O século da criatividade

Há uma frase, atribuída a Malraux, que teve longa fama:

Le XXIème siècle sera religieux ou ne sera pas.

Depois de algumas declarações do putativo autor negando a paternidade, e de acordo com o léxico preferido pelo mercado New Age, a versão que se continuou a repetir trocou o religioso pelo espiritual. Dessa forma deixavam-se todos os públicos satisfeitos, ficando uma fórmula politicamente correcta e adequada ao consumismo milenarista em centro comercial. Ora, o pseudo-Malraux não tinha qualquer razão, como se sabe. As religiões no século XXI estão acabadas, as mais activas são agora negócios de exploração ou mantas de retalhos identitários. E a espiritualidade que não seja marketing, é segredo ou mística. Tal como não teria razão se lhe tivesse dado para uma solução à prova de antipatia, onde os termos de referência fossem o artístico ou o poético. Entretanto, igualmente falharam os que venderam versões de um século XXI científico ou tecnológico. Resta um grande referente que todos os dias, a todo o momento, está a renovar a Civilização. É uma reacção em cadeia que não mais parará: a criatividade.

Aproxima-se o fim da primeira década do novo século/milénio e a única certeza é a de vivermos em ilhas de sentido rodeados por marés vivas de caos. Esta compreensão liga-nos a toda a Humanidade, desde os primórdios. A um tempo pavor e glória, a consciência da fragilidade da nossa condição individual transmuta-se em destino e liberdade quando contemplamos a caminhada da Raça. Eterno combate entre o absurdo e a esperança, a solidão e o amor. Mais uma razão para leres aquela que me aparece como a mais realista e concreta descrição da natureza criativa que algum vez encontrei. E depois de ler, e de abanares a cabeça em concordância mais de 30 vezes, tanto faz se te vais despedir amanhã porque decidiste ser biólogo marinho, ou se vais colocar um vídeo no YouTube com o vizinho a tropeçar num balde e a partir-se todo, ou se descobres como ganhar dinheiro a trabalhar em casa, ou se vais até ao blogue cumprir a praxe e constatar que continuas sem comentários, ou se consegues ouvir pela primeira vez o que as árvores, as nuvens e o vento têm para te dizer. Tanto faz. Porque agora já não podes negar que te mandaram existir no século da criatividade.

29 thoughts on “O século da criatividade”

  1. Valupi,

    Não te assustes, que isto não é para começar uma discussão. Apenas para dizer que nunca tinha ouvido a forma deturpada da frase e que sempre li “le XXIème siècle sera religieux ou ne sera pas”.

    Aproveito para dizer que, independentemente da ideia que se possa ter sobre religiões, sempre achei esta frase de Malraux o expoente maximo da pura imbecilidade e uma perfeita ilustração do que o espirtito francês pode produzir de pior. Frase perfeitamente oca, que podia talvez, quando foi proferida (o século XXI era então uma realidade longinqua) esconder o vazio total de sentido debaixo do tom profético e enigmatico, mas que hoje aparece na sua verdadeira dimensão de lamentavel vaticinação de café. Os Bernard Henri Levys e quejandos não nascem por geração espontânea…

    Simples testemunho sobre a frase de Malraux, que não pretende diminuir o interesse das questões que colocas a seguir. Questões que não me parecem mais proprias do século XXI do que do século XX ou do século XXII, mas enfim, isto é outra historia.

    Eu, pessoalmente, para além de ter crenças religiosas (como ateu que sou, ja que um ateu é um crente : uma pessoa que acredita… que Deus não existe), tenho também convicções teologicas. Por exemplo, acredito piamente que existe uma filosofia para além da filosofia de café…

    E falta acresentar que isto vem da parte de uma pessoa profundamente francofila, por educação, por cultura, por opção de vida…

  2. Pois… essa é parecida com o Aragon «La femme et lávenir de de l´homme» que era cantado pelo Jean Ferrat. Bastou uma semanita em Paris e arredores para perceber que estão cada vez piores no seu chauvinismo intragável. Só um pequeno exemplo: uma avó dizia que o neto a tratava por «matérre» e eu pensava que era «ma terre» mas não – era ela que não sabe que «mater» é uma palavra latina que se pronuncia «máter» e não matérre.

