Neste vídeo, a partir do minuto 4.30, Defensor de Moura alega que, aquando da sua declaração na noite eleitoral, foi impedido pelos jornalistas de explicitar o que pretendia dizer com aquilo de não felicitar Cavaco pela sua reeleição. E o que pretendia ter dito, afinal, não era o que acabou por dizer mas exactamente o seu contrário, pois, naturalmente e tal, é das normas democráticas felicitar o vencedor, e terá sido só por intempestiva falta de tempo, e calma, que não o conseguiu fazer, devendo-se culpar os jornalistas pelo insucesso da comunicação, prontos e esqueçam lá isso. E neste vídeo, a partir do minuto 1.20, vemos a famigerada declaração, onde com toda a calma – e tempo, que o exigiu aos jornalistas – diz, num tom de voz audível e aprazível, não felicitar Cavaco, tendo ainda o cuidado de explicar porquê com algum detalhe.
Estamos perante uma desilusão, tecnicamente falando, pois fora criada uma ilusão de frontalidade e coerência, agora desmentida pelo próprio. Entretanto, o João Pedro da Costa abriu uma fértil discussão quanto ao juízo moral a fazer do antigo Defensor de Moura, efémero mas bravo desbocado, a qual me deixou a pensar em algo que nunca antes tinha ocupado o meu bestunto: a fascinante problemática das felicitações aos adversários políticos. E o cerne da questão está aqui: que se está a fazer ao felicitar alguém? Independentemente das inúmeras respostas que obteríamos num inquérito, tantas quantos os participantes, o seu ponto em comum teria de ser algo como isto: felicitar é reconhecer a bondade de um dado evento passado e de um dado evento futuro, ambos representados na pessoa que se felicita. Ou seja, ao felicitarmos estamos a declarar que nos submetemos à liberdade de outrem, no que à esfera do estatuto alcançado concerne. Assim, quando um político derrotado envia felicitações ao político vencedor, o primeiro está, acto contínuo e sem carência de sinceridade ou estima, a reconhecer publicamente que a vitória do segundo é fundamentalmente boa. Boa para os dois.
Ninguém se preocupa com a epistemologia das felicitações, felizmente. Mas o faux pas do Defensor apela à análise: não poderá haver excepções à convenção das felicitações entre políticos, mantendo um integro respeito pela República e um elevado, elevadíssimo, espírito democrático? Para evitar a toxicidade do caso de Cavaco, vou recorrer à hipótese Chico Lopes para expor a tese. Imaginando que aparecia um candidato a um órgão de soberania unipessoal que anunciava fazê-lo em nome de um colectivo, como que a dizer que pelo paradoxo é que vamos, e ainda prometendo aplicar o programa do seu partido se fosse eleito, programa esse que considera contra-revolucionário o regime que se consolidou com o 25 de Novembro e tudo o que aconteceu daí em diante até aos dias de hoje, que havia para felicitar calhando ser eleito Presidente da República? Que significado teria o ritual e as expressões usadas para o preencher?
Eu não felicitaria o Chico Lopes, pese a simpatia ortodoxa e folclórica que suscita e o gosto que teria em poder dizer Este é o meu Presidente, o Chico! Sendo legítima a sua eleição, o que tal representava, porém, seria contrário a qualquer manifestação de apreço pelo sucedido. O que eu faria, se fosse seu concorrente, seria outra coisa: felicitava os votantes, todos os eleitores. Na sua liberdade, tinham escolhido aquele Presidente – e isso, sim, era motivo de saudações genuínas. Neste exemplo, vejo a possibilidade de separar o indivíduo do sistema sem ter de abdicar de qualquer valor democrático. E foi isso que pensei ter encontrado em Defensor de Moura, acreditando que ele estava a evitar a hipocrisia – no que seria vanguardista.
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O Porfírio debateu-se com o mesmo problema, e deu-lhe uma resposta também algo defensiva, mas convicta.
Andar às voltinhas pode ser a arma preferida dos sofistas da Cidade, mas não há nada que bata um pouco de coragem para se dizer que estávamos redondamente enganados quando abrimos as boquinhas extremamente excitáveis. Não se vergou Valupi então ao argumento límpido do João Pedro da Costa, mas perante a situação de “pratos limpos” anunciada por Defensor de Moura à Nação, largou logo a castanha quente, em slow motion. Ainda há mais dessas no fogareiro, sem dúvida.
E se ser “vanguardista” é não cumprimentar um Presidente pelos 52 por cento de 48 por cento dos votos de portugueses, temos de concluir que vivemos numa Cidade de políticos capados, porque encapados já eles andam há muito. Em último e único recurso, lá vai o Ronaldo ter de carregar com o estandarte, mesmo sem perceber nada de política ou barricadas.
Primo, quando dizes:
«Felicitar é reconhecer a bondade de um dado evento passado e de um dado evento futuro, ambos representados na pessoa que se felicita. Ou seja, ao felicitarmos estamos a declarar que nos submetemos à liberdade de outrem, no que à esfera do estatuto alcançado concerne.»
concordo com a primeira frase, mas não com a segunda. O problema está no teu “ou seja” (que, salvaguardando alguma desatenção minha, parece-me introduzir um sofisma). Eu diria:
«Felicitar é reconhecer a bondade de um dado evento passado e de um dado evento futuro, ambos representados na pessoa que se felicita. Ou seja, ao felicitarmos estamos a declarar que nos submetemos à liberdade da maioria que conferiu democraticamente o estatuto alcançado pela pessoa eleita.»
Isto é semiologia pura: Cavaco, na noite das eleições, representa o exercício da maioria do voto democrático. Não felicitá-lo não é reconhecer o mérito do eleito, mas não caucionar o mecanismo que conduziu à sua condução. Claro que tudo isto é protocolar, mas a democracia também é feita de protocolos. É por isso que, por exemplo, protocolarmente, o candidato vencedor é o último a falar na noite das eleições. Para que os candidatos derrotados tenham a (na minha opinião) importante oportunidade de felicitar o candidato vencedor e, desta forma, manifestarem de forma inequívoca que se congratulam com a mais importante vitória de qualquer eleição: o facto de essas terem acontecido de forma cívica e democrática. Pessoalmente, choca-me muito que um candidato não perceba isso. E é por isso que o Defensor Moura, na minha opinião, foi indigno do meu voto.
