Soromenho escaqueirado

Ao ter pespegado o seu nome nestes 1784 caracteres (com espaços) – Ostracismo em prime time – Viriato Soromenho Marques ultrapassou o chamado, entre a malta que percebe disto, “horizonte de Carrilho”. Trata-se de um ponto de não-retorno onde a honestidade intelectual e a respeitabilidade cívica ficam aprisionadas pela força da gravidade. A gravidade de se perder a cabeça e usar uma coluna de opinião num jornal dito de referência para um exercício de puro ódio. E como estas cenas tristes são pagas (quanto é que sacaste à pala de mais um transe raivoso, Soromenho?), fico doido de inveja a pensar no dinheiro que estes cabrões metem ao bolso a despachar pulhices que lhes tomam 15 minutos de gasto.

Desta personagem caricata não se conhecem indignações a respeito dos crimes de que Sócrates é vítima. A “degradação do espaço público” que viu na entrevista a Sócrates não a consegue vislumbrar nesses que exploram a “Operação Marquês” com fins comerciais e políticos, sejam indivíduos ou órgãos de comunicação social. Provavelmente, apoia a justa luta do esgoto a céu aberto para que a devassa, deturpação e aviltamento da privacidade de Sócrates e terceiros seja feita impunemente. Certamente, considera que a actuação de Rosário e Alexandre é imaculada, sagrada, e que isso dos prazos falhados para isto e para aquilo não interessa nada. O que interessa é destruir o monstro. Tudo bem. Só é chato é nada justificar, nada demonstrar, nada citar. Nem sequer quando apela a que o sistema de Justiça reaja “como um todo”, comandado pela virginal santa Joana na sua armadura reluzente, e se abata sobre esse cidadão que ousa defender-se em público de objectivas anomalias e indeléveis crimes cuja responsabilidade primeira é da Justiça portuguesa na pessoa de alguns dos seus agentes. Dá até ideia de que não viu a entrevista, tamanha a discrepância com o que ficou registado. A cegueira do ódio é a mais provável explicação para o fenómeno.

Todavia, o que me fascina no seu texto não é o ódio, é a ignorância. Porque este “professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, regendo as cadeiras de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea”* tem a estultícia de afirmar em público o seguinte:

Sócrates, cuja deriva histriónica é inegável, fez-nos regressar à democracia ateniense, quando não havia separação de poderes nem processos formais de investigação.

Não contente, acrescenta mais uma bacorada:

Quando a condenação até do mais justo dos heróis da Antiguidade - o general Aristides (530-468 a.C.) - poderia ser induzida por um demagogo, incendiando uma multidão na ágora. Partindo bilhas, e usando os cacos como boletins de voto, no sinistro processo de ostracismo.

Começando pelo fim, e mera curiosidade, este Aristides ganhou o cognome de “o Justo” porque foi ele o responsável por estabelecer as contribuições a que as cidades participantes na Liga de Delos ficavam obrigadas. Ao permitir que os aliados escolhessem entre enviar navios, homens ou dinheiro, recolheu o aplauso unânime. Em suma, esta do “mais justo dos heróis da Antiguidade” remete para um habilidoso ministro das Finanças e sua política fiscal, não para um mestre de sapiência.

Mais importante é o disparate largado a respeito do ostracismo. Percebe-se a intenção canhestra, colar Sócrates a uma malignidade marcada como “sinistra”, todavia, para azar do Soromenho, o ostracismo cumpria uma função pacificadora. Foi criado por Clístenes, sendo proposto o seu eventual uso uma vez ao ano, e destinava-se exclusivamente, ou assim se presume, aos actores políticos. A sua lógica era a de solucionar sem perda de vidas e propriedade, pois o ostracizado continuava senhor dos seus bens, impasses conflituosos antes de estes escalarem para níveis e formas de violência incontrolada. No caso de Aristides, é essa precisamente a situação dado estar envolvido num conflito político sem possibilidade de conciliação com Temístocles. Para além dessa condição prévia, era necessário recolher seis mil votos (ostracon, caco, daí a referência manhosa às bilhas partidas), o que é ainda muita gente hoje e era muitíssima mais na Antiguidade. Em suma, o ostracismo foi um dos vários modos pelos quais a democracia grega pôde regular-se e defender-se de abusos e riscos políticos. Aliás, deixou de ser aplicado quando se concluiu já não servir para o propósito bondoso que lhe deu origem. Obviamente, tivessem estes rústicos destes gregos sinistros o grande Soromenho para os governar e o ostracismo nunca teria existido. O ostracismo e outras coisas que eles também se lembraram de inventar, talvez nem as ruínas que nos chegaram tivessem resistido à limpeza que o nosso magnífico professor catedrático faria de cátedra.