  3. dando um jeitinho, olha um anticriativo do passado,

    “Eu desconfio. Não há fundos grátis. É difícil conceber um sistema em que ganham todos. A natureza do negócio não é assim. Então ganha o banco, ganha o proprietário, ganha o fundo e ganham os subscritores do fundo?”, questionou.

    bagão felix

    este ainda não percebeu que o Sol e o oxigénio que respira são grátis

  4. joão, mudei a frase para a variante canónica em tua homenagem. Quanto à autoria da mesma, não é de Malraux. E ele diz dela o mesmo que tu. No entanto, veio a admitir um nexo entre a sua pessoa e uma versão onde se trocaria a religião pela espiritualidade.

    Em relação ao século XXI como sendo aquele que seria o mais criativo na História, concordo contigo. Aliás, vou mais longe: onde há seres humanos, há criatividade. Porém, nunca a criatividade fez parte do quotidiano social, actual panorama. Até ao advento da Internet, a criatividade foi sempre um exclusivo de classe e profissão. Agora, é um modo de vida. Estamos perante uma democratização do génio.
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    claudia, também eu. Embora a análise se limite pela fórmula dos binómios, das polaridades, é também daí que vem a sua força. De facto, o que está em causa é relativo à complexidade, pelo que o criativo tem de ser também complexo – e dialéctico!
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    jcfrancisco, bem lembrado, “máter”.
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    Z, grátis, quase… porque se paga com a entropia. Ou, então, o seu consumo gera esse prejuízo.

  5. ahah, estava a ver quem viria com um contrargumento substantivo. Parabéns, Valupi. Mas não te esqueças que a entropia só é realmente preocupante num sistema fechado, aí sim vigora a segunda lei, num sistema aberto há que fazer a gestão da entropia e recanalizá-la como energia com outra valência, imagino, haja imaginação para tal, eu por exemplo nesta coisa dos fluxos de dinheiro agora ando a ver isto como uma fonte_árvore, se não alimentas as raízes faz cavitação por ali acima e entope tudo; por isso é que as árvores entram em quiescência ou mesmo dormência nesta altura do ano, senão fica muito enervante com as variações térmicas. Além da dimensão humana do problema.

  6. Valupi,

    Muito bom. Fartei-me de ouvir (e de ler) a frase e não sabia disso. É caso para dizer que não é por não ser do Malraux que deixa de ser uma frase idiota…

    Não sei se concordo com “E a espiritualidade que não seja marketing, é segredo ou mística” mas vou ler melhor o texto sobre a natureza criativa, que referes.

  7. estive a pensar: a entropia é uma grandeza termodinâmica, depois foi generalizada para a informação mas em termos sintácticos, como medida de confusão, relativa a um espaço de acontecimentos; a informação é o que esclarece a confusão, na acepção mais frequente; quando se procura introduzir um elemento semântico nas fórmulas já nos deslocamos numa variedade de equilíbrios.

    Porventura a actividade mental de pensar e comunicar é neguentropia,

  8. “E caso para dizer” etc,

    Ja que estamos no latinorio (JC Francisco, concordo com o que diz mas v. sabe como se pronunciava o latim ?) cabe acresentar que muitas das respostas estão de facto escondidas nas palvaras (que são criações ? talvez seja isso mesmo que diz o prologo de João).

    Senão vejamos : “Marketing” contem “mercado”. Experimenta trocar por palavras mais antigas do mesmo campo semântico : “comércio”, “trato”…

    Um abraço

  9. “Acrescentar” etc.

    Emenda : o que esta mesmo escondido nas palvras, são as gralhas.

    Fim da minha hora de almoço.