Kalimatanos, larga o vinho.
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Primo, há um ponto de acordo indiscutível, absoluto: a celebração da democracia que os actos eleitorais concretizam. Nesse sentido, a convenção das felicitações ao vencedor é bondosa, lógica e evidente. Todavia, interessa-me a possibilidade da excepção, precisamente para dar conta de casos excepcionais – e o de Cavaco é um deles, posto que se mostrou factualmente indigno de continuar no cargo.
Na tua argumentação, nada dizes do valor que atribuis à eventualidade de um derrotado endereçar as felicitações ao eleitorado, mas não ao vencedor. Para mim, essa hipótese atende ao teu pressuposto de respeito pela maioria e sua escolha. Isto é, as declarações de assunção da derrota poderiam ser igualmente afirmações de legitimidade dos resultados e consequente conquista do poder, sem que tal implicasse uma manifestação de apreço subsumido no indivíduo ou partido ganhador.
pois exactamente, um gesto singular tem grande valor de informação que pode constituir uma pedrada no charco das convenções, motivando por exemplo esta discussão, que não tira mérito a qualquer das posições, porque incorrem níveis de legitimidade diferentes, é o que me dá idéia?
E que bela ideia te deu, ф. Também me dá a mesma :)
(então, e de alquimias gastronómicas, nada?)
A descarada, inédita e muito lamentável atitude do Defensor é simplesmente indefensável. Fiquei aliviado por não ter votado nesse borgesso.
Cavaco é que merece ser felicitado, não os que votaram nele.
(grunf, estou mesmo a acabar um plano de trabalho, tem prazo impreterível este, tenho andado o mais das vezes nos últimos dias a ‘ervilhas com presunto’ da K., mas olha que ainda gosto tanto daquilo como quando era miúdo, parece que somos crianças para sempre, e por falar nisso hoje vou sarapetelar :)
Explica lá a tua opinião, Marco Alberto Alves.
Portanto, missão cumprida, pousas armas, abandonas a ração de combate e passas ao banquete. (estranho, agora lembrei-me de javalis, não sei porquê)
(olha, viste? isto quase a dar molho e nós no meio)
(ontem comi ovas de pescada com grelos e um monte de mayonaise, vais ver que ainda é perigoso se calhar. Eu acho piada a ver um debate de posições, são compreensíveis os dois lados, mas enfim eu não vejo tv deixa-me cá ficar de nariz no ar, além disso sou gamado em tertium datur a fazer de cominhosss. Quanto ao resto: agora vou esticar as patas no molhado, tenho as ferraduras a relinchar há horas, té logo :)
Cavaco Silva ganhou a confiança da maioria de nós, num jogo limpo. Algum mérito há-de ter, que mereça felicitações, nem que sejam protocolares (e em Política, o que parece, é…).
Já quanto a quem votou nele, na minha humilde opinião fizeram muito mal e, como tal, não estão de parabéns (mas tenho de aceitar democráticamente as opiniões diferentes da minha…)!
Ah, ok. Portanto, na tua opinião, Cavaco tem o mérito de ter congregado o voto daqueles que não sabem votar. E, por isso, merece felicitações.
E esta, hein?
E já alguém se lembrou de dar uma palavra de coragem e solidariedade a quem não votou nele?
(Cavaco e jogo limpo? Tudo junto? Wtf?)
Primo: não vejo nenhum contra-senso na conclusão que tiras (e bem) do comentário do Marco. É mesmo assim.
(Isto vai bonito)
Assim se vê a maldade do cavaquismo, instaura a sedição mesmo entre quem o abomina.
Só um ponto, o resto creio que já disse no outro post: evitar a hipocrisia não é, necessariamente, uma coisa boa. A hipocrisia, que tanta má fama tem, é um dos pilares fundamentais da sociedade, um mecanismo para evitar conflitos. Não deve é ser em excesso, mas o mesmo pode ser dito de outros pilares, como a liberdade, a verdade, e a ordem. E é difícil de discutir abertamente, porque é uma convenção artificial que só sobrevive se todos fingirem que não está lá – sendo que os problemas acontecem quando, e apenas quando, se torna impossível de ignorar. Por isso, por ser tão frágil, é que é necessário muito cuidado com tipos que acham que não necessitam de jogar o mesmo jogo que nós todos jogamos e resolvem mandar estas convenções às urtigas. A linha que nos separa da barbárie é ténue.
Continuo de acordo com o João Pedro da Costa.
Que cena mais marada. A coerência, essa palavra tão doente, assassinada, a sangue frio, em directo, pela hipocrisia, proferida por alguém que se diz Defensor.
Os meus parabéns Sr. Defensor, confirmou uma vez mais, que a moda, é ser coerentemente hipócrita. Sinto-me desiludido.
Para me redimir de algum comentário injusto da minha parte e para provar que também sou capaz de um elevadíssimo “espírito democrático, etc, etc, etc”, envio, com antecedência, os meus parabéns para os próximos 10 Presidentes da República que venham a ser democraticamente eleitos, nem que, na opinião que eu possa a vir a ter deles, se tratem de ladrões, gatunos, larápios, ou até ditadores. e para quem votou neles também, muitos, muitos mas mesmo muito parabéns.
Um aparte. Isto é muito bom.
Vega9000, estás a fazer o mesmo que o meu dilecto primo: evitar pensar a excepção. É que se a hipocrisia pode ser consensualmente aceite como inevitabilidade da vida social, já umas eleições onde o vencedor é indigno do cargo que vai ocupar merecem algum carácter de singularidade. E mesmo na vida social a hipocrisia é apenas uma farda incómoda, não o esplendor do corpo.
Há anos que travo um diálogo sobre reconhecer/não reconhecer com um amigo Professor com quem jogo ténis.
Sempre que faço uma boa bola ganhadora, ele grita logo do outro lado da rede, “boa bola”. Ao contrário eu jamais grito tal coisa. Um dia discutiamos mais forte sobre uma bola fora ou dentro e ele foi buscar lá de dentro de sí algumas questões velha gurdadas que considerava falta de consideração da minha parte.
Uma delas era essa de eu ser imcapaz de reconhecer uma única “bola boa” que ele fazia. Outro exemplo era quando a bola batia na rede e caía morta no outro lado, eu não pedia desculpa.