Indo agora para a temática da “separação de poderes” e dos “processos formais de investigação” na democracia ateniense, a barbaridade do que fica escrito só é superada pelo desprezo que o Soromenho devota à defesa do nosso Estado de direito, preferindo entregar-se à paixão por Sócrates (num grande azar, o Sócrates por quem está apaixonado é o português, não o grego ou o brasileiro). Não será por acaso que essas duas facetas, a ignorância e o desprezo, convivem na mesma cachimónia.

Soromenho apela aos seus leitores para acreditarem nele quando diz que a democracia ateniense era um circo onde um palhaço qualquer se levantava, fazia umas macacadas e conseguia expulsar da cidade “o mais justo dos heróis”. Este herói, na economia do subtexto, é a Joana Marques Vidal, “a mais justa das procuradoras”. O palhaço é Sócrates, o demagogo sinistro que quer chutar para longe a pobre coitada da Joana. Enquanto isto se passa algures em Portugal no ano da graça de 2015, que se passava na Grécia Clássica? Passava-se que desde a criação do edifício mitológico e a estruturação administrativa da prática religiosa, passando pelas obras teatrais, continuando pela reflexão dos filósofos e culminando na invenção faseada da democracia, o que confere unidade a este momento da civilização é a celebração da lei como princípio de coesão social, prosperidade económica e segurança militar. O legado intelectual da cultura grega que ficou como pilar civilizacional é um hino à racionalização da vida em comum dos “seres que habitam na cidade”.

A democracia ateniense desenvolveu variados processos que pressupõem uma efectiva separação de poderes, e isto para além da divisão da governação entre diversos órgãos de deliberação e influência e da instituição dos nomótetas, especialistas em leis. Foram eles: dokimasia, epicheirotonia, euthyna, eisengelia, graphe paranomon e graphe me epitedeion theinai, pelo menos. Em cada uma destas instâncias está em causa fiscalizar o poder político a partir de um direito literalmente cívico, seja preventivamente, posteriormente ou durante o mandato. Elas pressupõem a aguda consciência de que o abuso de poder é uma constante tentação. E correspondem à primeira tentativa para salvar a democracia de si mesma, pois se trata do mais complexo dos regimes políticos e implica uma coesão alargada da comunidade para ser viável. Quanto aos “processos formais de investigação”, e não havendo comparação legítima a fazer entre os nossos sistemas de Justiça e os que existiram na Antiguidade, importa realçar que a defesa de cada cidadão estava a seu cargo e que este tinha de se sujeitar a um júri que estava igualmente sujeito ao respeito pela lei. Porém, basta ler a Apologia de Sócrates de Platão, pun intended, para se atestar tanto do valor constitucional da liberdade de expressão, apanágio da cidadania, como da possibilidade de corrupção por parte dos agentes da justiça. Mutatis mutandis, é precisamente com esse cenário que nos confrontamos nesta fase da “Operação Marquês”.

O tema é vasto demais para ser tratado aqui e por mim. Mas é o tema que um cronista do DN foi buscar para atacar ad hominem um cidadão arguido numa investigação judicial em curso. No que fica como um péssimo serviço à sua reputação. A tua, Soromenho.

18 thoughts on “Soromenho escaqueirado”

  1. excelente valupi, uma lufada de ar fresco.

    O soromenho se ler isto vai andar à procura da cabeça, durante muito tempo.

  2. muito bem.
    podias ainda ter referido a vacuidade da referência a debord e a um dos melhores textos teóricos do sec. XX, a sociedade do espectáculo. fiquei com a sensação que nunca leu o texto e apenas leu sobre ele (provavelmente, de fontes duvidosas).
    se quis passar a mão pelo pêlo aos mais radicalizados à esquerda que não chupam o sócrates ou ficaram com ele atravessado, saíu-lhe o tiro pela culatra.