  10. “…um ateu é um crente : uma pessoa que acredita… que Deus não existe”

    João, para mim, um ateu é uma pessoa que não acredita em Deus, ponto final. Alguém que não crê naquela entidade puramente espiritual, omnipotente e omnisciente em que outros à sua volta crêem. Alguém que pensa assim: o ónus da prova da existência de Deus é de quem crê, pois quem não crê nessa coisa chamada Deus, não tem que provar nada.

    Essa de que o ateu é um crente porque “acredita que Deus não existe” já é uma forma sofística. Quase como estoutra: “Um descrente é alguém que crê na descrença.” Ou esta: “Uma pessoa sã é aquela que sofre de uma doença chamada saúde.”

    É o sofisma do agnóstico, que pretende que não é crente nem descrente em Deus, porque não sabe o que é Deus. Uma vez perguntei ao “bispo” duma Igreja Agnóstica Triunfante Universal (!) se, sim ou não, ele acreditava em Deus. Respondeu-me que não. Aí eu disse-lhe que se ele não acreditava, então era um descrente. Ele insistiu que não, que não era crente nem descrente. Só um parvo daqueles é que era capaz de fundar uma igreja com aquele nome…

    Já admito que um ateísta possa significar algo de diferente de um simples ateu. Um ateísta será um ateu militante que tenta convencer os outros (os crentes e os indecisos) de que não há deus nem deuses. Os ateístas militantes, por vezes, parecem-se com os crentes que fazem proselitismo, não pela substância daquilo em que crêem ou não crêem, mas por certas características comportamentais. Ao fundarem movimentos, organizações, jornais e sites ateístas, adquirem por vezes os mesmos hábitos de intolerância e sectarismo que caracterizam as religiões, igrejas e seitas que combatem.

  11. Coffee break :

    Interessante o teu ponto de vista Nik, porque é mais do que uma querela terminologica. Eu disse o que disse precisamente porque entendo que é errado deixar aos deistas o monopolio da crença. Para mim um ateu é uma pessoa que, por inumeras razões que não são todas logicas (e nomeadamente por razões que são éticas), embora não saiba se Deus existe ou não existe, crê que ele não existe. Esta crença pode enraizar-se na convicção de que é mais provavel que ele não exista (racionalismo), mas pode também ter outras explicações como a tradição familiar (o leite da ama de Descartes), as consequências éticas, a intuição, etc. As explicações possiveis são tantas como as que servem para explicar a convicção (ou crença) que Deus existe.

    Mas etimologicamente, tens razão, o prefixo é privativo e a palavra “ateu” significa sem Deus, o que é satisfeito pela hipotese daquele que, simplesmente, não crê.

    Então eu serei mais do que um ateu. Talvez não um ateista, porque não procuro convencer os outros. Mas mais do que um ateu no sentido em que acredito que existem mais razões (logicas e outras) para acreditar que Deus não existe, do que razões para acreditar no contrario.

    E agora que escrevi isto e que releio o que escreveste, vejo onde esta a diferença : porque é que partes do principio que a crença esta necessariamente ligada ao proselitismo ? Todos temos crenças, que explicam muito acerca dos nossos comportamentos e o facto de termos crenças não implica que as procuremos impôr aos outros…

    Não vês nada entre ateu e ateista ?

  12. João,

    para mim, que sou ateu, é ocioso tentar provar que Deus existe ou não existe. Deus é um conceito que se situa voluntariamente fora do domínio da razão – e que a razão não pode atingir, segundo os próprios crentes afirmam. Ou se acredita ou não se acredita. Ou se tem fé ou não se tem. Tentar provar (racionalmente) seja o que for parece-me geralmente ocioso e, por vezes, pode até ser muito ofensivo para quem tem fé. Há ateus tolerantes e ateus intolerantes, além de outras categorias.

