Também eu, a la Fernando e sem lhe pedir autorização, destaco parte de um comentário de Jorge Carvalheira adentro de um post que já era dele. É um texto delicioso, e bombástico… De caminho, recupero a tradição dos itálicos, de tão boa memória no BdE.
Anónimo, ou Dona E., ou lá o que é:
Assim de chofre V. assustou-me, nessa silhueta altiva de embuçado. A escura capa, o chapéu sobre os olhos, a protestar, ao Fernando, contra um vilão qualquer… Quase o confundi, oculto e misterioso, com umas figuras que antigamente havia, elas também secretas, também de chapéu e capa cintada… Mas depois vi que não. O seu estilo, bem lido, é mais do homem da Sandeman. Ou assim.
Eu só tinha ido ali visitar o blogue, “de viseira aberta” e coração nas mãos, não vi que o quarteirão era seu, desculpe lá!
Mas vamos ver se é possível meter algum rossio nesta acanhada betesga, um par de coisas há-de lá caber.
A primeira é o que V. chama, por erro crasso, choramingueira. Saiba que é raiva. É ira. É fúria, algumas vezes. É frustração e desespero, muitas. V. pode intuir as razões, mas eu vou alinhavar-lhas.
Eu não chamei a terreiro a educação daqueles largos tempos da nossa longa vida colectiva, em que três quartos do país trabalhava de sol a sol sem direito a uns sapatos, a uma camisa, a uma escola (lembra-se deles?), para o quarto restante viver à tripa forra. Para esses tempos nefastos há escusas avulsas, a pedido, foi ele a ditadura, a atribulada república, foram os desleixos da monarquia antiga, a economia fraca, a miséria geral…
Eu falei apenas dos últimos trinta anos, em que tivemos todos liberdade como nunca, de escolher, e de optar, e de decidir da nossa vida. Nunca houve na história de Portugal tanta escola, nem tantos alunos, nem tantos professores, nem tantos livros, nem tanto dinheiro, nem tanta iliteracia, nem tanto analfabeto funcional, nem tão crassa ignorância, nem tamanha ausência de educação. Então qual é agora a desculpa, perguntei eu, numa lógica honesta. E sugeri (sustento) que, não sendo nós piores que outros (salvo o que de nós disse um certo romano, há muito tempo), o busílis poderá estar, entre outros, na história que foi a nossa, e na vida que andámos 500 anos a fazer. Sugeri que não chegaremos à modernidade, nem apresentaremos cara lavada, antes de nos limparmos da fuligem.
É isto uma heresia, bem o sei, para consciências delicadas. Mas o mundo, que não fui eu que fiz, anda aí cheio delas. Senão vá V. perguntá-lo à história, à nossa em particular. Vá com cuidado, não bata a qualquer porta! Não gaste muito tempo com histórias de encartados, os das grandes roupagens oficiais, pelos riscos de conto do vigário. Essas histórias têm por trás a carreira, sabe como é, uma cátedra, a pública consideraçãozinha, o mais certo é adoçarem-lhe esta pílula mais amarga, ou aquela verdade menos cómoda, segundo a antiga ciência do sobreviver. Por isso experimente V. ir à literatura, excelente lugar para refugiados. Puseram-lhe sempre famas de falsa e de fingida, na bem fundada esperança de que o povo não venha a lê-la. Troque-lhes V. as voltas. Esqueça as alamedas épicas e vá por certos becos do Camões, anda por lá muita verdade ostracizada. Bata à porta do Sá de Miranda, que fazia sonetos como quem calceta ruas, ele explica por que se foi ao Minho e mandou os da corte bugiar. Em podendo, passe no Diogo do Couto, não perca por nada o Bernardo Gomes de Brito, espraie-se no Fernão Mendes Pinto, divirta-se com as entrelinhas do Gil Vicente, e vá perguntar ao Buchanan e ao Clenardo de Lovaina, eles lhe dirão o que a Índia, em três tempos, fez de nós.