  3. Vejo que não conheces o Seromenho, Valupi. Se o conhecesses não dirias que o homem odeia o Sócrates. Para odiar é preciso ter uma convicção qualquer. Ora Seromenho só tem uma convicção: o sucesso de Seromenho! O mais que tiver que dizer ou fazer para isso, é meramente instrumental.
    Seromenho já era assim nos tempos de faculdade. Não foi por acaso que ganhou a alcunha de “O plasticina”: Seromenho defendia isto e o seu contrário, tendo por único critério qq expectativa de vantagem para Seromenho. Num tempo em que eram correntes os trabalhos de grupo, Seromenho saltitava entre grupos, tendo como critério escolher os mais reputados em cada matéria. O oportunismo era mal visto, mas acabava por ser aceite, pois as contrapartidas de Seromenho eram relevantes: Seromenho passava tudo a limpo na sua Messa 2002 e organizava a bibliografia. Perante a necessidade de produzir qq coisa da sua lavra, desde cedo revelou esta propensão para remeter para referências que não leu, sempre na esperança que mais ninguém tenha lido.

  4. … poderia recordar-me de algumas reuniões tidas com a personagem algures em 1992/93 em que se percebe que ele já estaria a meio-caminho de uma carreira, licenciado, a tratar da sua vida profissional ao mesmo tempo que assinalava. superiormente, as impossibilidades aos outros. Lembro-me também que tinha, na altura, uma troupe para o venerar, pequena e não representando nada mais para além de si próprios. Criou-me pois alguma espécie quando o soube, anos depois, professor universitário na UNL o que não deixa de ser um caminho solitário. Pouco gregário (onde já vão essas ideias da imprensa especializada da época que tinham como guru o Ribeiro Telles e um tipo de que não retive o nome), intrinsecamente dado a invejas entre os seus pares e a ódios diversos.

  5. Ao ler o brilhante texto do Valupi, mormente a frase “… como da possibilidade de corrupção por parte dos agentes da justiça. Mutatis mutandis, é precisamente com esse cenário que nos confrontamos nesta fase da “Operação Marquês”.::” ocorreu-me um pequeno livro que adquiri numa das muitas viagens a Ponta Delgada que efetuei em finais dos anos 90.
    Tratado da Política, de Aristóteles, editado por Francisco Lyon de Castro para a europa-américa.
    O pequeno livro de bolso que li, enquanto esperava pelo voo para Lisboa, tem um capítulo que me chamou à atenção na altura, o capitulo, O Poder Judiciário. Este capitulo, onde se descrevem os vários tipos de tribunais (oito) e até formas de nomeação e eleição dos Magistrados, tem uma curiosidade que me deixou alerta, a primeira espécie de tribunal proposta é, cito:” A primeira, para a prestação de contas e o exame da conduta dos magistrados.”
    Como diz muito bem o Valupi, será que desde então os magistrados foram ungidos por óleos sagrados e passaram a estar acima de toda e qualquer suspeita, por muito que a evidência nos diga o contrário!?

  6. Mais um abatido por Valupi!
    Por falar nisso, já leu a crónica de Francisco Teixeira da Mota hoje no Público? Dê-lhe também !!!

    Vasco Pulido Valente também escreve hoje no Público mas já lhe deve ter malhado, sinceramente não me recordo: começa a fazer falta uma lista na coluna da direita do blogue dos “escribas vendidos ” em que já malhou a propósito do caso Sócrates (fica a sugestão).

    P.S.: Não quero com este comentário sugerir que o caso Sócrates é uma obsessão sua, já basta o JMT.

  7. pois ainda bem, para o meu pelo menos, que esse senhor se armou aos cágados e às cagadas: mais uma oportunidade eu eu aprender coisas novas e boas através de uma valspirina. :-)

  8. É. O Vasco Pulido Valente também falou no processo Sócrates para pedir que não se fale mais no processo Sócrates. O esquema habitual. Tem sido graças a essas generosas contribuições de tantas dezenas de invejosos rancorosos, cuja existência desconheciamos, no espaço público português, que se mantém aceso o archote que ilumina a maior barbaridade mediático-judicial da nossa geração.

  9. Soromenho: «Parecia, até, que o entrevistado usava da palavra depois de o seu processo já ter transitado em julgado, tais foram os permanentes protestos de inocência.»

    Lapidar.

    E demais para longas análises.

    É citar e pasmar. Nem sei que diga.

    Excremencial? Sem dúvida, mas assim, sem mais, até parece uma reacção primária, sem reflexão e apropriação do sentido profundo.

    Provavelmente o procurador Vichinsky e o seu braço direito, o general Nikitschenko, saberiam responder com mais arte.

    Acho que o meu braço direito em coligação com o meu braço esquerdo também são capazes de saber.

