Curso de ciência política

«0 conselheiro era um homem muito do século. O seu trato social, a frequencia dos círculos políticos e elegantes, haviam-lhe dado todas as boas e más qualidades, que caracterisam aquella classe de homens, e sabe-se que a candura de sentimentos não entra no numero das mais habituaes dessas qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria; se abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao enthusiasmo, mas somente depois de ponderar fleugmaticamente os fundamentos em que ella se baseava; assim era que, em politica, se costumara a contemporisar, espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente boa, para tempos em que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por utopias, desconfiava d'ellas; havia muito tempo que desviára dos olhos o prisma encantado, através do qual olham o mundo os poetas e todos os mais sonhadores; costumára-se a marcar por modelo, nas differentes carreiras da vida, não um typo ideal, dotado de todas as virtudes, limpo de todos os defeitos e vicios; assentára a menor altura o alvo; parecia-lhe que bom fito eram já os indivíduos que tinham conseguido maior consideração na sua classe; as maculas que elles tivessem, eram, por esse facto, maculas auctorisadas. O pensar de outro modo era pensar de romance; agradavel para entreter, porém mau nas applicações ás coisas da vida. N'uma palavra, o conselheiro era um homem de bem, mas na esphera mundana; não um d'aquelles typos de pureza crystallina, através da qual parece passarem sem desvio os raios da luz celeste; mas já um tanto embaciado do bafo, social, que não o fazia ainda totalmente opaco.»


A Morgadinha dos Canaviais_Júlio Dinis_1868

4 thoughts on “Curso de ciência política”

  1. O conselheiro era um cínico pragmático. Hoje daria um bom pulhítico, da escola do António Bosta.

  2. Um bom retrato do nosso ti Marcelo. -:) -:). Deve ser comportamento adquirido em família porque isso é um clássico.

  3. Este Post fez-me regressar aos bancos da ‘minha escola’, quando me obrigaram a ler a ‘Morgadinha’, o Eça, o Gil Vicente, e tantos outros, que sofreram o mesmo suplício ‘pulhítico’ (parafraseando Filipe Bastos) que nós, agora, outra vez.

  4. O trecho do post é tão lindo que até repito:

    “O pensar de outro modo era pensar de romance; agradavel para entreter, porém mau nas applicações ás coisas da vida.”

    “…espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente boa, para tempos em que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por utopias, desconfiava d’ellas; havia muito tempo que desviára dos olhos o prisma encantado,”

    Lembro-me do êxito de Uma Família Inglesa de Júlio Dinis, transmitida pela RTP, talvez a primeira. A maioria das pessoas ainda não tinha televisores e enchiam os cafés, à noite, para ver os episódios, com excelentes atores e atrizes. Foi um êxito.

    Acho que a ditadura não avaliou bem Júlio Dinis.

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