E se ainda me segue, Dona E., procure outros que eu aqui não citei, que eu nem conheço, mas que andam por aí à sua espera, eles sabem muito bem que só é cego aquele que não quer ver. Havendo empenho seu, eles lhe mostrarão de que maneiras, para sossego do trono e do altar, os poderosos trucidaram sempre os mais sabedores de nós todos, os mais insubmissos e os mais lúcidos, os Damiões de Góis e os Teives humanistas, os Vieiras e os Cavaleiros de Oliveira, os Verneys e os Ribeiros Sanches, mesmo os duros Pombais, quando existiram, os estrangeirados iluministas, os liberais malhados, os republicanos maçons, os socialistas utópicos, os Jesus Caraça e os Azevedos Gomes, os Rodrigues Lapa e os Pulidos Valente, as Marias Lamas e os Jorges de Sena e os Luíses Gomes, que mais sei eu, nem um célebre bispo do Porto escapou.
E se ainda lhe sobrar algum fôlego, perca-o no Saramago dos anos 80, esfalfe-o no Lobo Antunes que já houve, antes de haver um génio. Mas não perca algum Quental, escabiche um bocado no Eça, e no fim vá ler a história alegre do Pinheiro Chagas, que era aquilo que o seu povo merecia. Vá, e indigne-se!
Não sei o que lhe diga sobre as criancinhas da Europa, que há cem anos andavam a trabalhar nas minas. Deus me livre de pensar que na Europa nunca houve exploração do trabalho! O que apenas poderá preocupar-me são aquelas criancinhas que na minha terra ainda hoje o fazem.
Por fim, onde viu apelos à resignação, V. tresleu. Mas não desanime, homem! Vê-se por aí muito pior! E não se ponha assim por baixo das rachas do meu texto, maré de levar para casa o embaraço duma pinga de lirismo, a comprometer-lhe o fato.
Jorge Carvalheira
Poças, Jorge. E, se eu lhe disser que a Dona Ermelinda também não é pêra doce, saberá que pode esperar-se concerto.
Valupi,
Agradeço teres tirado do cesto mais uma viçosa beringela da pena fina do Jorge Carvalheira. Uma oportunidade, diria, para dares largas ao vício que tens de usares pistola de cano curvo. Agradeço na mesma. Se o não tivesses feito, iria o fruto certamente apodrecer por lá, porque por regra quase rígida não costumo voltar à cena do crime quando os posts parecem ter estagnado ou estão a uma distância de 80 cm. Não vou responder-lhe nem agradecer-lhe este novo tsunami de prantos, esta biblioteca de chumbo a fazer-me derrear com conselhos e lengalenga diversa. Talvez mais tarde arranje tempo para isso. Agora limito-me apenas, recorrendo às suas próprias palavras, a lembrar ao nosso descendente de “cafres” a “gravidade” e a comoção desnecessária dalgumas das suas declarações anteriores sobre o contencioso da “educação”.
– Para quem ainda não tenha a lista completa e oficial das nossas excelências individuais e debilidades de caracter como grupo ou nação, hoje é dia de sol e de bebermos com sofreguidão do nosso homem se quizermos ganhar a tal “modernidade” que nos escapou. O Sidónio Pais, se por cá andasse, até talvez gostasse de ter lido isto. De estranhar: qual é o problema com o capataz francês ou inglês? Segue o certificado escrito em cima do joelho e sem pensar no futuro.
“Somos óptimos, individualmente, e a trabalhar sob um capataz alemão. Colectivamente, não sabemos governar-nos, não temos capacidade para gerar uma elite que nos dirija. Somos desorganizados, corruptos, irresponsáveis, infantis, cafres, cafres, cafres. Os espanhóis viram-se livres da gangrena imperial, que também os aniquilou, há 100 anos. Nós apenas ontem. É o tempo que nos falta, para atingir a modernidade”.
– O seguinte naco, muito informativo, põe tudo em pratos limpos sobre a natureza e progressão do 25 de Abril e agora, finalmente, já sei por que é que o meu tio Bruno Costa de Almeida e Meireles, antigo protegido de Salazar e regressado há pouco do Brasil para recomeçar a roubar, usa bigode postiço e cabeleira à madame Pompadour nos transportes públicos. Aqui não se sabe se a satirização é irmã germana da contradição. E outra coisa: nunca chegámos a saber se os inteligentes excediam os cosmopolitas em número.
“Os senhores viram este povo um dia fazer em desespero as atrasadas contas com a história e tomar o freio nos dentes. Tão bem tomado ele foi, e tão grande era a culpa histórica, que a clique dos poderosos, dos inteligentes, dos cosmopolitas, fugiu toda para o Brasil e ainda hoje não anda muito à vontade por aí”.