    Eu posso é estudar, se me apetecer, e tentar compreender a génese, a função e o papel social das crenças religiosas. Mas o historiador, o antropólogo e o simples curioso têm toda a vantagem em deixar as suas próprias posições e crenças à porta quando querem estudar e compreender qualquer crença ou fenómeno religioso.

    Gosto de ler o Hitchens e o Dawkins a pregarem o seu ateísmo, a defenderem a sua dama, mas são os antropólogos, os historiadores e até os teólogos quem mais me ensina sobre a religião. Compreendo, não critico e até posso gostar que Dawkins diga que Deus é uma quimera ou delírio, e que Hitchens provoque os fiéis berrando que “Deus não é grande”. Mas esse orgulho de não ser crente (necessário, talvez, para compensar o anátema social da descrença) não me ensina quase nada sobre a crença e o fenómeno religioso.

    Quando falamos em crença e descrença estamos a usar termos muito conotados pelo seu uso histórico, por isso a questão terminológica nunca é impertinente. Para começar, chamar “descrente” a quem não acredita em Deus já é um bocadinho tendencioso, embora não se possa dizer que seja falso. Os crentes em Deus usam o termo descrente para rotular os que não pensam como eles. De facto, é um abuso.

    Imagina que me tinha sido revelada uma divindade chamada Trolaró e que eu acreditava que ela ia pôr fim ao mundo daqui a dez anos. Quem não acreditasse no Trolaró e na minha profecia apocalíptica, passava a ser um “descrente.” Por exemplo, todos os católicos passavam a ser “descrentes” ou até “infiéis”. Iam rir-se de mim, não iam? Porque eu, sozinho, sustentava que todos os restantes eram descrentes. A palavra descrente tem uma conotação social pejorativa: descrente é aquele que não acredita no que a maioria acredita. E vice-versa: crente é aquele que acredita no que a maioria acredita. E a maioria é suposta ser detentora da verdade.

    Eu falei dos crentes que fazem proselitismo, não disse que todos fazem. Mas a atitude evangelizadora é compreensível em alguém que acredita muito em qualquer coisa e quer fazer chegar essa suposta verdade aos outros ou acha que os outros estão a ser muito prejudicados por não conhecerem a verdade.

  13. Nik,

    O que dizes atinge precisamente o centro da minha preocupação.

    Parece-me não deixas nenhum espaço para “crenças” que não sejam “religiosas” (logo indignas de serem debatidas racionalmente), nem para razões que não se reconduzam a conteudos “provados” ou “provaveis” com rigor. Mas não é assim : nem os religiosos pretendem ser capazes de “provar” racionalmente a existência de Deus (muitos são agnosticos, talvez mesmo a maioria), nem os ateus (ou ateistas) excluem que se possa debater, racionalmente, de assuntos que não se reconduzem a conteudos “provados” ou “provaveis”.

    A crença não se opõe à ciência. Pelo contrario, a ciência moderna constituiu-se como uma forma de racionalizar as nossas crenças acerca da realidade. Isto é verdade nas ciências ditas “humanas”, mas também nas ciências pretensamente “exactas” (vê por exemplo o que diz Russel, para me apoiar numa autoridade que julgo ser consensual). Ora isto implica que aceitemos que temos crenças e que não ha rigorosamente nada de “irracional” nesse facto.

    Por isso, não so discordo, como acho perigoso o que dizes sobre as conotações historicas da palvra “crença”. As pessoas criam muito antes de aparecerem os monotéismos. As religiões, sejam elas quais forem, não têm direito de propriedade sobre a palavra, nem sobre o conceito de “crença”.

