Há vinhaça e festança no melhor jornal da Europa

Pois é, o melhor jornal da Europa é português. Pasmai, ignaros. Mas não só. O Público é também, e cada vez mais, “o mais importante jornal do país“. Qual país? Vamos admitir, por economia de esforço, que se trata deste, o nosso. O que então ajudará a compreender melhor a vaidosa e mentirosa referência a “6,5 milhões de visitantes” no tal país só com 10 milhões. É bué da malta, todos os meses a entrarem no melhor jornal da Europa que acumula em ser o mais importante de um certo país. Não se imagina a trabalheira que dá receber tanta visita, a algazarra, a poeira, a sujidade nas caixas de cumentários. O segredo para esse fabuloso trânsito está na qualidade, what else? Muita qualidade, qualidade que atrai qualidade. Esta qualitativa quantidade enorme de qualificados, curiosamente, precisa de ajuda para descobrir para onde vai, e isto apesar de não falhar mensalmente com a visita ao melhor jornal da Europa, talvez o único poiso onde se sentem acolhidos e cuidados numa comunidade de desorientados. Por obra e graça do império Azevedo, o Público paga a jornalistas independentes, a cronistas conceituados e a especialistas profundos, e são estes bravos que orientam os “pontos de vista singulares de cada leitor” de forma a alargar a sua (deles, a dos outros) visão do mundo em ordem a, portanto (e já sem espinhas), permitir que os milhões de visitantes alicercem as respectivas “melhores decisões“. Faz isto algum sentido? Não tem de fazer.

A crise nos jornais, neste período de extinção das edições em papel, levou ao aparecimento de tácticas comerciais do choradinho. No final dos artigos das edições digitais passou a ser habitual encontrar um texto lancinante onde se coloca o leitor entre a espada da vergonha e uma assinatura da publicação ou mera doação, esmola. Cada órgão reclama ser um bastião da independência e da liberdade, o farol sem o qual todos e cada um iremos encalhar as nossas atarantadas existências nos baixios da ruindade circundante. E nada contra, a civilização que queremos ser precisa do jornalismo livre, fiscalizador dos poderes e… civilizador. Mas, exacta e precisamente, por causa desta civilizada carência não parece a melhor estratégia aparecer ao balcão com o discurso da banha da cobra, como nos exemplos acima. A menos que a intenção seja mesmo a de projectar uma inane e ridícula imagem: apregoar o oposto do que se é.

O que é o Público? É um pasquim, na actualidade. Para além de o jornal andar a servir de instrumento de vingança e perseguição política do accionista desde 2007, para além de pagar a um caluniador profissional e fazer dele uma vedeta de referência editorial, talvez o mais grave, porque mais sórdido e esconso, seja a cumplicidade com o ataque ao Estado de direito. Trata-se de um fenómeno político e social que vem do zeitgeist global, num processo que começou nos anos 80 e se agudizou criticamente a partir da crise económica mundial de 2008 – a que se soma, na esfera nacional, as agendas da direita decadente e da Cofina. Esta fáctica cumplicidade da nossa “imprensa de referência” com as forças e individualidades que deturpam e violam os princípios constitucionais e as leis está ofuscantemente patente no silêncio editorial e jornalístico com que reagem à caudalosa produção da indústria da calúnia e seu cortejo de indecências, violências e crimes. É até possível encontrar nessa mesma angélica “imprensa de referência” defesas preemptivas do Correio da Manhã contra alucinadas e caluniadas ameaças do PS. Talvez um dia vejamos algum director do Público ou do Expresso a denunciar o Código Deontológico do Jornalista como uma invenção dos socráticos para mergulhar o mundo na escuridão do Mal, já faltou mais.