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– O que se segue fere-me duma maneira atroz, porque revela a parva que fui tantos anos, de andar “despatrioticamente” a deixar-me embalar pelas falinhas mansas dos pastores da Serra da Estrela. Renego e renuncio, a partir de hoje e graças ao Jorge, a tais manias de grandeza regional que nunca me deixaram lobrigar dentro da barriga do verdadeiro lirismo geográfico.
“Os senhores viram este povo a meter à força na cabeça que o ponto mais alto da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor”.
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-Ou esta, ainda mais interessante, que nos dá uma ideia da ideia que o Jorge faz da palavra “nenhum” e consequentemente nos leva a concluir que quando o amante de brochuras em artísticos elzevires precisa de ir ao Montijo prefere, neste tempo de modernidades mal aproveitadas, ir de bote ou a nado para não cair em contradição.
“Os senhores viram o que foi feito de tanta riqueza que chegou nas caravelas, e puderam ver já que o mesmo destino tiveram os fundos que vieram da Europa, sem proveito nenhum para o país”.
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-E, finalmente, porque isto está a ficar basto comprido, quem é que teria metido na cabeça do Jorge a ridícula noção que na era dinisiana havia “pobres” felizes, sem boca para queixumes mas mão segura para afiar lanças? É preciso ter lata, ou então forte andará por ai a ingenuidade de fazer fé em todas as romançadas que nos põem nas mãos. Ou vontade de ir em rodologias…
“No tempo do rei Dinis os portugueses arroteavam terras, afiavam as lanças, construíam castelos e não se queixavam de ser pobres”.
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Obrigada, Valupi, és um santinho de navalha.
DonaE
Dona E:
Vamos pôr ordem nisto, antes que nos tomem por gigantones de feira.
Eu sugiro que no tempo do rei Dinis os portugueses tinham dignidade e alma, e não se queixavam de ser pobres. A senhora quer saber se eles eram felizes.
Eu sugiro que Portugal é há muito uma aranha, de ventre centrado em Lisboa (a imagem não é minha),e que as suas estradas e pontes de ir ao Montijo vêm a ser as patas que faltavam. A senhora pretende que é isso a modernidade. (Aqui concedo,porém, que o “proveito nenhum” em que tropeça é uma gralha discursiva; troco-lho, com muito gosto, por um “escasso proveito”).
Se eu sugerir que D. Henrique cometeu uma patifaria, quando se opôs à devolução de Ceuta e condenou à masmorra o irmão (a quem viriam a chamar Santo, certamente por cair tão mal na vizinhança espetarem-lhe ao peito, como recompensa, a comenda do Infante), vai a senhora queixar-se a Fernando.
Sugerindo eu que patifaria igual (sem razão de estado a impô-la)foi feita a Vassalo e Silva, quando lhe ditaram o sacrifício de 3500 homens, sem munições nem armas, diante de 45 mil indianos que reclamavam Goa, a senhora vai queixar-se a Valupi.
Poupemos tempo. Sente-se a senhora bem no retrato. Eu não. Ainda falta muito para merecermos um melhor. Mas já faltou muito mais.
Ó Jorge,
Deixe-me lá responder à sua resposta. Mas aviso-o já: lê-la duas vezes e meia não foi brincadeira nem veio ajudar-me em nada, e não recomendo a ninguém esperançado no dia de amanhã a imitar-me. Quanto mais leio menos percebo na maneira que você gostaria, mas percebo bem que você se esforça um pouco para deixar rasto passageiro neste blogue. Seja benvindo, homem, é de gente bem lida e de letradura que este blogue está a morrer à sede!. Faça sombra ao Venâncio e use essa calma de desiludido para irritar ou deliciar o resto.
Oculto e misterioso?. Pois fique sabendo que sou muito menos misteriosa que o que lhe parece. Não sei se há beliscão nessa do Sandeman, mas, se houver, que raio, também posso viver com a pele negra por uns dias.Revelação do dia: não topo esse rótulo há muitos anos.
Vejo agora, pesaroso, que não era choramingueira sua, porque assim mo diz. Peço me desculpe por tal crassidade na classificação. Defeitos de interpretação que dormem e acordam com a gente. Para a próxima farei um esforço para ser menos pro-sorumbática. E ficamos combinados para sempre: é ira pura e frustração da sua parte. Cá nestas bandas também se consome e vomita disso, pelo menos uma vez por semana.
