O segredo para fazer de 2025 o melhor 2025 de sempre consiste em ir tomando consciência de que há 2025 piores, e até muito piores, do que o actual. Poder-se-á alegar que se está a nivelar por baixo o 2025 hoje entrado em execução, mas tal remoque peca por ignorar, ou desprezar, um princípio sapiencial arcano: evitar o pior, e especialmente o muito pior, é o fundamento, o começo sempre renovado, para fruir do melhor possível.
Claro, há quem retruque de imediato “Mas como é que se consegue identificar o pior, e depois ainda ser capaz de o distinguir do muito pior?”. Esta é uma questão legítima que ocupa as cachimónias civilizadas desde que nasceu a linguagem verbal. E essa é uma pista para a resolução do imbróglio, perceber que se trata de algo que dá que falar.
Donde, é simples, embora seja difícil. Há que falar sobre isso. É o segredo mais mal guardado da história.
Ontem à noite, durante as entrevistas sobre os votos de Ano Novo, uma resposta inesperada chamou-me à atenção. Uma mulher, questionada sobre o que desejava para 2025, respondeu: “Que seja igual a 2024.” A reação do jornalista foi um surpreso e quase incrédulo “Só isso?”. Este momento, aparentemente trivial, revela profundas camadas da dinâmica do espaço público e da mentalidade portuguesa do “televiver” descritas por José Gil em Portugal, Hoje: O Medo de Existir. Este “só isso?” não é apenas uma expressão de surpresa; é a manifestação do que José Gil chama de não-inscrição.
O jornalista, sem o perceber, reproduz a expectativa de uma resposta ritualizada: o desejo de “um ano melhor”. Esta expressão, longe de indicar uma esperança genuína, funciona como um artifício social vazio. Esta resposta é a encenação do loop discursivo que caracteriza o espaço público português: a promessa constante de progresso que nunca se concretiza. Anualmente, o ciclo repete-se. Deseja-se que o ano seguinte seja melhor, mas, na prática, perpetua-se a inércia, o conformismo e a ausência de transformações reais. Para o ano podemos contar com mais do mesmo.
Este “teatro do otimismo” é central para a ideia da não-inscrição. Como explica José Gil, a não-inscrição é o ato de evitar confrontar as realidades dolorosas ou profundas que poderiam alterar o curso do coletivo. Colocar estes vícios do passado num tempo de “antepassado”, para lá do passado. O espaço público não se abre para a diferença ou para a reflexão autêntica; em vez disso, limita-se à reprodução de clichês que mantêm o status quo. O jornalista, ao esperar a fórmula típica – ” desejo um ano melhor” – está inconscientemente preso à lógica deste sistema; não é apenas uma questão de expectativa frustrada; é o desconforto diante de uma ruptura com a narrativa dominante.
Ao desejar apenas a continuidade, a mulher rompeu com o teatro simbólico do progresso fictício. Ela rejeitou a ideia de que o futuro precisa de ser pintado com as cores da ilusão para ser suportável. Este gesto simples, mas poderoso, expõe a engrenagem do espaço público português, que, como filósofo aponta, ainda é marcado por um “nevoeiro branco”: um manto de superficialidade e vazio que evita o confronto com o real. O “só isso?” do jornalista é a tentativa de recolocá-la dentro do sistema, de trazê-la de volta ao script da ilusão compartilhada.
Freud, ao tratar das soluções de compromisso, descreveu bem esse tipo de situação: é a tentativa de conciliar impulsos contraditórios sem resolvê-los plenamente. No caso português, esta solução de compromisso aparece na forma de um discurso que finge o progresso enquanto perpetua a estagnação. Desejar “um ano melhor” é, paradoxalmente, uma expressão dessa mesma estagnação, porque é dito sem crença real ou sem intenção de agir para que isso aconteça. A tesão de mijo resume bem este fenômeno: é um entusiasmo passageiro e superficial, que rapidamente se dissipa sem deixar qualquer inscrição duradoura no real.
Como superar este ciclo? Como romper com o não-inscrito e transformar o espaço público em algo mais autêntico e transformador?
Teremos forças para tanto? A questão que fica não é apenas sobre capacidade, mas sobre coragem: coragem de enfrentar o ciclo de ilusões e tomar, juntos, as pequenas ações que inscrevem no real um futuro que, possa transcender a promessa e realizar a transformação. Como José Gil argumenta, a superação do não-inscrito exige coragem e um esforço coletivo para enfrentar as estruturas invisíveis que nos prendem. Cada gesto de resistência, como o da mulher que recusou participar do teatro coletivo, é um pequeno ato de inscrição.
O abuso de Raposeira e de https://en.wikipedia.org/wiki/David_Lewis_(philosopher) pode ter graves consequências, mas é Ano Novo e tempo de desejar Boas Aspirinas para 2025, portanto ninguém leva a mal…
Boas (entradas)
Esse palerma só diz parvoíces. Não há para aí mais nenhum filósofo que não diga treta e que possa dar consistência á teoria da Raposeira?
«O espaço público não se abre para a diferença ou para a reflexão autêntica; em vez disso, limita-se à reprodução de clichês que mantêm o status quo.»
Interessante reflexão sobre o ‘script da ilusão partilhada’; bem acima da média do blog.
No caso do ano novo pode-se argumentar que 2024 foi uma bela trampa; desejar um ano igual põe em causa o julgamento ou as intenções de quem o deseja. Ou é egoísta (2024 correu-lhe bem, isso basta), ou masoquista, ou sádico, ou alienado. Claro que perante uma pergunta tão pateta é legítimo o inquirido limitar a resposta às suas circunstâncias pessoais; ou talvez gozar com o ‘jornalista’.
O prolixo IMP trazia também alguns temas interessantes, ou pelo menos diferentes. Sem eles o blog vai andando nisto: 44, Putin, Ucrânia, Trampa, malhar no PSD, malhar no Ventura, ocasionalmente uns links ‘tecnológicos’ e musicais. Enfim, há bem pior, suponho… ocorre-me o Blasfémias…