    O perigo que vejo na tua posição é abandonares tudo o que extravasa do dominio do “provado” e do “provavel”, como se fosse uma realidade estranha à razão e apenas acessivel à “religião”. Ora abandonas assim coisas tão importantes como os nossos juizos de valor, como se se tratasse de matéria puramente subjectiva, aleatoria, imponderavel… Eis precisamente o que querem os que subscrevem à concepção (datada e contestavel) da religião como o que impera sobre o subjectivo e o intimo. Desta forma, contribuis para a maior vitoria dos “religiosos” (modernos) que poderão dizer : esses ateus, não têm convicções (nomeadamente morais)…

    Eu tenho crenças, tenho valores. E nem pretendo que essas crenças e valores assentam todos sobre matéria que considero “provada” ou “provavel” no sentido que apontas no teu comentario, nem considero por isso que essas crenças e valores participem, em mim, de uma dimensão inacessivel à razão. Digo mais : até tenho crenças acerca de Deus, porque não ? Acredito que Deus não existe…

    Eis a minha modesta opinião.

    Agora certeza absoluta (que é muito mais do que crença e até do que fé) tenho eu acerca do seguinte : esta-me a dar um gozo incrivel ter esta conversa à margem de um post do Valupi…

  14. João,

    atribuis-me várias ideias que não tenho. Quando chamo a atenção para o lastro ideológico dos termos descrença ou descrente, facto que pertence ao domínio do óbvio e do banal, embora te pareça ‘perigoso’, não estou a esquecer que há milhões de outras crenças e fés – religiosas, não religiosas e até bem racionais – além da crença em Deus. Esta pode, aliás, ter aspectos de grande elevação moral e, dum ponto de vista funcionalista, de perfeita racionalidade.

    Estás provavelmente a confundir o que eu descrevo com aquilo que eu penso. E embarcas numa série de suposições erróneas acerca do que eu penso noutras matérias. Cuidado contigo, pá.

    Esta conversa começou porque discordei da tua afirmação acerca dos ateus, segundo a qual eles seriam ‘crentes’ na ‘não existência de Deus’. Não entendeste ainda muito bem, parece-me, porque é que me oponho ao uso que fazes aí do conceito de ‘crença’. O motivo tem muito a ver com a clássica manigância dos apologetas religiosos quando falam contra os ateus, que consiste em dizer que os pretensos não crentes afinal são tão crentes como os outros, mas piores, porque têm crenças mais mesquinhas. NOTA BEM: esses apologetas não nos acusam a nós, ateus, de não acreditarmos em nada ou de não termos valores nem princípios morais; dizem, sim, que nós afinal somos tão ‘crentes’ quanto eles, mas que temos crenças piores e mais primitivas do que as deles e até do que as dos animistas, que acreditam no mundo dos espíritos. E assim somos colocados no fundo da tabela das ‘crenças’, abaixo dos fetichistas.

    Outros sofistas cristãos pretendem que a ‘crença’ dos ateus seria uma ‘crença negativa’, sendo uma ‘crença na inexistência’ de qualquer coisa.

    Diga-se aqui, em abono da verdade, que há supostos racionalistas muito mais básicos do que certos pensadores religiosos. Há ateus supersticiosos e cristãos que o não são.

    Mas a alegada ‘crença’ dos ateus em geral na chamada ‘inexistência de Deus’ não passa de um velho sofisma, de uma falácia de combate contra o ateísmo. Eu e boa parte dos ateus, estou certo, não precisamos de absolutamente nenhuma fé ou crença específica para não acreditarmos em Deus. Limitamo-nos a não comprar a crença em Deus dos que a têm e no-la querem impingir.

    Se me perguntarem porque não partilho a crença deles, a minha resposta pode ser esta: ‘Não preciso dela para nada.’ Ou esta: ‘Como religião, prefiriria o budismo, que não se opõe aos ateus.’ Ou outras.

    E independentemente disso, Deus existe ou não?
    Resposta fácil: “Na minha cabeça não existe, mas tenho a certeza de que existe na cabeça de quem acredita nele.”

    E fora das cabeças dos homens, existe Deus?
    Aí a resposta é impossível, porque toda a gente que poderia responder tem cabeça e responde com ela…

  15. Nik,

    Muito bem. Claro que quando digo “perigoso” é retórico. Não pretendo criticar aquilo que pensas. Apenas expôr melhor aquilo que eu penso, ver se existem diferenças significativas com aquilo que dizes e, se fôr o caso, compreender porquê.

