A 19 de Janeiro, na véspera de Trump voltar à Casa Branca, realizou-se na capital dos EUA uma manifestação da série “Women’s March”; iniciativa começada em 21 Janeiro de 2017, um dia após Trump ter inaugurado o seu primeiro mandato, nascida de várias entidades dedicadas à defesa dos direitos das mulheres e das minorias. Em 2025, depois de os organizadores terem levado a cabo múltiplas acções ao longo dos anos em múltiplos países, mudaram o nome do evento para “People’s March”, com o óbvio propósito de chamar o maior número de manifestantes possível. Há oito anos reuniram perto de 500 mil pessoas só em Washington. Este ano tiveram 20 vezes menos, à volta de 25 mil.
Eis um exemplo cristalino, entre inúmeros, da grande resignação na esquerda e no centro. E por excelentes razões. Os eleitores americanos preferiram dar o poder máximo a quem anunciou que ia tentar consumar a invasão do Capitólio. Não existiu o mínimo disfarce na campanha eleitoral de Trump. Ele foi honesto. Disse o que queria fazer, exibiu-se com quem o queria fazer. Houve até ostensiva displicência da sua parte, a raiar um estado de beatitude, ao mostrar que todas as regras conhecidas da ciência política não se aplicavam à sua pessoa. E assim ganhou também no voto popular, destruindo qualquer resistência moral perante o facto bruto da sua vitória sem espinhas.
Os Democratas pensaram, logicamente, que um tipo asqueroso como Trump, uma ameaça à democracia, mentor da diminuição dos direitos das mulheres, fanático do fim da luta contra as alterações climáticas, mais amigo de Putin do que dos serviços secretos americanos, pronto a violar a lei e a ordem se for no seu interesse, enterrado em processos judiciais onde a sua conduta criminosa ficou provada, jamais recolheria o voto das mulheres, dos jovens, das minorias, dos republicanos patriotas e defensores da democracia, para mais quatro anos do que é um projecto de ditadura. Mas, ilogicamente, deixaram que Biden implodisse em directo no primeiro debate de 2024, acabando a lançar Kamala Harris já em desespero e ameaça de tragédia. Em abono da verdade, não se pode sequer calcular as hipóteses de Harris mesmo que tivesse começado a sua campanha em 2022 ou 2023. Principalmente, por causa da lógica.
Em 2016, o choque Trump foi racionalizado à esquerda e no centro invocando o efeito mediático onde era exímio a dar espectáculo, a arquitectura setecentista da eleição presidencial americana que favorece os Republicanos, o preconceito contra as mulheres que penalizava a candidata Democrata, a interferência russa na espionagem e nas redes sociais e a intervenção do director do FBI que torpedeou Hillary Clinton a 11 dias das eleições. A vitória no voto popular ficava como consolo psicologicamente vital para alimentar a indignação e dar esperança face ao absurdo violento. A América não era aquilo, aquilo era um erro grotesco do sistema político. Em 2024, vimos o fenómeno simétrico: aceita-se que a América é Trump. Esta é a realidade, não há mais engano nem ilusão.
O que nos leva para a democracia. Pode a democracia eleger quem a queira violar e destruir? Pode, claro. Não é a primeira vez, não será a última. Devemos criar regras especiais para evitar futuros Trumps? Não, jamais. Porque isso equivaleria a termos menos democracia, menos liberdade. Assim como há acidentes naturais, imprevisíveis e incontroláveis, assim como há crimes de guerra e crimes comuns, indefensáveis e muitas vezes impuníveis, assim há resultados eleitorais que, cumprindo todas as regras estabelecidas previamente, irão dar o poder a quem ameaça a cidade. Compete aos que se considerem cidadãos participar na heróica, gloriosa, linda história da democracia.