Ás tantas disse-lhe que todo o seu aparato de “boas maneiras” não passavam de tiques de Professor e que eu não era um miúdo aluno dele. E respondi que se a bola batia na rede e passava é porque levava merecimento para isso; se eu estava lutando dando tudo na tentativa de ganhar-lhe o ponto e ele reduzia o meu esforço a nada e ainda queria felicitação por tal, era-me impossível fazê-lo quando me sentia irritado comigo mesmo por ter sido passado e com vontade de partir a raquete na minha cabeça.
A Natureza não ensina “boas maneiras” ou “deferências” ou “reverências” ou “cortesias”, contudo respeita igualmente todos os seres que existem nela. A Sociedade hipócrita e cínica é que criou e “educa/ensina” as pessoas no uso desse fingimento idiota, porque o “outro” sabe que não passa de representar um tique social ao arrepio do pensamento. Prestar felicitações, naquele momento, é praticar uma falsidade consigo mesmo e transformar a sua rectidão numa mentira. Eu prefiro a rectidão, sintonia de pensar com agir, e por isso não me sinto menos digno ou deixo de respeitar ou considerar a dignidade do meu adversário, como acontece com a amizade que se mantem no nosso jogo entre ambos.
Por tal, achei a actitude de DdM inteiramente certa na noite das eleições. As explicações posteriores é que revelaram falta de coragem e seriedade.
outra coisa, mas é bom ler.
Primo: o problema não está no Cavaco, mas na própria democracia. Remisturando a tua afirmação (mil perdões) diria que:
«Assim se vê a maldade da democracia, instaura a sedição mesmo entre quem a abomina.»
“o vencedor é indigno do cargo que vai ocupar”. A questão é, quem é que decide isso? É alguém individualmente, como Defensor de Moura? Não lhe reconheço a superioridade moral para isso. É a nossa opinião? E essa deve prevalecer sobre a opinião contrária da maioria dos nosso concidadãos? Somos o quê, os “grandes educadores do povo”? Ou não será o cumprimento um reconhecimento que, nesse momento preciso, a maioria discorda de nós. O que não nos impede de continuar a lutar pelas nossas ideias. E acho que isto é válido mesmo para o caso de uma vitória do PCP (aliás, mais válido ainda, porque reconhecer “o colectivo” é entrar no jogo perverso deles. Não há colectivo nenhum.)
Agora não reconhecer ao outro a vitória justa, implica não o reconhecer. Qualifica-se como um acto de agressão, que não acho admissível em democracia.
De qualquer maneira, há uma consequência que já tiro: gostava de poder afirmar que Cavaco Silva foi o único que fez um discurso indigno. Graças a Defensor, não posso. Bom trabalho.
(Uma nota final: claro que se me perguntares “então e se ganhasse o José Pinto Coelho do PNR?” punhas-me a pensar nisto durante o fim-de-semana inteiro. Mas não vais fazer essa maldade…)
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João Pedro da Costa, “em quem a abomina”? Esse remix saiu-te ao lado…
Mestre Val, qual “sedição”, qual “e esta, hein?”, qual carapuça! Dar os Parabéns, sinceros, a Cavaco não significa retroceder, um mícron que seja, na abominação (política, claro) que se lhe tenha.
Tu dizes que isto que eu digo («Cavaco tem o mérito de ter congregado o voto daqueles que não sabem votar. E, por isso, merece felicitações») é contraditório, eu digo que não é e até posso provar-to (assim tu queiras ouvi-lo): “Cavaco tem o mérito de ter congregado o voto” é um facto. Um FACTO. É por ele ser assim, inequívoco, que merece felicitações, não necessáriamente protocolares, sequer.
Já o voto ser “daqueles que não sabem votar” não é um facto, mas simplesmente a minha modesta opinião. Compreendido? Daí que não haja contradição alguma! E não há maldade no Mundo que consiga roubar-me a minha clarividência…
“edie”, repara bem que o jogo aqui não é a feijões. Pretendes insinuar “wtf” exactamente o quê?!
Meu querido Vega9000: olha que não. Relê lá a frase.
Não insinuo, afirmo que não lembra ao, digamos, caraças, dizer que o Cavaco tem praticado jogo limpo. Vê lá se queres uma lista.
Vega9000, sim, decide o indivíduo quem considera digno ou indigno. É disso que estamos a falar desde o início, da opinião de alguém, chame-se Defensor ou Atacante, eu ou tu, este ou aquele. Estamos na esfera do juízo moral, pois, a qual em nada põe em causa a legitimidade política. E repara como os exemplos são mais que muitos a respeito desta divisão no seio mesmo da “praxis” dos agentes políticos. Cavaco, por exemplo, não se cansou de repetir que Sócrates não falava verdade (logo, que mentia e era mentiroso), que o Governo não era transparente nem previdente (logo, que não era de confiança nem competente), que os políticos no Parlamento não sabiam elaborar leis (logo, que não eram dignos do cargo que ocupavam).
Por vitória justa, deve-se entender a vitória de acordo com a Lei, sem ilicitude. Reconhecer que a vitória foi “justa” quanto à sua formalidade é diferente de admitir que com ela se tenha feito “justiça”.
Não se deve – mas cada um que decida por si – confundir a beira da estrada com a estrada da Beira.
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Marco Alberto Alves, mas o facto, qualquer facto enquanto facto, não merece felicitações. Tu não felicitas o Sol por ter aparecido à hora prevista. O que merece felicitações é o sujeito ao qual o facto se associa, com ou sem razão. E a felicitação, em si mesma, é sempre uma proposta de narrativa, onde esse sujeito é enaltecido e celebrado por existir antes e depois desse tal facto que serve de pretexto para o cerimonial.
Veja-se a nojenta declaração de Cavaco na noite das eleições, a tentar invalidar as acusações de conivência com o BPN/SLN – a que até hoje NÃO RESPONDEU – com a força dos seus 53%.
Lembrem-se as declarações mesquinhas do PM Cavaco quando Soares venceu Freitas em 1986.
Cavaco é imbatível em calúnias (caso das escutas) e em declarações merdosas de mau perdedor. Não merece ser felicitado por um adversário. O único voto de felicitações que eu lhe faria era este: break a leg! Mas em português.
Defensor foi aliás o primeiro candidato que corajosamente denunciou o desonesto Cavaco durante a campanha. Só se fosse hipócrita é que felicitaria Cavaco.