    A nossa diferença é, no fundo, bastante simples : estamos preocupados com dois argumentos diferentes porque não lhes damos o mesmo peso. Tu temes o argumento dos deistas que consiste em observar que o ateismo assenta, também ele, numa crença, porque achas que permite abrir o debate em terreno que não é seguro : « se a posição dos ateus assenta numa crença, está no mesmo plano do que a dos crentes deistas, ou mesmo num plano inferior ». Em contrapartida, achas que o argumento que consiste em dizer que a nossa posição assenta numa crença é um sofisma manifesto, porque « não acreditar na existência de Deus » não é a mesma coisa do que « acreditar na não-existência de Deus ».

    Quanto a esta ultima proposição, ja te disse que me convenceste : não me parece possivel concluir da não-crença na existência de Deus à crença na sua não-existência. Também concordo que, se as palavras têm sentido, um “ateu” é apenas alguém que não crê em Deus. (nesse sentido eu sou mais do que ateu).

    Também concordo com o que dizes acerca do ateismo dogmático e prosélito. No fundo, trata-se de um gnosticismo ateista. Ora, se entendi bem a tua posição, tu és agnóstico como eu. Somos mais do que agnósticos, mas somos agnósticos.

    Este « mais » é que está em causa. Quando tu dizes « na minha cabeça Deus não existe », em que é que se baseia esta afirmação ? Se recusas a palavra « crença », admitirás pelo menos que se trata de uma convicção ?

    Eu admito que seja, pelo menos no meu caso. Tenho a convicção de que Deus não existe. É esta minha convicção a que chamo (talvez de maneira imprópria) « ateismo ». E não tenho medo de conceder que se trata de uma crença. Não tenho medo, porque não vejo nenhum risco que esta minha « crença » (ou « convicção ») possa ser considerada inferior à crença de um deista. Nesse sentido, não entendo a hieraquia que fazes entre crenças « primitivas » e outras. Para mim, as crenças estão todas no mesmo plano : o animismo, o fetichismo, o deismo, a crença que Deus não existe, etc. Se alguma coisa permite distingui-las de forma racional, esta coisa não tem a ver com as crenças consideradas em si-mesmas, mas antes com o que as pessoas fazem com elas. Nesse aspecto, penso que qualquer crença (ou convicção) pode « ter aspectos de grande elevação moral e, dum ponto de vista funcionalista, de perfeita racionalidade ».

    Isto implica também o seguinte : não considero que a minha « crença » ou « convicção » de ateu (ou de ateista) seja racionalmente superior à de um deista…

    Tu pareces duvidar que haja aqui uma convicção. Se entendi bem o que escreves, dizes que « na minha cabeça Deus não existe » não é propriamente uma afirmação, mas antes uma negação. Equivale a « na minha cabeça Deus não consta ». Não haverá portanto aqui nada que se assemelhe a uma « crença » e que possa ser posto no mesmo plano do que uma crença.

    Eu aí não te sigo. Acho que é uma convicção. Acho mesmo que é uma convicção destinada a responder a interrogações que participam do domínio « religioso » em termos latos. Dito noutros termos, eu não recuso as questões às quais os deistas procuram responder com a sua crença, recuso apenas as respostas que eles dão.

    Não acredito na existência de Deus, nem na existência do Deus cristão. Mas acredito que haja questões teológicas (por exemplo, há uma teologia em Aristóteles, ou pelo menos uma tentativa de pensar uma teologia).

    Tens perfeitamente razão quando apontas que a minha posição é mais do que a-téia, é a-teista. O que recuso é o termo de proselitismo.