Ah, vejo agora, você não se referia à tal era pre-aprilina dos três quartos de trabalhadores a foçarem de sol a sol, sem sapatos nem camisa (e sem bota cardada, suponho)!..Se me lembro desses tempos? Não me lembro eu doutra coisa, Jorge, descalça e vadia, com uma mão sobre a parte da saia que me cobria a castidade e a outra a segurar no cabaz repleto de caranguejos e pichas, cala do rio acima, milhentas de vezes mais feliz que os pobres mininos descritos pelo Josué de Castro com tacho nas Nações Unidas desse tempo.
Sim, concordo consigo, e é pena não é? Com tanta coisa à nossa disposição neste Portugal de hoje (excepto bons salários para todos, mas isso é o menos porque vamos apertando o cinto, que até nos nos resguarda do perigo de apanharmos diabetes), incluindo o internacionalmente conhecido analfabeto funcional- tanto em matéria de farmácia como em politica real. Foi este seu lamento, menos explícito então, que me forçou a ver lágrimas escorrendo pelas quatro águas do seu edifício literário de homem aborrecidissimo perante o espectáculo posto em palco aqui no blogue pelos curandeiros da educação.Tudo carroussel da minha imaginação.Era bom que fosse.Era bom, era.
Depois manda-me passear, bater a portas, espraiar-me e divertir-me com a leitura de livros e de autores que praticamente não assustam ninguem nos dias desta primavera. E ainda por cima temos que descodificá-los, ter um olho como o seu, de entendido, presumo, mas outro bico de obra para o analfabeto funcional, para lhes encontrarmos sentido que nos ajude a fazer comparações úteis com o presente.
Não se contentando com isso, passa você a listar com imensíssima pachorra os heróis do passado, os hereges doutros tempos, de padres refilões jesuitas a liberais malhados e mações, que trabalharam tanto, tanto, tanto para a causa da justiça social e nobreza de princípios humanistas que acabámos neste país simples de “cafres”, como você muito iradamente lhe chama. Pode ser que a obra dessa gente tenha sido toda contra o “sossego do trono e do altar”. Pode ser, não lhe contesto. A chatice é que os tronos e os altares ainda por aí andam de velas bem enfunadas e vento em popa sem que as maiorias pobres sejam capazes de separar o zé do joão.
E quantos mais, diga-me lá, tronos e altares ainda temos para desassossegar? É um nunca acabar – mais sofisticados e mais fortes e experientes do que nunca, porque adaptáveis e adoptantes. Ler Vicentes, Góis, Camões, Vieiras e Eças é certamente instrutivo para julgarmos das ideologias e simpatias politicas que animaram esses cidadãos, com o adicionada vantagem e sabor que advem da apreciação de estilos e poderes de narração. Mas não há nada que me garanta (parece que você pensa diferentemente) que os historiadores e cronistas são menos dignos de confiança que os poetas, novelistas e romancistas. Todos foram, mais ou menos, vítimas ou soldados da endrominação e intriga politica, religiosa e oculta dos seus tempos. Escolheram um clube, ou Deus, ou o Diabo, e militaram nele. É que nem talvez houvesse maneira de fugir a isso.Tocaram guitarras humanistas, iluministas, iluminadas, liberais, anti-clericais e revolucionárias? Tocaram sim senhor, mas ao serviço de partidos e interesses que, equivocadamente ou não, ambicionaram ver colocados no poder. Tal e qual como hoje. Nada mudou porque progresso e reacção movem-se em linhas paralelas. Não se nota uma costura ou alinhavo.Trabalho de primeira e bem acabado.
Se você julga que os passados com mais de cem anos andam a abarrotar com memórias de homens com visão para nos inspirarem a compreender esta admirável “modernidade” que nos põe diariamente na frente pratos do dia repletos de corrupção politica, cientifica e religiosa que a maioria come sem examinar as frescuras ou qualidades, então, Jorge, aproveito para cumprimentá-lo já e dizer-lhe que faz muito bem em aderir ao clube dos veteranos descontentes.O Álvaro, esse ilustre político da esquerda, Tiago quando romanceava, era um deles. Andou sessenta anos a barafustar anti-imperialismos mas nunca descobriu o segredo dos ridiculos discos voadores, nem outras centenas de coisinhas simples mas interessantes. Lá está: andava sempre, clássico, a falar no Spartacus e no Robespierre..
DonaE
Façam toda a sombra, senhores. É um prazer ler-vos, meus cépticos.