Primo: a felicitação não é a proposta de uma qualquer narrativa, mas a conclusão de uma específica: a do processo democrático que leva à vitória de uma candidato e cujo epílogo será a tomada de posse. Nem sequer o sujeito é narrativamente o mesmo: antes era um candidato, depois é o legítimo detentor de um cargo. E, como é óbvio, a atitude (lastimável) do Cavaco não atenua a perfídia do Defensor Moura.
Primo, a vitória de um candidato não se inscreve numa narrativa, antes numa lógica. As eleições geram vencedores, inevitavelmente. As narrativas adjectivam-nos, para o bem ou para o mal.
Seguindo o teu raciocínio, as felicitações teriam também de ser endereçadas aos derrotados, posto que igualmente a sua derrota aparecia como a conclusão do processo democrático – fazendo de quem perde um representante tão legítimo da axiologia em causa quanto quem ganha. No entanto, a convenção não leva a que os vencedores felicitem os derrotados por terem perdido, muito menos leva os derrotados a felicitarem os derrotados. Isso mostra como nas felicitações não está em causa a salvaguarda dos princípios democráticos ou o seu sistema de obtenção e institucionalização do poder. Trata-se antes de um ritual de celebração monarquizante, onde se simula uma concórdia plena, universal.
Lógica e narrativa. A definição aristotélica implica a inclusão da lógica, no sentido de a mesma ser uma trama. As narrativas adjectivais de que falas orbitam em torno da narrativa que aqui considero primordial: a do processo eleitoral. Os candidatos expõem as suas propostas, os media divulgam as mesmas aos cidadãos, alguns deles assumem-se como eleitores através de um acto, apuram-se os resultados, um candidato sai legitimado desse processo como vencedor, os derrotados reconhecem o facto e exprimem-no de forma inequívoca felicitando o vencedor.
O que nos separa, parece-me, é o facto de admitires que as narrativas que orbitam em torno da que acabei de escrever poderem influenciar o protocolo dos candidatos. Tudo bem. Mas essa tua reflexão, legítima, cria um ruído na hermenêutica dos cidadãos que (e não faltam nesta caixa de comentários exemplos disso) podem interpretar essa não felicitação como a manifestação de um dos candidatos derrotados sobre a legitimidade do vencedor. E eu, primo, acho que a democracia não é um dado adquirido, mas algo que precisa de ser celebrado de forma contínua e ininterrupta, sobretudo pelos seus protagonistas mais mediáticos. A concórdia plena, universal, desse modo, quando aplicada à narrativa central deste novelo, é apenas a caução necessária para manter vivo e saudável o processo democrático. Isto fará de mim, talvez, um valente conservador. Seja.
Pois eu sou muito mais prosaica e considero que felicitar o vencedor é uma forma cerimonial de submissão. O Desmond Morris explica:
… “Quando a situação se tornou insustentável, o vencido não tem outra solução além de fugir com quantas pernas tenha. Mas isso nem sempre é possível. Pode não encontrar caminho para fugir ou, se o animal pertence a um grupo social bem unido, ver-se obrigado a permanecer entre as hostes do vencedor. Em qualquer dos casos, o vencido tem de dar a entender ao animal mais forte que deixou de constituir uma ameaça e que não tenciona prosseguir a luta. (…). Isso se consegue através de certas manifestações características de submissão, que apaziguam o atacante, lhe reduzem rapidamente a agressividade e aceleram o encerramento da discórdia.”
– O Macaco Nu (só consegui uma versão “brasileira” online)
O interessante de verificar é que nestas eleições o vencedor, mesmo depois depois de ser declarado vencedor, continuou com uma atitude hostil e um dos vencidos recusou adoptar uma atitude de submissão. A segurança da tribo poderá não estar, ainda, em risco mas qualquer uma destas atitudes contribui muito pouco para a paz social.
Interessante isso que apontas, Teresa, de que o vencedor não teve comportamento de quem sente a victória e o derrotado de quem sente a derrota. Desse ponto de vista, o Cavaco foi um dos que colocou em causa a legitimidade do que alcançou. O que não é tranquilizador, porque pode arrastar a tentação de o provar a si mesmo a partir daqui. O que, sabemos, não era o fim previsto para esta narrativa.
edie, o Cavaco fez um discurso de candidato, de ainda contendedor, e não de presidente de todos, de “chefe” com resultados incontestáveis, de vencedor legítimo da contenda; ele não baixou as armas, não recebeu os derrotados mas antes os demarcou como se as hostilidades não tivessem acabado e precisasse de continuar a mostrar dentes e garras, por isso nesse sentido sim, ele pôs em questão a legitimidade da sua própria vitória não a dando por adquirida. O mesmo, e em sentido contrário, fez o defensor de moura apesar de, neste caso, ser menos desestabilizador socialmente porque a derrota retira-lhe poder e quanto muito ter-se-á transformado, por opção própria, num pária da democracia.
Teresa: a submissão existe logo a partir do momento em que um cidadão se torna candidato, isto é, submete-se às regras (jurídicas e protocolares) do processo democrático. Não se pode ser mais prosaico do que isto. Quanto ao Cavaco, estou totalmente de acordo contigo mas, novamente, a atitude deste não pode ser utilizada para atenuar a de Defensor Mouro (em quem, repito, maldito seja caralho, votei).
Primo, se trazes Aristóteles, então estás a reconhecer que a narrativa é uma ficção, não o resultado de um cálculo ou de um processo político. Claro que ela implicará a lógica, posto que é um discurso, mas esse território conceptual em nada se liga ao modelo de eleição e seu desfecho.
Também vejo como falacioso o nexo entre a ausência de felicitações ao vencedor e a consequente diminuição da sua legitimidade, mesmo que só percebida. Por isso te propus uma alternativa em que as felicitações seriam dirigidas para os eleitores, os principais protagonistas da democracia e seus processos concretizadores que originam vencedores e vencidos. Vou ter a arrogância de presumir que o teu silêncio acerca desta alternativa significa que não a desqualificas por completo.
Não estamos aqui na esfera do individual, aí todas as opiniões são legítimas – como a do Porfírio, para dar um exemplo, embora tenha discordado da posição dele – mas sim do institucional, do simbólico, daquilo que significa ser candidato e sujeitar-se às regras, formais e informais, da democracia, sobretudo naquele que é o seu acto mais importante.