  10. o seromanhoso é isso tudo que o rodrigues botou aí acima tirando o resto e as partes pífias, uma espécie de congelado “lena matos” que a rtp nos serve em directo do micro-ondas. uma geração de lambebotas que disfarça com boas maneiras a educação que nunca teve, dos profírios aos seixas há em todas as cores e números .

  11. Muito bem escaqueirado ! Estava mesmo a pedi-las, pois é mais um ressabiado
    das movimentações de António Costa, parece que estava certo que o Seguro lhe
    confiaria uma pasta ministerial assim que chegasse ao poder!
    Se é professor de Filosofia pouco aprenderão os seus alunos, pelos seus escritos
    vê-se que, a especialidade é citar os grandes autores e filósofos sem acréscimos
    próprios que mostre um pensamento … faz lembrar o prof Carrilho no ódio de
    estimação o que, só revela a medíocridade dos cronistas !!!

  12. Que classe de texto.
    Que simplicidade a passar conhecimento.
    Que classe de comentarios.

    Que alegria encontrar convergência de análise sobre as figuras do incrível que pululam pelas tvs.
    A helena matos arrepia.

    Um modesto acrescento sobre momentos incríveis já que José Sócrates está a elevar o nível de exigência na informação e debate.

    Pacheco Pereira o inquisidor negro sobre a liberdade de imprensa, sempre às voltas com o seu complexo
    por um dos mais asquerosos momentos da sua carreira não perde oportunidade, fora de contexto, de usar frases surdas atentatórias do bom nome de José Sócrates .
    Um modesto que lá vai inchando o peito pela distinção Serralves descartando, enfaticamente, o material.
    Um magnânimo!
    Um desinteressado.

    Já agora talvez perceber-se o porquê de fernando rosas na prova dos 9 , de cabeça baixa enfiando-se cadeira abaixo distribuiu farta moral farisaica sobre o dinheiro gasto por um cidadão livre.
    Não sei da sua moral sobre dinheiro ou outras coisas mas gostava de saber.

  13. Sou só eu a achar que alguns destes bravos moços(lembro-me também, por exemplo, de JMT) nutrem algum tipo de pulsão homoerótica pelo ex-PM?
    É que também é de mais, caramba…

  14. Muito bem, Valupi. Além de ser uma intervenção notável da sua parte, é uma obra de caridade feita a Portugal pôr em pêlo estes sábios do regime. Ver o Soromenho e ouvi-lo na RTP, com a Helena Matos ao lado, é de vomitar. Que dois! Não percebo como é que o Deusdado se presta a isto. A Tiazona da Extrrrema Dirrreita e o Malacueco. E nós todos obrigados a pagar isto!!!!!!

  15. Como nota prévia digo que estou-me cagando para o que diz o Seromenho, o Seguralho, ou o Caralho, não deixo porém de notar a insídia pérfida e cobarde desta creatura chamada ( por vezes ) Valupi, que sob o manto do anonimato cobarde desfere calúnias e ataques ( ridículos, por sinal ) a torto e a direito, não podendo deixar de notar que tresanda uma verrinosidade caracteristica e muito própria dos homossexuais .
    Será por Sócrates ter roubado ao Bloco e assumido a bandeira dos direitos dos diferentes, sejam homossexuais, ( paneleiros, ou na variante mais chic e fina, gays ), lésbicas, transexuais e fauna relacionada ?
    Miguel Vale de Almeida, que veio do Bloco, ingressou no Ps e foi deputado por este partido, o primeiro deputado eleito assumidadmente gay .
    Porque não revela Valupi a sua verdadeira identidade e continua cobarde e anoninamente a caluniar e a, ridiculamente, aliás, criticar em tom de revista de coluna social, o que outros escrevem ?
    Tem medo ? De quê ? Só pode ser dele mesmo, das consequências por aquilo que escreve ( sob vários nicks, presumo eu, um deles, Ignatz ).
    Tanta merda com o estado de direito e refugia-se no anonimato .
    Compreende-se bem porquê …

  16. KAN GURU
    Julgas-te muito esparto não é? O que tu sabes já me esqueceu há muito, submarinlo mal enjorcado. Vai dar uma volta pelo Parque Eduardo VII, pode ser que tenhas sorte. Está a doer-te a coça no Malacueco? Põe arnica. E para terminar e rimar com o teu pseudónimo, vai levar no….

  17. Vai tu ó Tobias, que apanhas em todas as vias .
    Esparto é uma planta com caules dos quais se fazem capachos e esteiras, ó Tobias baracinha, noto que és guia de algum roteiro . Tu lá sabes do que falas .

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *