Até prova em contrário

A escolha do próximo Procurador-Geral da República é uma das mais importantes de sempre para o regime, para o Estado de direito, para a democracia em Portugal. Atendamos ao contexto:

– Em 2009, tentou-se incriminar um primeiro-ministro e secretário-geral do PS em funções a partir de escutas ilícitas a conversas privadas e tendo a iniciativa ocorrido em período eleitoral. Essa golpada não foi avante apenas porque o Procurador-Geral considerou destituída de fundamento a acusação. Essa acusação improcedente, recorde-se, recorria à difusa figura de “atentado ao Estado de direito”. Leia-se o que de facto estava em causa: “Não há indícios de que Sócrates tenha proposto, sugerido ou apoiado a compra da TVI pela PT”

– O material recolhido nas escutas das conversas privadas, apesar de judicialmente irrelevante, serviu de alimento para o combate político e para a sua exploração na imprensa. De imediato, as máquinas de Belém e da São Caetano ocuparam o espaço público com todo o tipo de insinuações e sensacionalismos, sendo explícitos no afã de mostrar que aquele era o seu grande trunfo para vencer as eleições: pintar os socialistas como criminosos através do apogeu da caça a Sócrates. Cavaco Silva, Ferreira Leite e Pacheco Pereira, cada um a seu tempo e modo (e apenas para nomear os cabecilhas da campanha negra), vieram garantir que algo de muito grave tinha sido apanhado pelos bravos de Aveiro. O histerismo tomou conta do laranjal televisivo e jornaleiro, era desta que o demónio ia para o chilindró, juravam babados e a gargalhar.

– Essa golpada não avançou de acordo com o plano, o qual passava por fazer de Sócrates arguido a dois meses das eleições de Setembro. Porém, viria a ter continuação até meados de 2010, levando a duas comissões de inquérito parlamentares, sucessivas campanhas de desgaste do Governo e espasmos de difamação raivosa cujos alvos foram Sócrates, Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento que ficarão para sempre aos olhos dos canalhas e dos broncos como cúmplices de encobrimento criminal. O que avançou, qual plano B já em desespero para um bando de inimputáveis, foi a “Inventona de Belém” – igualmente a meter escutas na sua encenação, mas onde o verdadeiro espiado passava agora a espião. Este caso da conspiração nascida na Casa Civil para perverter actos eleitorais, e suportada até hoje pelo Presidente da República, é tranquilamente o episódio mais sórdido do regime democrático. Aqui, como no BPN, não se faz investigação jornalística nem se lançam livros a contar histórias. Reina um silêncio siciliano.

– A ideia de que os governantes socialistas eram criminosos, e criminosos a uma escala épica, foi lançada pela elite do laranjal e só conheceu um sentido: crescer imparavelmente. O ressabianço e ressentimento foram levados ao extremo e os instintos de vingança arrasaram com qualquer pudor ou mero bom senso. Foi assim que vimos Catroga, no meio das negociações com a Troika em Abril de 2011, a pedir que o Governo do PS fosse levado a tribunal. Este tipo de declarações celeradas, repetidas por barões do PSD, mantinham altas as labaredas populistas que pediam um bode expiatório para a crise e onde a ignorância e a iliteracia, à direita e à esquerda, agudizavam o ambiente de ódio aos políticos que só tinha de ser canalizado contra o PS. Meses mais tarde, a JSD entregou ao Ministério Público documentos que visam criminalizar os governantes do anterior Executivo. Carlos Barbosa, o homem Correio da Manhã e um dos mais venenosos e poderosos passarões laranja, fez o mesmo. Esses processos estão em investigação.

– Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento denunciaram preto no branco o que se tentou fazer em sede de Justiça contra o poder eleito. As suas declarações não chegaram para juntar os amantes do Estado de direito à sua volta ou nas muralhas da cidade. A gravidade e o escândalo do que descreveram apenas conseguiu aumentar o ódio que os conspiradores e pulhas já sentiam por eles ao terem visto esbarrar nas suas figuras institucionais as manobras facínoras que desenvolveram. A posição do PS, que já era estranha no tempo de Sócrates pela sua aparente passividade embora possa ser compreendida à luz do sentido de Estado e da responsabilidade cívica dado estarem no poder, é agora ignominiosa com Seguro. O discurso da criminalização de Sócrates e de quem esteve com ele no Governo não tem no PS directivo uma única voz que se lhe oponha. É inacreditável e assustador.

