Olhe qu’ê gosto munto do João Cravalho, aquilo nã era partida qu’ele me fezesse. A gente só pode levar duas garrafas de bebida, dizem qu’a lei nã permete nem sequer essas duas, mas eles fechim os olhos s’a gente nã leva más que duas. Quer-se dezê que eu levê aquelas duas e nã podia levar más ninua. Uma era pra ofrecer ó mê doutor, um belo home, que até fala uma nisquinha de pertuguês, e tá sempre numa ipequeia comigo, quer qu’ê largue a bebida, mas, mê rico amigo, um home bebe desde o breço, nã há modos de largar, nã le parece? Isto nã é mintira ninua, era cma todos os outros pitchenos do mê tempo, mal davam um grito as mãs pansavam qu’era dôs de barriga, ala dar-les licô de esprite de canela, a gente ficava era bêbedos, coutadinhos, ó dispous, já más maorzinhos, era sopas de cavalo cansado, sabe isto o que é, o sê pai tamam dava às mulas uma garrafa de vim e um pã trigue, antes da viage da cedade prà Maia, sete léguas aluídas por aí adiante, entanse pra subir a Croa da Mata, mas más principalmente o Coucinho do Porto Formoso, aqui os carroceros tinham de metê a giga nos varales da carroça pra dar uma ajuda às bestas. Nos Calços, a camineta, qu’era a cravão, nã subia, os passageros tinham de descer e dar uma ajuda a impurrar, o malero ponhava uma pedra mal ela subia uma becadinho, os homes tomavam folgo e ala outro impurrãzinho. E cando era pra sair aqui da Maia, o malero ia aí plas quatro da manhã acender a caldera, despous a camineta tomava balanço pra pegar pla rua da igreja abaxo, se não pegava tava lá em baxo uma junta de bous pra a levar pra riba até à igreja, e lá ia ela por ali abaxo até pegar. E no Coucinho do Porto tava sempre outra junta.
Pous, fu ê munto prezado ofrecer uma garrafinha ó mê doutor, nem faz ideia cm’aquele home tratou a minha mulher, qu’ela morrê fou porque teve de sê, era uma santa, o que penou comigo só Dês sabe e ê tamam. É por isso que agora que tou viúve e na ritaia venho cá más vezes, mas esses coriscos pregam-me cada partida qu’ê nunca m’alembro de ter feto igual a outros, e inda menos a eles, mês ricos amigos. Mas esta fou ideia do João Cravalho, que se ri cm’o demoino cando le conté, e ê tolo inda le fu contar o que m’acontecê. Pous segue-se que cando ê incontré o doutô, despous de le dar a garrafinha, era de Macieira, tava à espera qu’ele me fezesse um elogio, qu’aquilo vendo era mesmo Macieira, eles fezeram a cousa munto bem feta, era tal qual. Um elogio, isso é qu’era bum! Cal-te-cá elogio! Sabe o qu’ele me disse? Os coriscos tinham botado era chá nas garrafas, qu’ê despous provê a outra, que tinha na ideia ofrecê-la a outra pessoa amiga. O doutor ri-se e disse-me, ele fala uma nisquinha de pertuguês, já le disse, “Ó senhor Franco, a aguardente na sua terra é munto fraquinha.”
Na verdade, estas histórias valem ouro.Para além da verdade nelas contida, o registo de linguagem dá um autenticidade muito transparente às personagens.
Eu comecei a ler em voz alta e “escangalhei-me” a rir.É que nestas iluminuras rurais eu encontro um pouco do meu passado de menina, na aldeia onde a minha mãe dava aulas. Lembro-me dos rapazitos que chegavam à escola atordoados por causa das sopas de vinho; lembro-me que as mães diziam que a cachaça, logo pela manhã, dava forças.Era a miséria, a pobreza, a ser “enganada” com bagaço.
Obrigada!
Eu também comi sopas de cavalo cansado mas gostava mais de gemadas. Só que esse pitéu era raro: os ovos eram precisos para «vender» na loja do sr. Ernesto e trocado o seu valor por uma barra de sabão ou um quilo de arroz. Nos anos 50 numa aldeia da Estremadura era assim.