Este o contexto, o pretexto e o subtexto para ir buscar um exemplo “invisível” no meio do foguetório dos casos e das parangonas, assinado por Amílcar Correia: O azar de ter escolhido Azeredo. Não só não há neste planeta quem se lembre do que foi ali escrito a 10 de Janeiro deste ano, excepção para o autor e aqui o pilas, como um inquérito de rua mostraria que não existe quem consiga relacionar o seu nome com alguma cara ou profissão. Será uma excelente pessoa e um profissional exemplar, este Amilcar director adjunto, mas não passa de mais um anónimo no meio da maralha. Contudo, o Público tem público, e o senhor escreve editoriais e tudo. Daí me aparecer como profundamente significativo para a matéria em causa – a degradação institucional da República sob a capa de algum propalado “jornalismo de qualidade” – o conteúdo e estilo deste pequeno exercício de pura maledicência que evoco.

Nele, o editorialista trata as ocorrências em Tancos com soberba e desdém, assumindo aquela pose de taberna em que se fantasia como mestre-escola a lidar com putos ranhosos no recreio: “patético caso de Tancos“, “farsa“, “cómica teatralização“. Quem assim abre as hostilidades sabe o que aconteceu? É o próprio a admitir não saber, o que o deixa reduzido ao estatuto de macaco de imitação. Reagir como se o assalto em Tancos e seguintes peripécias da recuperação do material de guerra fosse apenas uma cegada da tropa-fandanga foi uma opção intencional dos editorialistas e comentariado em 2017, exibição de arrogância e sectarismo ao serviço de agendas de desgaste e ataque ao Governo socialista, ou apenas compensação decadente para a real impotência política desses peralvilhos. Como se a suspeita de haver corrupção nas Forças Armadas e tráfico de materiais de guerra correspondesse à normalidade de décadas e a sua descoberta por inépcia de alguém no esquema o acaso que permitia a feliz oportunidade de usar o embaraço como arma de arremesso político. Como se ver altas patentes militares no topo de instituições fulcrais para a segurança nacional em possível violação dos seus juramentos e responsabilidades não passasse de um número de revista a pedir gargalhadas desopilantes. Foi neste esgoto que o Sr. Correia mergulhou de cabeça e boca aberta.

O pior, infelizmente, foi despejado dois parágrafos a seguir:

«António Costa beneficiou da possibilidade de optar pelo depoimento por escrito por pertencer ao Conselho de Estado, resguardando-se, certamente, da inevitável exposição que o poroso sistema judicial português está longe de impedir ao depoimento seja de quem for. As rápidas e cirúrgicas fugas ao segredo de justiça não abonam a favor da confiança no sistema e contribuem mais para gerar confusão do que para o seu entendimento, como tem sido prática frequente, nomeadamente nos megaprocessos em curso.»

Eis o que o director adjunto do jornal da Sonae garante acontecer na Justiça portuguesa: há magistrados que cometem crimes livremente, impunemente, à doida, com objectivos políticos e/ou pecuniários. E ponto final parágrafo. O editorialista não encontrou mais nada de nada de nadinha de nada para dizer a respeito. O que, então, tem vastas consequências hermenêuticas. Implica uma voluntária normalização da situação. É, denotativa e conotativamente, a “situação”. Onde ele, como jornalista e editorialista, se sente adaptado, funcional.

Não há escândalo, sequer estranheza, há padrão. Hoje, Manuel Carvalho deixa no espaço público estas pérolas:

«A confirmação de que Rui Pinto foi o responsável pela entrega de 715 mil documentos a uma plataforma que luta contra a corrupção em África (seguindo daqui para um consórcio de jornais que integra o Expresso) é uma bomba contra o formalismo burocrático da justiça portuguesa.»

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«Depois de se confirmar que foi o jovem de Gaia a tornar público fortes indícios de nepotismo e corrupção de Isabel dos Santos, a justiça portuguesa terá de sair do conforto da interpretação formalista da lei.»

O valente Carvalho sonha com uma Justiça sem formalidades que só atrapalham quem tem forquilhas e cordame na mão. Uma Justiça que abdique das leis, portanto, posto que são as leis, nascidas com o propósito de cumprirem princípios constitucionais, que andam a espalhar burocracias que aborrecem, irritam, a pulsão linchadora de quem só precisa que se viole a privacidade de terceiros e se exponham as vergonhas a gosto dos que calhem ter o dedo no gatilho.

