”, de acordo com a teósofa Margaret Nelson, uma das organizadoras desta séance. O espírito declarou ser William Kemmler, a primeira vítima da letal da cadeira de Edison. A sessão acabou por ser invulgarmente dura e tensa, levando a que quase todos os participantes a abandonassem a meio, transidos de maus presságios e de um frio intenso. Apenas Cutter e os irmãos Eddy terão aguentado até ao final. Pelo pouco que Horatio revelou anos depois, o espírito de Kemmler tê-los-á alertado para o perigo que as aparições de Topsy representavam para todo o planeta: a presença de Deus no mundo estava a desfazer-se, contaminada por aquela abominação que ganhava força de dia para dia, alimentada pelos cabos de alta-tensão. Ao que parece, o alcoólico e analfabeto Kemmler ganhara vocabulário e cultura invulgares, no mundo do Além… Certo é que Cutter saiu do casebre no Vermont onde viviam os Eddy com a missão auto-atribuída de pôr um fim àquelas aparições. E com a localização precisa da próxima irrupção de Topsy no nosso plano da realidade.
Memphis —

Nos arredores desta cidade do Tenessee, aconteceu a primeira das supostas aparições post-mortem de Topsy. Corria a noite de 17 de Março de 1903, quando dois vigilantes dos caminhos de ferro observaram uma “nuvem luminosa” a ganhar “corpo e peso” mesmo debaixo de um poste eléctrico junto a uma estação de comboios. Um deles, Joseph Mallard, aproximou-se no momento em que a “nuvem” coalesceu numa forma gigantesca, “assente em quatro patas”. No meio de urros terríveis, aquela massa de luz avançou para o pobre homem. Segundos depois, ele caiu carbonizado por uma descarga eléctrica de intensidade incalculável. O seu colega deu início ao frenesi que envolveu as seguintes visões de paquidermes luminosos quando garantiu que aquilo lhe parecera “a alma de um elefante furioso”. Alguns jornais do dia seguinte ligaram a tragédia à morte, semanas antes, de Topsy. Logo de seguida, quase ao ritmo de uma aparição por noite, as investidas fantasmagóricas sucederam-se um pouco por todo o país, sempre por perto de postes de electricidade, sempre no meio de bramidos de fazer gelar o sangue. Provavelmente, poucas passaram de ataques de histeria. Mas, fosse como fosse, nascera a lenda do Elefante Eléctrico.
Execução —

Artigo do jornal Commercial Advertiser de 5 de Janeiro de 1903: “Topsy, a irascível elefanta de Coney Island, foi abatida no Luna Park, ontem à tarde. A execução foi testemunhada por mais de 1.500 espectadores curiosos que viajaram até à ilha para ver o fim do grande animal a que tinham dado amendoins e bolos em Verões que já lá vão. Para tornar a execução de Topsy rápida e certa, deram-lhe 460 gramas de cianeto, misturado com cenouras. Então, um cabo foi colocado ao redor do seu pescoço, com uma ponta presa a um motor a vapor e a outra ligada a um poste. De seguida, colocaram nas suas patas sandálias de madeira revestidas a cobre. Estes eléctrodos foram ligados por fios de cobre à central eléctrica Edison e uma corrente de 6.000 volts atravessou o seu corpo. A grande besta morreu sem um urro nem um gemido”. O pequeno filme que a equipa do grande inventor fez deste elefanticídio ainda hoje circula pela Internet.
Edison, Thomas Alva —

A sua reputação de Prometeu contemporâneo, de inventor inexaurível, eclipsou durante décadas a herança de Tesla: o homem prático que confiava mais na experiência do que em teorias e cálculos complexos versus o génio excêntrico que se dispersava por todos os ramos do saber sem conseguir garantir lucros ou reputação firme em nenhum deles. Do seu laboratório em Menlo Park saíram inovações em quase todos os domínios da vida contemporânea: do gramofone ao cinema, da lâmpada eléctrica à pistola de tatuagem. A aposta na corrente contínua levou-o a esquecer a sua oposição à pena de morte, empenhando-se em propagandear as virtudes da cadeira eléctrica alimentada a corrente alternada. A execução de Topsy, que ele filmou com o seu Kinetoscope, acabou por ser um golpe já desesperado numa guerra havia muito decidida e perdida.
Dirigíveis Misteriosos —

Objectos voadores não identificados que enxamearam os céus dos estados ocidentais dos EUA em 1896 e 1897. De forma cilíndrica e aparentados com os dirigíveis, apresentavam luzes e ruídos bizarros, gozando de métodos de propulsão desconhecidos na época. Mais estranhos ainda eram os seus ocupantes: desde cavalheiros bem vestidos que se declaravam a caminho de Cuba para participar na guerra hispano-americana até putativos descendentes das tribos perdidas de Israel, havia de tudo um pouco. Em comum, todos patenteavam uma grande vontade de comunicar com as testemunhas dos seus voos e uma afabilidade notável, mesmo quando se entretinham a raptar cabeças de gado. Em 1909, algumas zonas de Inglaterra puderam assistir a uma reedição do fenómeno. Estes antepassados dos discos voadores foram evocados por Cutter ainda no início do “Caso Topsy”. E partilharam uma característica peculiar com os Viajantes Loucos, seus contemporâneos: a rapidez com que a imaginação popular os esqueceu. Uma década depois da sua chegada, já quase ninguém os recordava. Hoje, estes relatos surgem-nos como incongruências anacrónicas, aberrações em que dificilmente conseguimos acreditar. Ovnis nos ares e manadas de zombies migratórios nos prados… tudo isto soa mais a uma fantástica História alternativa do que a algo que pudesse mesmo ter ocorrido no pacato século XIX.
Dadas, Albert —