E uma dessas regras, talvez a mais importante, é que todos os intervenientes aceitam o resultado, seja ele qual for, desde que as regras tenham sido cumpridas e o escrutínio seja limpo. Mas nota, sobretudo tu, edie, que não falo do “jogo sujo” ou “golpe baixo”, que considero legítimo numa campanha (mesmo que moralmente deplorável), mas sim de não haver batotas que falsifiquem o resultado. O felicitar o vencedor, mesmo que o consideremos indigno para o cargo, é parte integrante desse aceitar o resultado. Não o fazer, por estados de alma e opiniões pessoais, é estar a dizer ao mundo que a democracia de algum modo falhou, que o resultado não é legítimo. Isso não aceito. Até porque Cavaco Silva, com todos os seus defeitos, não é propriamente a encarnação do mal, não é ele que vai afundar a democracia (e se fosse, merecia ser afundada).
O melhor exemplo que me lembro disto é a eleição Bush vs. Gore em 2000. Aí, mesmo confrontado com uma quase certa falsificação de resultados, e com um adversário que era a encarnação do “indigno para o cargo”, Al Gore felicitou-o quando resolveu aceitar o resultado. Foi a indicação de que reconhecia a derrota, e que todos aqueles que o apoiam devem fazer o mesmo.
(Nota: estou aqui a repetir o que o João Pedro da Costa e a Teresa disseram, e que concordo completamente.)
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João Pedro da Costa, deve ser de mim, mas já li e reli e continuo a não perceber o sentido da frase. Quem é que abomina a democracia?
Ah, e ainda nessa eleição, um dos momentos mais importantes foi quando Gore, num primeiro momento e depois de já o ter felicitado, telefonou de propósito para retirar o cumprimento quando soube que na havia dúvidas na Florida e o escrutínio não estava completamente decidido. Melhor exemplo da importância deste gesto creio que não há.
As eleições americanas, e o significado das felicitações nesse contexto (as quais – como o episódio do telefonema tornam evidente – encerram o processo eleitoral), não são comparáveis às portuguesas, nem dão conta do carácter excepcional que está aqui em causa analisar e reflectir. Defensor de Moura não deixou qualquer alusão que pudesse ser lida como remetendo para uma qualquer ilegitimidade na vitória de Cavaco, esclareceu foi que não o podia felicitar por tal gesto ser mais moral do que político e, como tal, entrar em contradição com a sua opinião a respeito do candidato. Nesse sentido, a argumentação que faz das felicitações ao vencedor uma parte da normatividade do processo, qual obrigação sem a qual a democracia fica em risco, estão num mero plano de abstracção, distorcem o facto nessa narrativa que o diaboliza.
Discordo totalmente, vais desculpar. As eleições americanas são rigorosamente a mesma coisa que as portuguesas, e todas as outras nos países de democracia avançada. Sistemas políticos à parte, o processo é o mesmo, não estou a ver a diferença.
No restante, e correndo o risco de repetição, é evidente que a não felicitação ao vencedor por parte de um derrotado não põe, por si só, em risco a democracia. Mas constrói uma outra narrativa paralela, tão cara ao PCP por exemplo, de que “o povo enganou-se”. Abre um precedente, em nome da “verdade/sinceridade” de alguém que não soube perder. Agora imagina que outros candidatos, em próximas eleições, começam a seguir o exemplo, e tens o Passos Coelho, na noite das eleições, a dizer que não cumprimenta Sócrates porque não o considera digno de ser novamente primeiro-ministro (porque, subentenda-se, é um aldrabão). O cumprimentar o vencedor na noite das eleições é um acto politico, tal como todas as declarações e argumentos de campanha. Essa narrativa politica deve ser encerrada com esse acto, mesmo que no dia a seguir a luta continue, como deve. A moral pessoal do candidato deve-se submeter, momentaneamente, a algo maior do que ele mesmo.
É preciso ter alguns cuidados com as rachas nos nossos castelos de areia. Podem rapidamente alastrar, por muito inofensivas que pareçam.
As diferenças são variadas, mas não a respeito da essência democrática do processo, obviamente. Por exemplo, nos EUA vigora um poderoso bipartidarismo que molda a política, a sociedade e a cultura. Os candidatos destes dois partidos têm de conquistar as primárias, o que lhes acrescenta legitimidade democrática. E é entre estes dois que a disputa se resolve, os independentes não têm expressão. Um fenómeno Alegre-2006 ainda não se registou por lá, apesar das tentativas. Também se poderia apontar para esse fundo de “união nacional” que subjaz no imaginário colectivo norte-americano, e que tantas vezes apareceu politicamente concretizado em contextos de guerra e desafios de crescimento ou conquista de feitos gigantescos (ir à Lua, por exemplo). Daqui resulta um especial enfoque no candidato derrotado, o eterno rival. Enquanto ele não felicitar o vencedor, o processo eleitoral continua em aberto.
Ora, nada disto de passa em Portugal à escala em que o estamos aqui a discutir. Mesmo que o Defensor tivesse posto em causa os resultados – e não foi isso que ele fez, bem pelo contrário – a sua força seria minúscula perante os restantes candidatos. Ao não ter felicitado, apenas expressou uma posição individual, pessoal e subjectiva. Em nada afectou o sistema ou a legitimidade do vencedor. O Defensor tão-pouco emulou o PCP, pois foi claro ao circunscrever ao âmbito da “coerência” a racionalidade do seu gesto.
Creio que ao trazeres a hipótese de a mesma situação se repetir numas eleições legislativas, e com o líder do segundo partido mais votado, se ilumina a fonte do desacordo: precisas de introduzir uma situação com outro conteúdo para manteres a oposição à forma. De facto, se o líder da oposição não considerasse digno para o cargo de primeiro-ministro o líder do partido que tinha ganhado as eleições, isso levantaria uma grave crise política, a qual seria resolvida de acordo com a arquitectura parlamentar e decisões presidenciais. Mas uma coisinha é certa: quem quisesse ir por aí, era porque via vantagens em tal. Repara como nem neste aspecto pragmático, ou cínico, as situações são análogas, pois o Defensor voltou com a palavra atrás passados dois dias…
Esqueci-me de apontar para a primeira diferença: o regime presidencialista.
