Bolero da web 2.0

Está, neste preciso momento, a nevar no Porto e, em Agosto do ano passado, quando resolvi concorrer a um curso de doutoramento leccionado pela Universidade do Porto e pela Universidade de Aveiro sobre Informação e Comunicação em Plataformas Digitais, estava longe de pensar que o referido curso ia constituir para mim uma genuína epifania. Concorri um bocado às cegas: li o programa, pareceu-me interessante e condizente com esta minha paixão pelo HTML com pulso, mas nem isso me preparou para o rigor, o entusiasmo e a dedicação do corpo docente, nem para o elevadíssimo nível de qualidade humana e intelectual dos meus colegas, que têm mostrado uma capacidade invulgar para me aturar. Está, neste preciso momento, a nevar no Porto e fica desta forma recomendado aos interessados e mais destemidos um programa doutoral exigente mas profundamente enriquecedor.

Na unidade curricular de Media Participativos (leccionado por um trio maravilha de docentes da Universidade de Aveiro: Jorge Trinidade Ferraz de Abreu, Pedro Almeida e Luís Pedro), foi-nos pedido a elaboração de uma série de conteúdos multimédia que constituessem um manifesto para um Portugal Participativo em diversas áreas da práxis humana, tendo-me calhado em sorteio (há gajos com sorte) o tema do Entretenimento e os colegas Patrícia Oliveira e Moises Rockembach como colegas do grupo. Para além de uma página wiki muito pouco ortodoxa, lembrámo-nos a um determinado momento de criar um tema musical original que abordasse a temática do entretenimento participativo no contexto nacional.

Continua a nevar no Porto e a primeira dúvida que nos surgiu prendeu-se com o género musical. Chegámos à conclusão que, devido ao tema, deveríamos optar por um género português. Um fado chegou a ser equacionado, mas depois lembramo-nos de um género bem mais pertinente e genuinamente luso: a música pimba. A partir daí, como é óbvio, tínhamos que misturar a temática do amor e do amante enganado (um dos temas predilectos da música pimba) com o da web 2.0 e delineámos assim o conceito-chave do tema: uma voz à Marante (a personal favourite of mine) que utiliza o entretenimento participativo da web 2.0 para ultrapassar o seu desgosto amoroso. A música pimba possuía ainda outra dimensão particularmente revelante para o nosso trabalho: permitia que o nosso narrador fosse um estereótipo do Português sem acesso à net, isto é, a caricatura de um ex-info-excluído que expressasse em vernáculo todo o seu entusiasmo pela sua descoberta do entretenimento participativo da web 2.0.

Depois desse brainstorming colectivo, arranquei para a escrita da letra do tema e devo vos dizer que nunca me diverti tanto na minha vida. Já suspeitava que tinha uma manifesta costela popularucha (considero, por exemplo, o Marco Paulo o maior cantor português de sempre), e este exercício criativo veio provar que, provavelmente, tenho que ir morar para o interior do país passear vacas e ovelhas. A grande dificuldade residiu em encaixar dentro de um esquema rimático tradicional, o vocabulário técnico oriundo da web 2.0 com a verve ressabiada do narrador. Na prática, este aparente obstáculo acabaria por revelar-se fundamental para o panache do resultado final. Este narrador, de facto, tem os blues, mas camufla-os com a sua ânsia de atirar à cara do objecto dos seus desejos todo o frenesim da sua nova condição de internauta participativo.

Finalmente, faltava a música e não pára de nevar no Porto. Aí, entra a um dos mais talentosos compositores portugueses: o Jesualdo Salta-Pocinhas (pseudónimo requerido pelo próprio, vai ser giro tentarem adivinhar quem é o verdadeiro autor). Depois de explicado conceito por mail, o Jesualdo não apenas gostou da ideia como, em menos de 48 horas, compôs, tocou, cantou, gravou e enviou-nos por email o nosso BOLERO DA WEB 2.0. O resultado final é, e descontem aí a minha espectacular parcialidade, lindo: a sua imitação perfeita do timbre e da melopeia do Marante, a música que faz uma fusão hilariante da música pimba com o bolero e o techno, os samples tecnológicos (ruídos do teclado, os cliques do rato e o final surpreendente) e sobretudo a interpretação superior da letra, acertando sempre (repito: sempre) na ênfase correcta que dá a cada um dos versos onde por vezes encontro ecos dos Marretas, dos Irmãos Catita e da neve que continua a cair no Porto.

De facto, a cultura participativa dos media digitais é maravilhosa. Criam-se coisas, fazem-se amigos e, claro, um gajo diverte-se imenso. Oxalá gostem. Entretanto, a neve é incessante na cidade do Porto e já entrou em fase de pré-produção o vídeo que irá ilustrar esta virose. O mesmo será realizado pelo grande André Tentugal, um dos mais talentosos realizadores de vídeos musicais do nosso país, que também aceitou de bom grado participar nesta brincadeira. Todos os bonecos deviam ser de neve.

BOLERO DA WEB 2.0
(letras de João Pedro da Costa / música e interpretação de Jesualdo Salta-Pocinhas)

BOLERO DA WEB 2.0

Tenho andado muito entretido
Com o entretenimento participativo
Já nem sequer penso em ti.
O HTML é como uma prece
Que recebo por RSS
Repleto de hiperligações sem fim.