Também no alentejo se passou muita fome, com menor recurso ao vinho na infância. Tive sorte, não me calhou. A minha mãe na sua juventude viu tanta gente (nas crianças e velhos é marcante) passar fome que nos habituou lá em casa a nunca “desperdiçar” um bocado de pão (atitude com diversas conotações que ela depois nos explicava). Nas famílias com muitos filhos, uma sardinha era dividida em três partes e só os irmãos que já ‘batiam à trave da chaminé’é que a comiam. Eram os que trabalhavam. Sem dramatismos mas constatando apenas, a fome voltou, está aí e toca muita gente. É políticamente incorrecto dizê-lo mas verdadeiro.
É estranho, talvez, mas Portugal sempre foi o mesmo no Continente e nas ilhas. Nada do que os meus caros amigos qui deixaram dito me espanta, pois sei que a vida era semelhante em toda a parte. Até o pormenor da sardinha, por cá dita “de Lisboa”, faz parte da memória de muitos ainda. E, não raro, dividida por mais que três, pela família inteira, tivesse ela quantos membros tivesse. Hei-de falar disso em próxima história, se mo permitirem.
Obrigado, amigos.
Na família do meu pai, quando se aprontavam a comer a sardinha, tratava-se de dividir o corpinho da sardinha. Era a expressão que utilizavam.
E já agora, por causa da sardinha dividida por dois ou mais havia na minha aldeia de Barcelos um conterrâneo que dava pela alcunha do “sardinha inteira”. Porque, quando quando rapazote dizia para quem queria ouvir: Quando eu for pai vou comer uma sardinha inteira e rezar assentado…
Claúdia e Mário
E demos gente, não foi? Que teríamos sido com menos dificuldades? Talvez esses tempos tenham funcionado para nós, sobretudo os que já passaram do meio século, como o vento nas searas, que obriga o trigo a criar raízes maiores para se segurar na terra, e acaba por crescer mais forte por causa disso.
Mário,
A que Barcelos se refere? Também há “Barcelos” aí nas ilhas? A minha mãe dava aulas numa aldeia do Concelho de Barcelos que se chamave Milhazes.Foi um dos paraísos da minha infância.
Concordo contigo, Daniel. Só uma ressalva. Os meus pais são de meios antagónicos, opostos. Um tinha tudo, o outro não tinha nada. Eram diferentes em tudo: ser em sociedade, religião, política, etc. Oh messa, a minha mãe dividia lá uma sardinha! Dividiria por educação, mas não por necessidade. Em casa do meu pai, era diferente… Quando me contou essa de dividirem a sardinha em 3 (ele, irmã e pai), pareceu-me assim de repente uma coisa absolutamente impossível. É o que se chama passar fome de rato.
Há um fosso enorme entre o Portugal de ontem e o Portugal de hoje…
Esta sequência de textos, com que nos prendas, comprova que as histórias devem ser contadas a partir da essência, longe de todo um excesso de zelo que resulta da preocupação em agradar e que só serve para truncar. (arrisco dizer: será sempre um erro vestir a emoção de razão)
(Pormenor: Não sei se existirão lares, em Portugal, que não façam referência à sardinha. Também observo, com preocupação, isto a precipitar-se. O problema é tal, que, em vez de se dividirem sardinhas, estão-se a multiplicar hambúrgueres – com todos os malefícios que tão hediondo alimento comporta ;)
Essa de comer uma sardinha a dividir por três e dar a espinha ao gato é pior que a história dos fogareiros crematórios. Há gajos que acreditam em tudo só porque o pai contou. Que acreditam ou engolem, já que um terço duma sardinha ainda é mais fácil de engolir.
Este comentário foi inspirado numa história muito bonita dum livrito de 48 páginas “Lendas dos tempos em que as melancias custavam um cruzado e faziam urinar muito quem as comesse”.
Chico, como piada, não está mal. Em minha casa por acaso até havia uma sardinha para cada um, mas eu vi uma vez uma mulherzinha que pedia esmola, e a quem minha Mãe tinha dado um chicharro (carapau), não me lembro se frito se assado, comer um grande pedaço de pão condutado apenas com uns fiozinhos que lhe foi tirando da barriga, tendo guardado o resto para comer mais umas três ou quatro vezes, pelo menos. Porque, aos mendigos, quase só se dava pão, lembra-se?