Escusado será repetir a advertência para que estes editorialistas-pistoleiros pensem uma beca acerca da possibilidade de tal poder vir a acontecer com eles ou com alguém que amem ou com quem tenham laços familiares, sociais, profissionais e/ou políticos, porque é inútil. Escusado será lembrar que nos sistemas de Justiça mais formais, mais garantistas, mais burocratizados, ainda assim é possível haver erros judiciários, alguns intencionais. É inútil apelar à básica decência e à mera racionalidade porque esta “imprensa de referência” está em acelerado êxodo para se transformar numa agência de viagens e num clube de vinhos.

6 thoughts on “Há vinhaça e festança no melhor jornal da Europa”

  1. Ao anónimo das 20:29:
    Referência directa não, mas andou lá próximo, aqui:

    Talvez um dia vejamos algum director do Público ou do Expresso a denunciar o Código Deontológico do Jornalista como uma invenção dos socráticos para mergulhar o mundo na escuridão do Mal, já faltou mais.

  2. Quanto terá custado ao “público” este prémio e porquê tanta publicidade para “subscrever o jornalismo do melhor jornal da Europa”?
    E porque será que tudo isto aparece, precisamente, quando, o mundo jornalístico cai em cima do mundo corrupto de Isabel dos Santos grande parceira dos “impolutos” Azevedos na “Nós”.
    É verdade, o império do Belmiro não nasceu de habílidosa compra e venda de ovos como a fortuna do Pegos de Faro nem tinha um pai como a Isabel mas teve as suas golpadas no Banco Pinto Magalhães e depois no BPA, ambos do Porto.
    Quando se vai à origem dos impérios empresariais encontra-se sempre um antigo familiar que deu o golpe inicial: décadas depois já tudo foi branqueado e tais senhores passam a inteligentes empresários que, depois de comerem à grande do Estado, ainda levam as comendas de beneméritos da pátria.
    E com o crachat de beneméritos da pátria já podem assaltar legalmente o Estado através de opas como a da Sonae-Santander-Telefónica sobre a PT e caso tal assalto não se concretize, mesmo com pressões esmagadoras, lá estará o jornal “público” de referência, ou outro meio de oportuno para acusar de corrupto quem não se deixou corromper às mãos do grande patrão.
    Porque, sabe quem já andou nos negócios, que o primeiro passo de corrupção é sempre dado pelo empresário e não pelo político ou técnico responsável, este tem vários concorrentes e estará sempre à espera, se é corruptível, do sinal enviado pelo empresário ou empreiteiro corruptor.
    A corrupção corre sempre no sentido de quem tem o dinheiro para quem precisa dele.
    O grande corruptor com meios de pressão de “referência” na mão perante a perda dum gigantesco negócio de milhões de milhões procurará sempre uma qualquer desforra e vingança figadal: foi imediata a tentativa de golpe de estado através do parvalhão desconfiado e manipulado cavacóide tendo como leit-motif as célebres “escutas a Belém” inventadas e montadas pela parceria casa-civil da Presidência com o homem de mão JMF, director do tal jornal dito e propagandeado, agora de aflição, como de referência.
    Quem será o bode expiatório agora perante a ligação “impoluta” da Sonae à poluída família Dos Santos de Angola?

  3. Um belíssimo texto que adorei ler e recomendo! Já dizia o outro: “Os extremos tocam-se” e realmente “o melhor dos melhores jornais da Europa” acaba por ser na realidade o pior deles…

    É a versão Correio da Manha para intelectualoides, pois as pessoas inteligentes já não perdem tempo com tal laboratório liberaloide de víboras.

    Por isso, prescindi de ler ou ver a CUmunicação social portuguesa e vivo mais feliz desde então. Com a internet, sabendo procurar adequadamente, temos informação e formação de grande qualidade.

    Não precisamos já destes medíocres que aBUNDAm, como comentadeiros e caluniadores profissionais, nestas espeluncas lusas. Só tenho pena de me obrigarem a pagar a rtp salazarenta e bafienta que eu não vejo…

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