Em qualquer curso de Direito no mundo, calhando um aluno escrever num exame ou dizer numa oral — fosse em que cadeira fosse — que compete aos acusados provarem a sua inocência, esse cábula seria inevitavelmente chumbado. Mesmo que o resto da sua prova fosse melhor do que a perfeição. Porquê? Porque a presunção de inocência, e como inerência o ónus da prova ser responsabilidade da acusação, confunde-se com a essência mesma da ideia de direito enquanto sistema cuja finalidade seja a aplicação de uma qualquer concepção e materialização da justiça. Pensemos: sem a presunção de inocência estatuída nos códigos fundamentais, cada um passa a ser potencialmente culpado até prova em contrário. Culpado de qualquer tipo de crime. Que sociedade seria essa onde o acusador não teria de provar nada? Uma sociedade onde não existiriam Direitos Humanos, por exemplo. Uma tirania infernal.
Amadeu Guerra tem 70 anos, licenciou-se em Direito em 1978, entrou no Ministério Público em 1981. A hipótese de ignorar, ou ter esquecido momentaneamente, o que é e o que vale a presunção de inocência, na recente entrevista ao Observador, é impossível de aceitar. Pelo que somos obrigados ao confronto com a evidência: quis dizer o que disse. Ora, isolando essa afirmação do “Sócrates tem direito a provar a sua inocência” como objecto de análise, temos que ela sozinha consegue o feito de promover a inversão da lógica constitucional que protege o cidadão face ao poder do Estado: é uma inequívoca violação do princípio da presunção de inocência. Se este ataque direto ao coração do Estado de direito viesse de um procurador de baixo escalão, seria sempre um caso extraordinário, a merecer uma extraordinária polémica e medidas de protecção da legalidade democrática. Vindo de um procurador-geral da República, ainda por cima este, fica como um momento realmente inacreditável na história de Portugal. E isto é apenas o começo da conversa.
Passos e Cavaco escolheram Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República em 2012. Meses depois, a senhora escolheu o Amadeu para director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). O clima de caça implacável a alvos socialistas assim inaugurado está cristalinamente representado pela seguinte cena. No dia em que a Polícia Judiciária efectuou buscas nas casas dos ex-ministros das Obras Públicas, Mário Lino e António Mendonça, e do ex-secretário de Estado Paulo Campos, em Setembro de 2012 (num processo que continua aberto para investigação ao dia de hoje), Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça, lançou a seguinte pulhice: “Acabou o tempo em que havia impunidade”. Esse “tempo da impunidade”, na cifra usada, era aquele em que Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento defenderam as suas instituições, a Constituição, os códigos legais e a República. Daí a golpada do Vidal de Aveiro não ter conseguido colocar Sócrates como arguido no Face Oculta antes das legislativas de 2009. Agora é que ia ser bom, ouvia-se a Torquemada da Cruz a afiar as facas. A direita passava a ter uma maioria parlamentar, um Governo, um Presidente da República e uma PGR. Não, já não estamos no sonho de Sá Carneiro.
À frente do DCIAP, foi Amadeu Guerra quem definiu a estratégia para desta vez Sócrates não poder escapar. Foi dele a decisão de se fazer a detenção no aeroporto, à chegada a Lisboa, e ele fica como um dos maiores suspeitos pelos crimes de violação do segredo de justiça na Operação Marquês — os quais começaram em Julho de 2014, e explodiram na própria noite da detenção. Foi dele a decisão de se prender Sócrates não porque existissem provas que o justificassem mas para as tentar arranjar. Sócrates foi preso para ser investigado. E também para ser exibido como troféu num linchamento mediático e popular. E ainda para pressionar todos os juízes que viessem a deliberar no que se sabia implicar anos de litigância judicial. Pois é esta pessoa, com estas responsabilidades e influência no decurso da Operação Marquês, que montado no cargo de PGR vem transgredir insanavelmente o seu estatuto de magistrado e pôr em causa valores basilares do Estado de direito. Violando o seu dever de reserva e de imparcialidade, despejou na praça pública aquilo que de imediato se traduz como uma convicção de culpabilidade. Tal posição, vinda da mais alta figura do Ministério Público e num caso de enorme relevância mediática e institucional, fragiliza a confiança dos cidadãos na Justiça e compromete a integridade do sistema democrático ao contaminar um processo judicial a decorrer.
Donde, que pretendeu este pulha com esta pulhice? Os meus 10 euros vão para a tentativa de continuar a pressionar os juízes através de uma manifestação de força e impunidade. Que alcançou. O silêncio de jornalistas e políticos que se seguiu às suas declarações significa aprovação do regime. O regime aprova a violação do Estado de direito como excepção porque Sócrates. Para os restantes cidadãos, as leis continuarão em vigor. Enquanto os Amadeus quiserem, claro.