Além disso, as sardinhas de que se fala são aquelas que vinham (e ainda vêm) salgadas em caixas.
Um miminho para a minha alma rural é o que os seus textos( muito pobre qualifica-los de textos , mas não sei como hei-de chama-los: bombons , talvez)) são. Dá cá umas saudades de vacas com computadores…Eu cá acho que não são conceitos irredutíveis. É só uma questão dos PC largarem a cagança , porque as vacas e as patacas não têm nenhuma.
Obrigado:
Obrigado.
Lia
Eu sou de Balugães, a terra da Senhora Aparecida…Barcelos, do Minho. Do verde Minho, pelo qual se apaixonou, um dia, na sua juventude, o Fernando Venâncio e lhe dedicou uma linda canção (é verdade! já foi compositor…): Ó
onho, minha terra natal onde eu nunca nasci…Se eu voltasse a nascer e pudesse escolher o meu novo cantinho, pediria a gritar que me dessem o Minho. Desculpa lá, Fernando, e não me batas pela inconfidência.
Chico Estaca
O Daniel não inventou nada. É a pura verdade, por mais arregalados que fiquem os olhos de quem nasceu em casa farta. Na minha casa nunca se passou fome, que o meu pai era funcionário público, de ordenado certo, e minha mãe filha de lavradores, mais que remediados. Mas cheguei “roubar” pão da nossa masseira para matar a fome de um amigo de infancia meu vizinho que chegava junto de mim, pela tardinha, a chorar com fome porque passara o dia a mendigar e não lhe deram nada. Chico, sardinha pela metade não é ficção. E por um terço e carapau comido aos fios…
Sardinha pela metade não era ficção e muito menos ficção crianças irem descalças para a escola em pleno Inverno… As crianças choravam nos espigueiros, enquanto os pais trabalhavam a terra, por trazerem os pés regelados.
Pode ser que o tal Chico se convença com os vossos testemunhos, meus caros Mário e Cláudia.
Obrigado.
meus amigos,
Pois eu cá não me comovo com misérias de sardinhas divididas. Tenho galinha gorda para a ceia, roubada de nôte aos aspirínicos, ainda por cima. Aqui:
http://setevidascomoosgatos.blogspot.com/2008/03/duas-garrafas-de-macieira-roubadas.html
Há gente sem vergonha nenhuma, é o que é.
Daniel, os meus testemunhos vêm-me também das histórias que ouço na aldeia. Havia uma mulher já de idade que se julgava uma jovem, enfeitava-se como um espantalho, acreditava-se que todos os jovens estavam apaixonados por ela. Tinha muitos pretendentes. Coleccionava bonecas de todos os tamanhos, de todos os feitos. Eu era uma adolescente e não entendia aquela excentricidade. Escrevia todas as semanas ao 1º ministro ou ao Presidente da República. Chamavam-na a Tirolira. Era a maluca da aldeia. Eu julgava, na minha inexperiência, que se adquiria a loucura. Era algo genético. Um dia, a minha explicou-me tudo. Era uma mulher como todas as outras até perder o marido e o filho nas guerras coloniais. Os corpos nunca foram encontrados. Até morrer, pedindo a outros porque era analfabeta, pedia que lhe escrevessem cartas para os governantes. Queria saber o que era feito do marido e do filho. Havia quem roubasse presuntos na nossa casa. A minha madrinha fechava os olhos. Sabia que as pessoas passavam mal. De noite, subiam pelo telhado e agarravam-nos. Pelos relatos, sei sim que as crianças iam descalças para a escola e as sardinhas eram divididas por vários membros da família. Sei também que muitos tinham capacidades enormes para o estudo e não iam à escola porque tinham que trabalhar para ganhar a côdea do pão. Os ricos, mesmo que fossem burros, iam estudar para terem os seus lugarzinhos “merecidos”. Tantas estórias!
Cláudia, isso confirma o que temos vindo a dizer: que Portugal era igual de lés a lés. Essa gente merecia melhor sorte.