Cantar as velhas

O cantar as “velhas” é uma preciosidade da cultura popular terceirense. Trata-se de um género de cantigas ao desafio, tradição herdada talvez das trovadorescas cantigas de escárnio e mal-dizer. A brejeirice está sempre presente em cada “velha”, composta por dois tercetos e uma quadra. O seu nome deve-se ao facto de ser normalmente referida uma velha, tendo como contraponto um velho, que com frequência são “avó” e “avô” dos contendores. Actualmente o par mais famoso de cantadores de “velhas” é formado pelo genial João Ângelo, um fenómeno de talento e popularidade, e pelo engenheiro José Eliseu, que se dedicou à prática para ajudar a manter viva esta tradição. Uma “velha” é tanto mais bem conseguida quanto mais disfarçado estiver o significado da brejeirice.
Por desfastio, às vezes escrevo alguma, para me divertir ou divertir os amigos. Aqui deixo três exemplos.

Lição de gramática

Tua avó foi à lição:
“Fá-lo é verbo, falo, não
– É substantivo comum.

Mas, se levar o pronome,
Falo fica, em vez de nome,
Verbo como qualquer um.”

Tua avó bem aprendeu
E a teu avô ensinou:
“No quinhão que Deus te deu
Só o verbo te calhou.”

O orçamento

Teu avô muito suava
De tanto que trabalhava
Para ganhar o sustento.

Tua avó fazia a conta
E não encontrava a ponta
Do novelo do orçamento.

Ela quase enlouquecia
C’o resultado que dava,
Pois quanto mais lhe mexia
Mais o orçamento minguava.

O voto

Uma velhinha sem jeito
Fala mal de tudo a eito,
E não queria votar.

Para fugir ao dever
A velha foi-se esconder
Numa furna à beira-mar.

Tanto o velho procurou
Que deu com ela na furna,
Mas a velha até gostou
De pôr o voto na urna.

26 thoughts on “Cantar as velhas”

  1. Excelente!

    As velhas devem ter a ver com o riso da tradição pagã, responsável pelo despertar da alegria e da fertilidade da natureza. Foi uma velha que destapou as saias e fez rir a deusa Deméter, entregue à tristeza (invernal) por lhe terem levado a filha (a Proserpina da Primavera). Esta tradição vai continuar nas festas da Primavera, por cá chamadas da serração da velha. A questão do calendário é um tanto aleatória já que a esconjura da morte também se dava nas festas das saturnálias (as nossas janeiras).

  2. como endireitei a edição do texto, tomo a liberdade de te conceder essa graça, zazie… ;)

    as velhas são muito engraçadas, daniel, com esse lado pedagógico. mostra mais!

  3. Zazie, quem manda aqui é a Susana. Ela disse, está dito. (Claro que me sinto muito satisfeito por quereres guardar estas “velhas”.) E obrigado pela lição de História, mas creio que isso não invalida uma certa ligação à tradição portuguesa de mal-dizer.
    Susana, tenho mais uma ou outra, e algumas perdi-as. Mas não quer dizer que não volte aqui com o mesmo tema. É que eu tenho este fraquinho: delicio-me com uma cantoria de velhas, sobretudo feita por aquele par de amigos que referi. É de rir até às lágrimas. E posso mesmo pedir ao José Eliseu que mande uma ou outra das suas e do João Ângelo.

  4. Daniel,
    Festas na Lomba da Maia há três anos. Um frio de rachar. Os ‘passos pesados’ a tocarem o seu rock pesado no coreto e a chuva a começar. Povo que nunca mais acabava sentado à roda, na estrada, na praça. Velhinhos e velhinhas que eu não estava a ver a abanar o capacete com o conjunto de hard rock. E toca de chover. E ninguém arredava pé. Lá percebi, por fim. Era o Eliseu que fechava a noite mais o seu parceiro mais novo. Só vendo, de facto. Tudo, não só as rimas, mas a postura, os tiques, toda a figura era de antologia. Uma hora e meia seguidas, sem parar, que os cigarrinhos acendiam-se e fumavam-se no palco ao longo da cantoria, já se sabe.