Não há desacordo, caro Val. O teu texto coloca uma pergunta concreta: não poderá haver excepções à convenção das felicitações entre políticos, mantendo um integro respeito pela República e um elevado, elevadíssimo, espírito democrático?. Logo, é natural que se extrapole do caso Defensor de Moura para colocar em questão em outros contextos. E a mim, analisando o que significam politicamente esses cumprimentos, parece-me que não, não pode haver excepções sem abrir os tais precedentes que degradam os valores da democracia, mesmo que marginalmente.
Já no que propões, felicitar os eleitores em vez do candidato escolhido por eles, parece-me que seria trocar uma hipocrisia por outra ainda maior. Felicitamos os eleitores por terem escolhido um tipo indigno para a função?
E sem querer desviar demasiado o assunto, ainda sobre os EUA, tiveste um fenómeno parecido com Alegre 2006 com Ross Perot em 1992, com uma percentagem semelhante a Alegre (18%), que teve como consequência a eleição de Clinton . Em em menor escala, tiveste também Ralph Nader do Green Party, que embora tendo uma votação marginal na Florida, com 100.000 votos, foi o suficiente para roubar a vitória a Gore e eleger Bush. É certo que a politica é dominada por dois grandes partidos, como é natural em círculos uninominais, mas há bastantes mais nuances do que muitos imaginam.
Sim, lembro-me do Perot, mas não foi um Alegre; isto é, não ficou à frente de um candidato apoiado por um dos dois partidos.
Não te limitaste a mudar o contexto, de presidenciais para as legislativas, também introduziste uma nota de conflito que não existe no caso que deu origem a esta discussão. Defensor de Moura não pediu que alguém se juntasse a ele no repúdio ao vencedor, nem pediu que a sua vitória fosse abolida por razões de força moral ou política. Ele ligou o seu discurso ao longo da campanha, onde apresentou argumentos radicais contra Cavaco, com o seu discurso de assunção da derrota. Isto é muito diferente de lançar um proto-impeachment.
O mais curioso, para mim, nesta conversa é a reacção negativa ao argumento das felicitações ao eleitorado em vez de ao elegido. É que aquilo que define a democracia é a soberania estar no eleitor. A democracia não é o sistema que gera infalivelmente os melhores governantes, ou sequer que garanta toparmos neles qualquer qualidade de universal agrado. A democracia é somente a realização do voto popular – e qualquer democrata prefere uma escolha que lhe desagrade a não poder escolher. Felicitar os eleitores, mesmo quando a sua escolha vai para um candidato que abominamos, eis a exaltação suprema da democracia!
Delírios. Felicita-se o vencedor porque venceu, factualmente, não se felicita como é óbvio o “facto” neutro de ter vencido, muito menos os eleitores que lhe deram a vitória por terem feito sómente o que nós próprios fizémos – colocar uma cruz com mais ou menos convicção, mais ou menos respeito pela sua consciência, etc. -, para mais se achamos que foram burros. Não se felicita a burrice, nem a ignorância, nem a inconsequência, ou a arrogância. Felicita-se o vencedor por ter resultado assim. Se o Povo o disse, isso tem uma profundidade que escapa ao instante e que um dia poderá explicar-se à luz da História, da Cultura, da Política, ou da Mentalidade, tudo coisas que, inelutávelmente, nos transcendem. Os rituais de sociedade e as prosaicas boas maneiras, não.
Val, felicitar os eleitores não, homem! Então uma tipa ganha um concurso de beleza e as vencidas vão felicitar … o júri?
Ou não se felicita ninguém (e aí está-se no domínio da birra), ou felicita-se quem ganhou, nem que seja por ter uma técnica de representação que convenceu melhor. Isto, independentemente do que pensamos de quem votou na criatura ou da própria criatura. É uma mensagem de aceitação das regras do jogo que convém transmitir.
Marco e Penélope, o problema original não diz respeito à falta de sentido na felicitação ao vencedor, muito menos a um vencedor qualquer numa qualquer competição, mas apenas à situação excepcional onde um derrotado numas eleições políticas decide que não vai dar os parabéns ao vencedor por imperativos de consciência.
OK, mas isso só se aceitará, se se aceitar, tendo em conta a votação mínima e irrelevante de Defensor Moura. Se os imperativos de consciência constrangessem a esse ponto um derrotado com 40% dos votos, a atitude tomada seria equivalente ao primarismo de Cavaco, para além de irresponsável. A Teresa explicou com inteligência e pertinência a psicologia do sentimento da vitória. Pode aplicar-se. Mas é uma explicação de luxo, atendendo ao personagem. Eu iria mais para uma reacção primária (tipo o que faria Ahmadinejad, ou Chávez, por exemplo, se um adversário lhes expusesse os podres e mesmo assim ganhassem).
Tens a resposta na tua própria argumentação, creio, quando afirmas A democracia não é o sistema que gera infalivelmente os melhores governantes, ou sequer que garanta toparmos neles qualquer qualidade de universal agrado.Aceitar a democracia significa aceitar que nem sempre são eleitos os melhores , os sem mácula, ou mesmo os dignos para o cargo. E essa aceitação presume que essa decisão cabe aos eleitores, eles é que decidem se o candidato é digno ou não. E por muito que nos custe, a maioria decidiu que Cavaco é digno para o cargo. Felicitar os eleitores significa, então, felicitar a sua escolha. E a partir do momento em que felicitas a escolha do eleitorado, não há grandes razões, tirando as mesquinhas, para não felicitar o próprio candidato, como símbolo dessa escolha.
Estás a fugir do cerne do problema, Penélope, o qual se prende com o primeiro comentário do João Pedro da Costa, o tal que abriu a fértil discussão, onde ele viu na ausência de felicitações uma manifestação antidemocrática; logo, inaceitável.
É muito diferente não se felicitar por razões de “coerência” pessoal, para citar o Defensor que entretanto desapareceu, de não felicitar por razões onde o juízo moral tivesse peso político a pedir uma consequente acção política – o que não foi o caso.
Vega9000, fico com a impressão de que finalmente aderiste à tese de que felicitar o eleitorado salvaguarda o essencial da aceitação dos resultados, evitando o ritual da felicitação ao vencedor para quem assim o preferir. A ser assim, o resto do problema não passaria de uma questão de gosto, já não de validação do processo.