– Teixeira da Cruz, ao dar vazão à sua pulsão persecutória contra os socialistas, exibiu fulgurante a natureza da elite do laranjal: o Estado é deles, porque é deles a noção de terem um direito natural e exclusivista ao poder. Pudemos assim assistir àquele espectáculo de arrebimbomalho só possível numa ditadura, onde uma ministra da Justiça declara culpados cidadãos que nem sequer foram ainda constituídos arguidos. A impunidade da sua acção, que nem sequer mereceu desculpa da própria ou reprimenda do Primeiro-Ministro, c’est tout un programme.

O que está exposto já chega para concluir: é possível usar a Justiça em Portugal para tentar manipular campanhas eleitorais, caluniar políticos e derrubar Governos. Isto foi feito recentemente por aqueles que conquistaram o poder absoluto: têm uma maioria, um Governo e um Presidente. São estes, estes mesmos, que acabam de escolher Joana Marques Vidal para Procuradora-Geral da República. A sucessão de elogios é transparente: a direita conspiradora e raivosa está convencida de que esta mulher vai fazer aquilo que Pinto Monteiro não quis fazer. De facto, os seus laços familiares assim o indiciam, pois tanto o pai como o irmão mostraram por palavras e actos pretenderem criminalizar cidadãos ligados a Sócrates e ao PS. Teme-se, pois, o pior.

Contudo, também ela merece ser tratada como nós gostaríamos que nos tratassem: inocente até prova em contrário. O Estado de direito radica precisamente nesta antiquíssima e universalista lei de oiro.

14 thoughts on “Até prova em contrário”

  1. O “sentido de Estado e a responsabilidade cívica” poderão ter tido peso na benevolência com que o sem-vergonha de Boliqueime foi tratado aquando da inventona das escutas, mas foi um erro tremendo, pois o ressabiado deu de tal maneira o flanco que bastava um sopro de criança para o deitar borda fora e talvez não estivéssemos onde estamos agora. Nos EUA teria sido motivo mais do que suficiente para lhe dar um piparote, mas, por cá, lembro-me de discussões bizantinas sobre as questões formais que poderiam ou não justificar o despedimento do coiso com justa causa, quando o foco devia antes ter sido colocado, simultaneamente, nos aspectos político e moral. Tivesse isso sido feito, em vez da benevolência suicida, e o clima chegaria a um ponto tal que o homenzinho acabava, ele próprio, por fugir com o rabo entre as pernas, de tal maneira se metia pelos olhos dentro que o comportamento dele na inventona das escutas era vergonhoso e indigno.

    Alegaria provavelmente motivos mentirosos para salvar a face (coisa para que não lhe falta jeito), como de saúde, por exemplo, mas acabaria por dar o pira, como diz o boy da CGD, e tínhamo-nos livrado dele de uma vez por todas. Quem o inimigo poupa, às mãos lhe morre, e não perceber que o vaidoso vingativo era realmente um inimigo, ou mesmo o inimigo principal, tratando-o em conformidade e aproveitando a tremenda argolada que ele então cometeu, foi o maior erro não só de Sócrates mas de toda a esquerda. Considerar-se, aliás, a si próprio como principal inimigo de tudo quanto cheirava minimamente a esquerda, portando-se implacavelmente (mesmo que de forma cobardemente dissimulada) como tal, foi coisa que ele, pelo contrário, nunca esqueceu, foi agenda que nunca deixou de cumprir, foi bússola que sempre o orientou.

    Quanto ao benefício da dúvida que deve ser dado à nova aquisição da equipa, Valupi, não tenho nada contra, mas tenho também praticamente nada de esperanças. Custa-me a crer que a nova jogadora fosse escolhida se existisse o mínimo perigo de começar a marcar golos na baliza da equipa que a escolheu. A jagunçada do pote, nestas coisas, costuma ser implacável, não dá ponto sem nó.