O primeiro “Viajante Louco” — diagnosticado em 1886 — era um humilde trabalhador parisiense que começava a sentir uma vontade irresistível de viajar sempre que ouvia falar numa qualquer paragem longínqua; pouco depois, acabava invariavelmente por se pôr a caminho até alcançar destinos improváveis, por vezes a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Uma vez terminada a peregrinação insensata, desprovido de qualquer memória ou pista sobre a sua identidade, ele tratava de angariar o dinheiro suficiente para regressar de comboio. Só que perdia sempre o rumo a meio do trajecto, embarcando noutra viagem incompreensível, depois de rasgar mais uma vez os seus documentos. Constantinopla, Argel e Moscovo foram cidades nos itinerários destas demandas não de descoberta mas sim de esquecimento. Depois, à medida que relatos de tais viagens sem rumo transbordavam das revistas médicas para os jornais europeus, os transes peripatéticos de Dadas começaram a infectar a imaginação popular. E pouco tardou até que eclodisse uma verdadeira epidemia de Fugas Dissociativas, denominação actual deste distúrbio. Os contaminados partiam sobretudo de França, mas logo os caminhos da Alemanha, Rússia e Itália se viram juncados de tristes viajantes de olhos vagos e passos obsessivos. Abraham Cutter sustentava que estes nómadas alucinados obedeciam aos ditames de uma Egosfera desequilibrada, como bússolas humanas condenadas a perseguir um Norte sempre imprevisível e errático.
Cutter, Abraham —

Membro fundador da Sociedade Teosófica, recusou-se a acompanhar o coronel Henry Steel Olcott na migração da seita para a Índia, em 1876. Fundou de seguida a mais discreta Irmandade do Novo Paradigma, onde pode expandir o seu peculiar conceito de “Egosfera”. Esta, uma evolução do “sétimo corpo”, ou Atma, dos teosofistas, seria um campo de energia senciente que envolve a Terra, gerada por todos os organismos do planeta. Para Cutter, a Egosfera seria uma interface com o próprio Deus e também um ente ainda em crescimento, prestes a despertar para a consciência. Ele analisou delongadamente eventos psicossociais como a epidemia dos “Viajantes Loucos” do final do século XIX e a vaga de aparições de “Dirigíveis Misteriosos” que assolou os EUA no mesmo período. Cutter postulava que comportamentos anómalos e visões inexplicáveis eram apenas sintomas de distúrbios na Egosfera: a sua interacção com espíritos humanos e com a própria matéria inanimada estaria a ser distorcida pelo uso cada vez mais disseminado da electricidade. Claro está que o caso Topsy não poderia deixar de o atrair; no seu último artigo, publicado no Boston Chronicle sob o revelador título “Visitors from Within”, este visionário semi-louco fez um levantamento de todos os fenómenos similares até então recenseados e teceu uma complexa rede de relações entre essas anomalias e a sua peculiar cosmovisão. O seu desaparecimento nunca explicado deu a derradeira nota insólita à biografia do último grande místico americano.
Condenação —

Quando Topsy fez a sua terceira vítima mortal, os seus donos, a dupla de empresários do showbusiness Thompson e Dundy, decidiram que era hora de fazer algo ao animal endemoninhado. E, se possível, retirar algum lucro do processo. Assim, foi anunciada a execução pública da elefanta assassina, por enforcamento. Os defensores dos animais protestaram ante a crueldade inaudita do método proposto. E a electrocussão surgiu, com alguma ajuda de Edison, como a alternativa natural: o estado de Nova Iorque substituíra pouco antes a forca pela moderna e mais “humana” cadeira eléctrica.
Cadeira Eléctrica —

William Kemmler, condenado pelo assassínio a golpes de machado da sua mulher Tillie, morreu em 1890, tendo sido agraciado com a dúbia honra de estrear a cadeira eléctrica. Esta, obra de alguns engenheiros ao serviço de Thomas Edison, era alimentada por um gerador de corrente alternada adquirido em segunda mão, pois a Westinghouse, seu fabricante, recusou-se a vender um para tal fim. A execução correu mal: a primeira descarga eléctrica, de 17 segundos, não matou o condenado. Enquanto o gerador recarregava, Kemmler gemia e contorcia-se, preso à cadeira. O segundo choque, com maior voltagem, durou mais de um minuto e acabou por matá-lo, numa nuvem de fumo de carne queimada que agoniou todos os espectadores. No seu julgamento, várias testemunhas atribuíram grande parte das desavenças do casal Kemmler a um caso que Tillie teria mantido com um jovem chamado… Jim Fielding. Não é certo que se tratasse do mesmo indivíduo que veio depois a morrer sob as patas de Topsy.
O que se diz lapidar
A frase do ano – bom, sejamos discretos, a do fim-de-semana – está numa «carta ao director» no Público de hoje. O leitor fala do recente debate ibérico, aquele com sondagens de opinião de lado a lado e com audição de peritos, como o José Saramago… a favor da fusão das empresas, estão lembrados?
Pois bem, esse leitor, António Pedro A. Costa Santos, escrevendo de Florença, afirma (e vai em negrita para parecer ainda mais lapidar):
«Se uma eventual união ibérica fosse a cura para qualquer dos males que aflige Portugal, então o suicídio seria também a cura para o cancro…»