Acho que foi o oposto. O que quero dizer é precisamente que se não felicitas o vencedor, não estás a felicitar a escolha, e se não felicitas a escolha, não estás a felicitar o eleitorado. E se não felicitas o eleitorado, o que é que diz de ti e do teu respeito pela democracia? Acho que foi isto que o João Pedro da Costa quis dizer.
Sim, mas isso é impor o pressuposto de que a felicitação do vencedor é mandatória, cerimónia sem a qual o processo eleitoral não ficaria concluído na sua regularidade. Ora, tal posição equivale a algo que transcende a democracia e é já do foro das monarquias. Essa convenção consistiria numa declaração de submissão ao vencedor – o que equivale, aqui sim, a uma subalternização dos resultados que expressam a vontade do eleitorado. É por isso que invertes os termos da legitimação, colocando o vencedor como único, ou principal, representante de todo o sistema – quando ele é apenas um dos seus resultados.
Mas o que é a Republica democrática senão uma monarquia temporária? O que é um Presidente da Republica senão um rei temporário? O que é que quer dizer “representa todos os Portugueses”? Não prescindiste de líderes/vencedores, simplesmente é o povo que os escolhe por um período de tempo limitado. Mas não deixam de ser vencedores, com tudo o que isso implica, incluindo a submissão dos restantes, nem que seja por um dia. Afinal, o sistema não existe no vácuo, ele é desenhado para obter um resultado. Esse resultado, no final, é o que importa. Senão, o próprio processo não faz sentido.
Vega, fazer chantagem com os eleitores, dizendo que se não votarmos nele, Cavaco, é a desgraça, porque sobem as taxas de juro, bla, e a ecomomia via pr’ó galheiro, mais bla…não é uma batota que pode falsificar os resultados? A batota pode não se resumir ao momento da contagem dos votos. Penso que foi precisamente a batota que o Defensor se recusou a congratular. O fim, só porque foi atingido, não justifica os meios utilizados.
(edie, qual a diferença entre a chantagem com a desgraça e a promessa da felicidade?)
(teresa, tá na cara: a chantagem com a desgraça intimida e cria um ambiente de merda enquanto a promessa da felicidade – eu, por exemplo – constitui uma mensagem de esperança em dias melhores.)
Ora, Val, não estou nada a fugir ao cerne da questão. Tu é que resolveste concentrar-te na última parte do meu comentário. Defensor Moura podia fazer o que fez, a que ele chamou coerência, (e que depois desfez), porque teve uma votação inexpressiva. Aproveitou assim o ensejo para usar da coerência. Mas tu próprio me dás razão. Se tivesse obtido uma votação de tal modo expressiva que fosse o segundo mais votado, ditaria o sentido de responsabilidade democrática que cumprimentasse o vencedor, ou então.
A alternativa, como bem sugeres, seria impugnar as eleições por forte suspeita de trafulhices do candidato na sua vida pessoal! Seria possível? E porquê só depois de conhecidos os resultados?
Também havia a inventona das escutas, mas não ouvi Defensor na altura do escândalo a exigir o aprofundamento da investigação, nem a destituição do presidente, nem a revisão da Constituição para prever procedimentos nestes casos.
Sabes o que seria mesmo coerência? Seria Defensor e todos os outros retirarem-se da campanha até ser esclarecido tudo o que veio a público – acções da SLN, registo predial, permuta. Ou Cavaco falava ou ficaria a fazer campanha sozinho. Se optasse pela segunda hipótese, ganharia por falta de adversários, o que até dá vontade de rir, porque … o homem ganhou mesmo por essa razão!
Shark, está na cara mas a nossa cara já está tão na…. lama… que as ameaças assustam pouco, pior é impossível, ao contrário das promessas que nos dão, ou poderão dar, o alento que precisamos. Não tenho a certeza do que será mais manipulador. (e tu sabes que eu não suporto o gajo*, não sabes?)
*aquele de que não digo nem o nome mas que parece que devia felicitar
edie, “eu ou o abismo” é capaz de ser o argumento de campanha mais velho de todos. Deve ter sido inventado ainda no tempo das cavernas. Antes da roda.
Toda a gente o usa, no mundo inteiro, Sócrates incluído.
O Vega9000 anda a gamar-me os comentários, caramba. E confesso, primo, gostaria muito de perceber a tua argumentação, mas há algo que me escapa quando fazes esse salto da democracia para a monarquia. Provavelmente problema meu.
Durante a campanha Defensor Moura acusa Cavaco, o-presidente-de-todos-os-portugueses-menos-de-Saramago-porque-estava-de-férias, de “… falta de isenção e de lealdade institucional, … favorecimento de amigos e tolerância …com negócios considerados ilícitos pela Justiça…incompatível com o exercício da mais alta magistratura da nação.”
Refere-se ainda às relações de amizade de Cavaco, o-presidente-de-todos-os-portugueses-menos-os-que-não-apoiam-a-sua-candidatura, como uma ” teia … que floresceu e enriqueceu desde o cavaquismo e está tão bem representada na Comissão de Honra da sua recandidatura, está bem longe de contribuir para o prestígio da Presidência da República. Antes pelo contrário!” E ainda, referindo-se à corrupção e ao clientelismo, diz que Cavaco Silva, o-presidente-de-todos-os-portugueses-menos-os-que-participaram-na-campanha-suja-contra-ele, de “tolerar e conviver muito bem com essas graves doenças da nossa democracia!”
“…não sou hipócrita…não felicito quem ganhou porque sou coerente …”
É também uma questão de princípios,com o valor que lhe quisermos dar, e cavaco, o conspirador, mereceu-o tanto como os parabéns pela vitória.
Teresa,
uma é destrutiva, (des)mobiliza pelo medo. A outra energiza, mobiliza pela criatividade. Ambas devem ser usadas com cautela, para não se voltarem contra o feiticeiro.
Vega, utilizei essa manha como exmplo do estilo carunchoso e fascisóide do Cavaco, Não vais pedir-me que te faça uma lista exaustiva das merdas que o homem fez/é e que o tornam ÚNICO na política portuguesa? Não hoje, pois não?
edie, ir por essa via era quase abrir um tópico novo, até bastante interessante. Mas mantenho a minha posição: em campanha, praticamente tudo é, e deve, ser permitido, incluindo chantagens e golpes baixos (dentro, claro, da legalidade). Como dizem os americanos, politics is a blood sport. Pensa assim: se um tipo que concorre a uma eleição não consegue sequer rebater um golpe baixo do seu adversário, merece ser eleito? As eleições são também testes aos candidatos, para ver de que massa são feitos.