  2. cheira-me que vamos ter a reabertura do freeporcos, arquivamento do bpn e submarinos e na tecnoforma não se mexe. a cavacada assalta o poder e o seguro preocupado com o número de deputados.

  3. A triologia Maioria/Governo/Presidente tem uma nova expansão!

    Os lucros dessa triologia estavam aquém das expectativas pelo que se lançaram para um novo projecto: A QUADRATURA DO CÍRCULO DO PODER – Maioria/Governo/Presidente/Procurador
    As “Edições Laranja” prometem agora arrasar toda e qualquer possível concorrência

  4. Antes o “pentagrama” do poder:

    Uma maioria/ um governo/ um presidente / um procurador / uma comunicação social

  5. Eu acredito nas mulheres.Espero que esta Magistrada, dê um claro exemplo de isenção,para bem da justiça e para aliviar o” cesto de laranjas” que motivou a sua escolha.

  6. “• É filha do conselheiro José Marques Vidal, que serviu Cavaco na Polícia Judiciária e que não esconde a sua antipatia pelo regime democrático: “Há uma classe que eu abomino. É a classe dos políticos”; e
    • É irmã de João Marques Vidal, o procurador de Aveiro que pôs o país a rir quando disse ter avistado um crime de atentado contra o Estado de direito.”

    Até prova em contrário estamos na presença de um facho de saias .. Isto até prova em contrário claro!

  7. Declarações do ilustre progenitor da nova Procuradora-Geral:
    “a história do Freeport foi muito mal investigada, e o caso dos lixos da Cova da Beira foi muito mal investigado…”

    Lá diz o povo: Quem sai aos seus não degenera!

  8. Muito bem sintetizado.

    Em minha opinião, vai ser durante o exercício desta procuradora que a pedra de ângulo do monumento político-mediático — o infame processo Casa Pia — vai começar a ceder. Será interessante seguir as suas acções e/ou omissões.

  9. Val, podem escolher-se os amigos, a família não!
    Para já ficarei na expectativa do discurso da senhora e da sua próxima movimentação.
    Que o nome não é bom presságio ou que a família peca por ter da justiça uma visão justicialista, para já ainda não me chega para apontar o dedo, aliás nem tu o fazes, limitas-te a constatar as evidências.
    Faço votos para que ainda não seja desta vez que o laranjal obtenha o pleno, mas que isto começa a estar um bocado abanado não me restam dúvidas.

  10. nuno da câmara municipal, não acredites nas mulheres só por serem mulheres, acredita nas pessoas que mostrem competência. Embora não pareça, esse tipo de depoimento é equivalente a dizer que as mulheres são todas incompetentes, na política, por exemplo, só por serem mulheres.
    Olha a Assunção da Assembleia ou a Isabel da Assembleia…o género não faz a qualidade. A incompetência, a corrupção e a insensibilidade podem vir de ambos os géneros. Diferenciar – santificar, superiorizar – um deles, desculpa, é sexismo do piorio.

  11. Perdão, Luís Grave Rodrigues, não é um “pentagrama” mas sim um “sextagrama”:

    “Uma maioria / um governo/ um presidente / um procurador / uma comunicação social / uma oposição”.

    Aliás, mais do que “sextagrama”, a coisa começa a assumir laivos de “sextaquilo” ou mesmo “sextatonelada”, tal o jackpot que a máfia do pote tem nas mãos.

