Nas muralhas da cidade

«Anda há meses um canal de televisão e um jornal, do mesmo grupo, a destruir um cidadão e ninguém parece importar-se muito com isso. Desapareceu uma senhora, grávida, e o seu alegado namorado foi constituído arguido nesse inquérito judicial. Está, parece, em casa, com a medida de coação decretada de permanência na habitação. Não foi sequer acusado pelo Ministério Público, muito menos julgado. Não há corpo e a história, aparentemente sórdida, é muito triste. O canal filma insistentemente a família da senhora desaparecida, recolhe as mesmas declarações em loop, eivadas do mesmo basismo e vontade de aparecer de repórter e de declarante, reproduz em direto retroescavadoras e mergulhadores em busca de um corpo. Entretanto, parece que a realidade afirmada muda radicalmente, mas nada muda. E o homem, homicida ou não, continua a ser vilipendiado pelo canal e pelo jornal, também ele agora morto em vida, culpado ou não. É filmado à má fila num momento em que saiu de casa, o mundo dos cafés conhece o seu nome, a sua aparência e a da sua casa, a sua existência e os recantos íntimos da sua vida. Nota-se que só pode haver necessariamente ali um intuito ad personam de aviltar e condenar antes dos tribunais, a coberto da liberdade de imprensa. Pode ser culpado do crime, talvez. Ou não. A mim, como professor de Direito, advogado, jornalista e cidadão, só me arrepia esta perseguição televisionada como justiça, como justiça que funciona e decide em alternativa ao sistema judicial. Para alguns, não há segredo de justiça nem presunção da inocência. Mas, pelos vistos, está tudo bem. A Ordem dos Advogados e o Ministério Público, aparentemente, também acham bem. Até lhes calhar a eles.»


Miguel Romão

9 thoughts on “Nas muralhas da cidade”

  1. É um facto (que, curiosamente, corresponde ao argumento do filme “Gone Girl”). Será que, agora, surfando esta onda, vai finalmente ver a luz um artigo sobre facto de o famigerado Padre Frederico ter sido condenado por homicídio sem existir qualquer prova (do crime de homicídio, não do facto de ele ser homossexual e pedófilo)? Ou ainda é cedo demais?

  2. Há comentadores que se assemelham aos da bola no canal acima alvejado. Pois sim, mas esqueces aquele penalti, no ano passado, que beneficiou a tua equipa.

  3. “A Ordem dos Advogados e o Ministério Público, aparentemente, também acham bem. Até lhes calhar a eles.”

    essa é a essência do problema, enquanto acharem bem há menos probabilidades de lhes calhar a eles e se calhar terão mais probabilidades de se safarem.

    as corporações vivem disso. cada vez que reclamo subo na posição e aumenta o tempo na lista de espera para cirurgias. os prazos são meramente indicativos e as posições são relativas ao humor e interesse de quem atribui as prioridades. as más línguas chamam-lhe cunhas ou compadrio, que podem ser pagos com valores ou favores. uma tradição mais velha que o acto de cagar e um complemento dos ordenados miseráveis que os sindicatos das corporações denunciam em loop nos canais de notícias 24 horas.

  4. Um canal criminoso que devia ser erradicado e continua a existir apesar de uma divida ao fisco de cerca de 10 milhões de euros a culpa evidentemente é de quem lhes dá audiências
    se estas forem residuais a programação muda
    assim como o jornal que diz que vende muito e é
    mentira podem fazer muitos jornais mas as devoluções são enormes e por isso dá prejuízo .

  5. Também a democracia é em muito culpada de não ter um compromisso sério com a verdade e práticas Democráticas; isto é, de ser altamente laxista e contemporizadora com todo o tipo de media que, em nome da informação, apenas produz malformação e inversão de pensamento lógico, racional e de acordo com a Lei e o bom senso.
    Ainda há dias estava no café a tomar a bica e observei numa TV (sic, cm, cnn?) a fazer um ‘julgamento’ acerca de “direitos de autor” imitando à letra um qualquer julgamento numa sala de tribunal real no qual um senhor “juiz” proferiu a “sentença”, tal qual, como se estivera pronunciando juízos e sentenças em nome da República.
    Ora, tal imitação frente a pessoas quase incapazes de diferenciarem o real da imitação ou ficção e, por conseguinte, a realidade são as imagens e palavras mostradas na tv, este facto de tv real que é um “não facto verdadeiro” é um exemplo altamente nocivo à compreensão correta de factos semelhantes a serem observados posteriormente.
    As nossas tv são useiras e vezeiras em exemplos deste tipo de programas que falsificam a verdade para venderem e obter lucro com a falsidade.
    Penso que tais cumplicidades e consentimentos com a falta de verdade deveria merecer, de imediato, a reprovação da Democracia em nome do rigor com a verdade. E pela educação segundo a verdade.

  6. J Neves: este modelo de programa já existiu nas TV´s nacionais na década de 1990. Mas concordo que é pernicioso e provavelmente mais “trabalhado” para fazer a cabeça ao Zé Pagode. Não há fumo sem fogo e alguns jornais devem estar aterrorizados por alguma contenção ( medo ? ) nas fugas ao segredo de justiça

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