Cavaco Silva, se queres a minha modesta opinião, até nem fez nada de especial, ou pelo menos fez de maneira tão desastrada e transparente que a única coisa que salientou foi a absoluta inépcia dos seus oponentes. Caramba, eram bifes do lombo praticamente todos os dias, atirados a um bando de vegetarianos. Como diz, e bem, a Penélope, ganhou por falta de comparência. A maior injustiça é essa.
O facto de eu ter dado como exemplo um episódio de campanha para ilustrar o jogo sujo do Cavaco pode ter induzido a ideia de que a justiça ou injustiça da victória se resumiam à táctica eleitoral. Mas não, por jogo baixo no Cavaco, entendo o estilo dele desde sempre, desde os primórdios no PSD/1º ministro. É a pessoa que é baixa, percebes?
E desse ponto de vista, de facto não fez nada de especial senão ser ele próprio.
Ora bem. O que diz mais dos adversários do que dele. Cavaco é Cavaco, e a vitória dele foi justa e legítima. Até porque representa uma certa faceta de Portugal, que pelos vistos ainda não conseguimos ultrapassar e que novamente se impôs. Culpa nossa, não dele. Isso é que eu tenho pena.
Qualquer lider pode representar o que de pior existe num povo, isso não torna a sua vitória mais justa do que a do que representa o melhor desse povo.
Dizes que a vitória dele foi justa e legítima porque representa uma certa faceta de Portugal. O Hitler também representava uma certa faceta do povo alemão, até da humanidade, isso não traz nenhum carácter de justiça à sua vitória. Mas que foi legítima, foi. Foi eleito por maioria.
edie, vais desculpar, mas invoco a lei de Godwin.
Essa já está ultrapassada, Vega. Agora é: quem invoca a lei de Godwin sempre que se dá o exemplo nazi, é porque ficou sem argumentos. É a lei de edie :)
;)
Vega9000, é o povo que escolhe os vencedores, e são os vencedores que escolhem ser escolhidos ou rejeitados. Os vencedores, para o serem, têm primeiro que se sujeitar ao soberano.
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Penélope, concordo com o que dizes, mas transportaste a questão para o território da psicologia, onde alvitramos acerca do que faria fulano ou beltrano em dada situação.
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Primo, o salto para a monarquia não é político, apenas o dou para ilustrar o simbolismo da convenção de felicitar o vencedor.
Ah, estás a dizer que o povo é que é o verdadeiro soberano? É bonito, mas não me parece totalmente verdade. O povo delega o poder em determinada pessoa. Se queres felicitar o povo, felicitas através do seu representante, não? É para isso também que ele existe e foi eleito.
Não sou eu que o digo, mas a Constituição da República Portuguesa:
Artigo 1.º
(República Portuguesa)
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Artigo 2.º
(Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
Artigo 3.º
(Soberania e legalidade)
1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.
2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
“que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.”
A constituição prevê um presidente que representa o povo, não?
Com certeza, mas um deputado também representa o povo, assim como qualquer figura com um cargo público de eleição. Mesmo a Justiça está obrigada à submissão ao soberano em ordem a poder representá-lo de acordo com a Constituição.
A representação do povo, ou do Estado, não se esgota na figura do Presidente da República. Tal configuração obrigaria a recuar às figuras dos monarcas absolutos para ter algum paralelo.
Lembro-te, entretanto, que não estamos a discutir o estatuto constitucional dos agentes políticos que exerçam a soberania, mas tão-só o significado de não se felicitar um candidato que acaba de vencer umas eleições.
Tu é que foste buscar a constituição. Mas vamos, não há nenhuma lei que obrigue o que se apresente felicitações ao vencedor de umas eleições (quaisquer umas), é de significados, ou simbolismos, que falamos. E voltamos ao tema da hipocrisia, esse óleo da sociedade. Eu reafirmo aquilo que já disse: o Defensor de Moura podia ou não cumprimentar Cavaco pela vitória. Fazê-lo seria uma hipocrisia, visto que claramente não o achava digno para o cargo. Não o fazer, por outro lado, significava que achava essa opinião pessoal mais relevante que o respeito pela escolha do soberano, escolha essa que diz aceitar, como democrata. E respeitar a escolha significa o quê? Que a opinião do povo tem mais relevância que a nossa individual. Parece-me uma hipocrisia maior.
Fui buscar a Constituição porque afirmaste não ser o Povo o soberano. Quanto ao teu raciocínio acerca do Defensor, considero-o legítimo. De resto, o próprio meteu os pés pelas mãos, pelo que se tornou apenas numa anedota.
A questão que me apareceu como interessante na sequência dos protestos contra a sua atitude na noite eleitoral, e que deu origem a esta muito proveitosa conversa, era já abstracta: seria possível aceitar que a recusa de felicitar o vencedor fosse, simultaneamente, uma manifestação de respeito pela democracia? Para mim, se tal implicar o envio de felicitações para o eleitorado, sim.
Percebo onde queres chegar, acontece que enviar felicitações para o eleitorado sem felicitar a escolha é felicitar o processo mas não o resultado desse processo. Ora tendo em vista que o resultado é uma consequência desse processo, parece-me um contra-senso. E como disseste, e bem, aceitar a democracia é aceitar que nem sempre os resultados serão os melhores. E celebrá-la à mesma, como imperfeita que é.
Muito bem. Nesse caso, viva a imperfeição!
“Eu reafirmo aquilo que já disse: o Defensor Moura podia ou não cumprimentar Cavaco pela vitória. Fazê-lo seria uma hipocrisia, visto que claramente não o achava digno para o cargo. Não o fazer, por outro lado, significava que achava essa opinião pessoal mais relevante que o respeito pela escolha do soberano, escolha essa que diz aceitar, como democrata. E respeitar a escolha significa o quê? Que a opinião do povo tem mais relevância que a nossa individual. Parece-me uma hipocrisia maior.”
(Vega9000)
Recusar a hipocrisia não é recusar a democracia. Tá tudo dito.