Os impérios do Espírito Santo, em Santa Maria, têm quase a idade do povoamento da ilha. E por isso mantêm a memória de uma receita culinária de antes da chegada das especiarias orientais. A carne, cortada em grandes pedaços, é temperada apenas com sal e cozida durante várias horas. Depois, com o caldo ainda meio fervendo, põe-se-lhe dentro hortelã e endro. Uma delícia, apesar de que o aspecto das copeiras era algo soturno. As mesas enchiam-se de manhã à noite. E havia sempre um lugar no estômago onde cabia mais um bom naco ou dois de carne, postos sobre fatias de pão endurecido e no qual fora vazado aquele caldo generoso que depressa enchia os lábios de gordura. Entretanto, os serventes da mesa não se descuidavam, para que nada faltasse. Ora traziam mais sopas, mais caldo e mais carne, ora iam andando à volta servindo o vinho a todos no mesmo copo, que logo ficava besuntado. Viam-se ao longe as marcas da gordura. Agora, embora no essencial nada tenha mudado, deixou de haver os “agarradores” (cuja função era arrebanharem gente para a copeira, às vezes à força para que não houvesse um único lugar vazio), os copos são de plástico e individuais, há água quente na cozinha para lavar a loiça, e, para além do imprescindível vinho, não faltam os refrescos da moda.
O mordomo, apesar de ser chamado imperador, pouco ou nada manda. Uma verdadeira democracia. Até nas filas para entrar na copeira não há senhorias. Como muito bem escreveu, em 1920, o padre Joaquim de Chaves Cabral: “A ficção liberal – o rei reina mas não governa – do constitucionalismo acha a sua plena realização nos impérios marienses.” Mandam todos os outros, sobretudo o trinchante, com o seu lenço de seda branca, ou colorida, ao pescoço. Tem a seu cargo a carne, que pode ser de até umas oito reses ou mais, dirige todos os restantes membros da “equipagem”, e é ele que distribui o pão de mesa e as formidáveis roscas, de massa ligeiramente adocicada. Os enormes pães da mesa são mais insípidos, sendo os menores de alqueire, cerca de doze quilos de farinha. Para os cozer, todos os fornos foram feitos com uma pedra amovível na boca. E não é costume faltar o pão leve, os biscoitos encanelados e os biscoitos de orelha. Pelo menos estes são receita mariense já com fama nacional.
Abaixo do trinchante, também dito presidente, vem o mestre-sala, o primeiro dos três briadores, que acompanham todos os momentos mais importantes da função. São rapazes escolhidos entre os de melhor fama do lugar. E há o copeiro, que põe e dispõe na copeira, e que tem a seu cuidado o vinho. Lá no fim da lista, aparecem os serventes ou ajudantes, que são o pau para toda a obra. As mulheres, claro, são indispensáveis. A elas pertence a maior parte dos segredos da cozinha e todos os do forno.
Uma das recordações mais fortes que ficam dos impérios de Santa Maria são os foliões. No aspecto, em pouco diferem dos companheiros da equipagem, com o lenço colorido à volta do pescoço. Um toca o tambor e outro os ferrinhos ou uns minúsculos címbalos, indo ao meio o porta-bandeira. Nada acontece sem a sua presença antes do dia da função e, durante esta, de manhã até à noite ouve-se aquela toada mourisca que vão como que ronronando sempre. De nada serve aclarar-lhes a voz de pouco a pouco com gemadas em vinho e açúcar, servidas numa tigela. Mas a presença da folia é fascinante.
encantam-me todos os rituais em torno da refeição. essa parece deliciosa: gosto de carne muito cozida, a desfazer-se, com pouco tempero e ervas, e caldo no pão. na tradição antiga dispensaria a colectividade do copo, na actual os refrigerantes.
com essas ofertas culinárias das ilhas que vens oferecendo a juntar-se às paisagens sobejamente reproduzidas, começo a pensar seriamente que deveríamos fazer aí a grande festa do aspirina…
fica-se logo a lamber os beiços Daniel e com um grande ledisse
Não faltou nada nesta neste cozinhado de gastronomia e de boa tradição.
Só era escusado abrir tanto o apetite…
De facto este excelente é de abrir o apetite quer gastronómico, quer cultural e turístico; nunca fui ao Açores mas quero ver se vou conhecer essa líndissima terra logo que possa.
errata (falta a palavra texto): este excelente texto
Meus queridos amigos
Graças a Deus, e à vossa inteligência, o meu texto cumpriu a sua função: despertar a curiosidade, talvez mesmo um certo afecto, por Santa Maria. A maior parte da sua paisagem não tem nada que ver com o verde da propaganda, e da realidade, de quase todas as ilhas. Mas disso espero falar proximamente. E, depois da Páscoa, come-se de graça, e deliciosamente, nos fins-de-semana.
Aí até uma coisa simples como um simples bife acaba sendo uma delícia pantagruélica. Eu que o diga pois comprovei tal facto em 1992. Belo texto.