    E já agora, para entenderes porque é que insisto em afirmar que esta minha posição é racionalista, eu diria que ela consite em recusar que exista uma separação nítida entre « crenças » ou « convicções » de um lado, e enunciados racionais do outro. Acho que esta distinção é fruto de concepções religiosas muito precisas (e historicamente datadas), que aliás não são necessariamente maioritárias entre os próprios deistas (por exemplo, eu tenho dúvidas que esta concepção seja maioritária entre os católicos).

    Resumindo : ao contrário de ti, entre os dois argumentos deistas expostos no teu comentário, eu temo mais o segundo do que o primeiro…

  16. Bem visto z,

    e então : penso (julgo) que a minha posição torna mais facil o dialogo com outros “crentes” (racionalistas), com o respeito mutuo que isto implica.

    E isso não me é completamente indiferente…

  17. eu por mim tudo bem, já simpatizava contigo, mas és mesmo teimoso rapaz. Estão bem um para o outro. Eu é diferente, vivo num espaço que reconheço transcendente onde coisas que aparecem cortadas, desconexas no imanente, se revelam ligadas por nexos profundos nesse espaço mais vasto. Chamo ao sopro desse espaço Deus, que interpreto também como o conjunto de todos os deuses, já Seneca o fazia em termos semelhantes. Mas cada um saberá de si e eu próprio ainda sou frequentemente surpreendido, entre o fluxo e a gravidade. Só é preciso não esquecer que a afirmação de que o mundo é apenas uma realidade física constitui uma afirmação propriamente metafísica.

    Mas olha lá que eu não quero discutir contigo, é conversar quando muito e aos saltos, porque agora tenho de ir tratar de papéis

  18. Z,

    Tens razão. Um pouco de estoicismo so pode aproveitar a quem vai tratar de papéis…

    Tens razão também no que dizes sobre a metafisica.

    E sobre a minha teimosia (mas quem é “o outro” ?).

  19. Tanto quis comentar este post que acabei por não o fazer. Às vezes é assim, a perfeição é a utopia dos tolos. E tanto adiei, tanto adiei que os dias foram trazendo novos assuntos e o post foi caindo no template aspirínico. Hoje tornei a ler aquela picardia deliciosa, generoso convite à reflexão sobre a mãe de todas as forças da alma, a criatividade. E confirmei o sabido: é das imperdíveis, esta conversa. Fazendo bengala da previsão de André Malraux que vaticinava um século XXI religioso, (vá lá, seja, espiritual), valupi caminha sobre águas paradas ao dizer que ‘vivemos em ilhas de sentido rodeados por marés vivas de caos’, só para ver se a gente entende este milagre que nos explica podermos e devermos ser. O homem explica-se bem, que diabo, sustenta até o que diz. Criativos somos invencíveis, imbatíveis, sobreviventes. Não necessariamente vencedores, digo eu já agora, que esse tipo de millagre já vai depender de quem nos carimba e formata para projecção na pantalha oficial. E isso já tem dias, e uns, e outros. É outro assunto. Mas quero acreditar que só criativos viveremos inteiros e campeões aos olhos desse tal Deus que Malraux errou ao prever omnireinante no coração dos homens deste século. Mesmo que morramos disso.

  20. Z, tens aqui uma excelente intuição:

    “Porventura a actividade mental de pensar e comunicar é neguentropia”

    É essa a nossa esperança!
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    joão viegas, as caixas de comentários são territórios absolutamente livres. Podes (e deves) discutir o que te der na real gana.
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    Rui, já lá mora.

  21. João, desculpa o meu silêncio, mas estou em baixo. Continuamos noutra altura. È um prazer ter um papo assim, já ninguém se dá a esse trabalho.

  22. calma Nik, que o Sol já anda aí, intermitente. Creio que outros já tinham dito Valupi, em particular o Joel de Rosnay, o gajo da Origem da Vida, do Macroscópio e do Homem Simbionte. Escuso de te dizer que subscrevo este último título. Não é só uma esperança, há que concluir que é verdade, assim haja, como tantas vezes invocas e exerces, inteligência e coragem.

    abraços para todos

  23. Pingback: jar.io

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