    Tenho pena que tenhas escolhido este clip em especial que diz pouco, para quem não conhece, do tipicismo das ‘velhas’. Tem Jorge Ferreira a mais, guitarra eléctrica, farfisa e um baixista à marco paulo. Percebo a intenção, e aplaudo-a, mas as ‘velhas’ têm outro enquadramento, não achas? Guitarra portuguesa na maioria mas também a viola da terra, instrumento único de sonoridade especial e não imitável, essencial para dar ambiente a um grande momento de entretenimento. Mas as rimas destas velhas que escolheste são de primeira água, certas no registo certo. Juro que quando for a S.Miguel pego no Alfredo Gago da Câmara por um braço e mais a guitarra e vamos cantá-las bem à tua porta.

    Às cinco da manhã, laião.

  5. RVN
    Burro, burro, burro. Burro eu, não tu. Troquei os endereços. Aquele do Jorge Ferreira não vale a ponta de um manso. Devias ter percebido, pela descrição que fiz, que me enganara. Aqui vai o endereço para um pedaço de desgarrada e apenas três velhas, infelizmente.
    http://soforroterceira.blogspot.com/2007/04/blog-post_09.html
    E agora, a pedido da Susana, uma “velha”, que dedico à visita do Fernando à Suíça. Este pormenor é importante para perceber a (pouca) piada final.

    A velha estava doente,
    Tinha o corpo todo quente,
    E sofria de canseira.

    Um doutor não sei de quê
    Deu-lhe uma Aspirina B.
    Enterrou-se quinta-feira.

    A desgraça foi falada,
    Vai ser caso de justiça,
    E o Venâncio não faz nada,
    Só coça é uma suíça.

  6. E vai mais esta, ainda porque a Susana pediu, que escrevi a propósito do encerramento de alguns consulados portugueses nos Estados Unidos.

    O arquivo do consulado
    Está agora fechado
    Pra teu avô e família.
    E por vê-lo desgostoso,
    Tua avó, contra o nervoso,
    Vai-lhe dando chá de tília.
    Teu avô vai-se deitar
    Meio morto meio vivo,
    Com tua avó a clamar
    Pla chave do seu arquivo.

  7. é, também gosto muito de velhotas. O ano passado apareceu-me uma senhora, que eu até tenho um pouco de vergonha a dizer, mas era linda mesmo, com oitenta e tal anos, luminosa de todo, é a D. Emília

    zazie, olha isto agora pegou de tesouros:

    http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=4&id_news=313986

    mas eu gosto é dessas histórias que contas

    vou voltar à caça ao meu canhão de Diu, porque tem lá uma cruzinha em cima da coroa das armas que eu não sei se é do tempo do Infelix Rex ou do tio

  8. Que maravilha, Daniel. Apesar de confessar que prefiro as velhas nesse registo escrito do que em cima de um palco (pelo menos em comparação com os vídeos que encontrei no You Tube). Mas deve ser trauma geracional.

  9. João Pedro
    Realmente o que está no You Tube é de muito fraca qualidade. Uma cantoria daquelas vale pelo todo e não por excertos tão curtos. Claro que, quando me dá para escrever alguma “velha”, tento fazer algo que resista ao “isolamento”.
    Ó Ramón, olha lá que coisa! A Edith Piaf! E, já agora, o Frank Sinatra, o Nat King Cole, o Louis Arsmstrong, o Jacques Brel…

  10. Daniel: está visto que tens de arranjar alguém que grave essas cantigas. A sério. Se puder ajudar em alguma coisa, diz-me.

  11. João Pedro, obrigado pela disponibilidade, mas já disse que escrevo estas coisas só para me divertir e divertir os amigos.
    Zazie, registei o endereço para ler quando tiver mais tempo disponível. Obrigado.

  12. A propósito de VELHAS, também gosto de me entreter em fazer alguma nos tempos livres. Lembrei-me agora desta:

    Eu namorei uma velha,
    Carrapatos numa orelha,
    Nas juntas só tinha dores;
    Tinha aterosclerose,
    Na anca tinha uma artrose
    Mas perdia-se de amores.
    E se algum velho encontrava
    Que lhe desse animação,
    A velhinha até pulava
    Sem tocar com os pés no chão.

  13. E já agora mais uma:

    Um velho, do vinho amante,
    Dentro dum tonel gigante
    Caiu e lá ficou,
    A mulher, preocupada,
    Por todo o lado bradava
    E nunca o velho encontrou.
    Depois do líquido acabado
    Do muito que então bebeu
    Só mais de um mês passado
    É que o velho apareceu.

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