    Quanto ao processo da coisa da pia, era bom, como diz o Gungunhana, que ele começasse a ceder, mas tenho pouca fé nisso, tal o peso das máfias coligadas a quem interessa manter o logro. A coisa da pia foi o grande ensaio geral em que os vários subsectores da cambada mafiosa afinaram estratégias, tácticas, métodos, cumplicidades e canais de comunicação que lhes permitiriam agarrar de vez e manter no bolso o poder que viam como cada vez de mais difícil acesso pela via eleitoral normal. A treta da pia é a base da pirâmide, a trave mestra, a pedra da roseta. Ao contrário da original, porém, duvido que esta chegue algum dia a ser decifrada, pois de cada vez que alguém o começa a fazer sucede uma de duas coisas: ou o incauto é soterrado sob uma avalanche de calúnias que desacreditam o que tem para dizer ou a máfia mediática desencadeia um tsunami de manobras de diversão que secundarizam durante uns dias o potencial “subversivo” dos factos que comunica. Passado o tsunami, a coisa tornou-se inofensiva. Pode estar ali, à vista de toda a gente, mas já ninguém liga.

  12. PROGNÓSTICOS atempados (durante o jogo) do Prof. Osiris:

    — A nova procuradora vai insistir no cumprimento da ordem do Supremo que determina a destruição das escutas ilegais, de que se afirma existirem cópias ainda mais ilegais. [E, é claro, de que se sabe nada conterem de comprometedor, única hipótese que pode explicar não terem ainda vindo a público].

    — Seguir-se-ão, em simultâneo, dois coros de manifestações, ambos provenientes do sector político PSD-CDS, um do tipo «ah que maravilhosa isenção! oh que ideal supra-partidarismo! sim, porque o que lá vai, lá vai, como diz e muito bem Pacheco Pereira», e outro do tipo «parece impossível! foi para agradar ao PS que ela reforçou a sabotagem do Supremo que visava impedir o julgamento dos culpados!».

    — Em Aveiro, o irmão da procuradora Marques Vidal, o procurador Marques Vidal, levará a cabo um auto-da-fé das escutas ilegais, ilegalmente sequestradas, protestando a sua obediência à lei mesmo quando ela possa significar que tenebrosos crimes escapem sem castigo. Seu pai, o juiz, caçador e romancista laureado Marques Vidal, entre a escrita de mais um capítulo do seu novo romance e uma caçada aos periquitos, concederá uma entrevista ao pivot Medina Carreira, no seu novo programa «Pelos Olhos Dentro», em que afirmará enfaticamente: «foi assim que eu eduquei os meus filhos!».

    — Progressivamente, através do Correio da Manha de Lisboa, do Pasquim das Sarjetas de Olindas de Baixo, no Brasil, e de alguns colunistas da grande imprensa portuguesa especializados em socratologia, importantes trechos provenientes das cópias das escutas virão finalmente a público sem possibilidade de verificação, revelando o projectado rapto de bebés de accionistas da TVI encomendado a Vara, bem como do extravio da mala repleta de ouro, jóias e dinheiro roubado para subornar o rei de Espanha, e outras surpresas similares.

    — Pacheco Pereira declarará, um tanto espantado, que não tinha reparado nesses pormenores. Só tinha reparado que Sócrates tinha dito a Vara, às tantas, que tudo o que se pudesse fazer para facilitar a venda da TVI a quem a quisesse era bem vindo e que a Moura Guedes era uma badalhoca, «o que, convenhamos, já nao é pouco!». E acrescentará, contrariado: «como já dizia Porfírio de Tiro, o discípulo de Plotino, no séc. III depois de Cristo: é nisto que dá a destruição de provas…».

  13. Gungunhana, esqueceste a escuta em que o Sócrates conspira com o Kadhafi, o Saddam Hussein, o Bachir Al-Assad e o Ahmadinejad o envio ao coiso de Boliqueime (como falsa e traiçoeira oferta de paz para ele engolir num piquenique que fez no quintal da Casa da Coelha) um lanchinho de farófias condimentadas com uma mistura de estricnina, botox e gás sarin liquefeito. Tal lanchinho, afortunadamente para Sua Excelência, foi interceptado pela Guedes (depois de aceder a uma das 354 cópias exclusivas da escuta), que mui patrioticamente lhe chamou um figo. O preço que pagou está à vista da Pátria agradecida, que não esquecerá o sacrifício que permite ao povo embasbacado continuar a apreciar diariamente o magnífico e intocado perfil apolíneo da criatura entrincheirada em Belém.

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