Já não sou mais um destroço
Ligo-me à net sempre que posso
Seja em casa ou na rua.
Se antes recebia informação
Agora partilho em alta resolução
Fotos bem giras de ti nua.

Ser de ti especialista
É a última coisa que quero
Prefiro ser um surfista
Da web dois ponto zero.

Do fundo do desemprego, babe
Para a crista do Google Wave
Onde se desfruta melhor o porno.
Who needs a fucking wife?
Os avatares do Second Life
Não provocam dor de corno.

O meu esconderijo predilecto
São os jogos de código aberto
Andava tão farto dos teus tiques.
É que agora das séries da televisão
Para os jogos em interacção
Basta um ou dos cliques.

All aboard!

Se para estar contigo
Tenho de ser um Calimero
Prefiro mil vezes o perigo
Da web dois ponto zero.

Sigo a galope ou a trote
Do browser para o desktop
Esta cena é mesmo aditiva.
Os dias já me correm menos mal
Sou rei e senhor do digital
E tu uma analógica passiva.

É tudo à vontade do freguês
Nos torrents cheios de MP3
E de séries por estrear.
Imagina só que até descobri
Como fazer filmes sem ti
Que ninguém está para te aturar.

Tão fartinho dos teus ritos
Meu carinho por ti deu o berro
Agora só curto os meus favoritos
Da web dois ponto zero.

De som, vídeo e imagem
É feita esta paisagem
Sem palato, tacto ou odor.
Do meu perfil do facebook
Aos emails do meu outlook
Estás banida, meu amor.

E não me apareças por aí
E dança ao som deste bolero
Que eu compus para ti
Na web dois ponto zero.

16 thoughts on “Bolero da web 2.0”

  1. João Pedro da Costa:
    No momento em que escrevo este comentário também estou a ver a neve (foleca) como dizemos aqui na minha terra (Freamunde).
    O que hei-de dizer do seu post! Sou um grão de areia perante si intelectualmente, mas aceite os meus cumprimentos. Simplesmente fabuloso. É desta partilha que a blogosfera precisa.
    Cumprimentos

  2. Caro Manuel Pacheco: retribuo os seus cumprimentos com um abraço. Veja lá a dimensão da minha suposta intelectualidade que até desconhecia essa palavra linda que é foleca (já investiguei e há uma variante folheca). Como vê, o seu comentário já é um exemplo desse espírito de partilha de que fala.

  3. estou como o Manuel Pacheco. simplesmente fabuloso. aqui onde estou também está a nevar. como não dá para sair, jogamos uma partida de xadrez ao som do movimento 4 da 7ª sinfonia de Beethoven.
    regards

  4. Preconceitos do carago, a descoberta da Universidade fora de Lisboa, o narrador pimba estereótipo do Português sem acesso à net, o interior das vacas e ovelhas.
    O Costa recordou-me umas senhoras a quem convidei para assistir às corridas de automóveis no circuito citadino de Vila Real. Após longa hesitação aceitaram o convite mas com uma condição: pediam os quartos que ficassem mais afastados da loja dos animais.
    O Terreiro do Paço fica tão loooooonge!

  5. Ó Zeca, tu assim recordas-me a dupla de velhotes dos Marretas (sem o sentido de humor, claro). A Universidade, para mim, sempre foi no Porto, “estereótipo” e “caricatura” são palavras usadas no post e, imagina tu, fui criado no campo a tratar da horta e a pastar ovelhas. Ou seja, há aqui muito de mim neste narrador – longe de preconceitos, há o prazer saudável de um gajo se rir de se próprio.

    Gostava era que partilhasses mais pormenores dessa história das senhoras, de certeza que houve molho.

  6. Trouxeste um nevão de excelentes notícias e alarves risadas. Muito obrigado pela partilha, primo. E estive a ler com atenção e entusiasmo o vosso manifesto. Gostava de propor uma alteração: em vez do nu do JP, na CENA 1, dois ou três nus da Patrícia.

    Aqui fica uma primeira sugestão de um leitor interessado em discutir outros pontos da vossa feérica investigação.

  7. Defende-se razoavelmente, mas o preconceito continua a morar no seu post, no pimba, nas vacas, até no fado, esse lamento chulo alcandorado à dignidade de música nacional pelo cinema por Lisboa não ter mais nada para oferecer. Deixa lá, não se rale que também não me ralo.

    Essas senhoras de que falei trabalhavam no Tribunal de S. João Novo, aí no Porto, e tinham sido convidadas pelo meu pai. Como tardassem a responder, procurei saber se vinham ou se ficavam e foi então que me pediram para ficar num quarto longe da loja dos animais. Menti-lhes o melhor que soube, garantindo que os animais passavam a noite no campo nos dias de corridas automóveis, e tal, e lá vieram às corridas e ao cabrito assado. Quando cá chegaram desculparam-se com as imagens repetidamente transmitidas pela televisão sempre que pretende ilustrar um artigo sobre Trás-os-Montes: a casa de dois pisos com a loja do gado no rés-do-chão, a quelha estreita, a velha de lenço a tocar o burrinho ou as cabras, etc. Era apenas isso que elas conheciam de Trás-os-Montes em geral e pensavam aplicar-se a Vila Real.

    Não houve molho, excepto o que acompanhava as batatinhas. Diacho de preconceito!

  8. J.Pacheco,na minha terra dizemos” nebeca”.O marante foi bem escolhido.Tem melhor voz do que o pimba tony carreira.

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