Há quanto tempo não danças?

Estava para começar este texto com “As pessoas dividem-se em dois grandes grupos, as que […]”. O meu daimon avisou-me, a tempo, do duplo erro. É que as pessoas não se dividem, mas juntam-se. Em pequenos grupos. Para dançar. E há quanto tempo não danças?

Sonho com uma Escola onde, ao se concluir a escolaridade obrigatória (e tudo o que é bom deve ser obrigatório, que ninguém se engane), os alunos denunciem à polícia quem conduza alcoolizado, se tornem viciados em teatro e odeiem aqueles que deixam entulho nos baldios e lixo nas praias, ao ponto de lhes querer bater com alguma força para lá da necessária. São estes apenas alguns exemplos de critérios de sucesso escolar que eu irei impor ao País logo que tenha esse poder. Um outro critério é o de saber que a vida é para ser levada a dançar. Quem não dança, sofre. E pode dar-lhe para escrever. Quantas cartas, quantos livros, quantas carreiras de escrevinhador público (quantos blogues!), teriam sido evitados — com proveito próprio e geral — se os seus autores tivessem ido dançar em vez de se terem posto a escrever mal amanhadas lengalengas? É que a escrever, nada resolvem. E depois dá-lhes para escrever ainda mais. É desgraçado.

Portugal está numa gravíssima carência dançarina. A sempiterna crise — que é moral, antes de ser política e económica — dá-nos baile também porque já não bailamos. Os nossos avós e bisavós e tetravós, os mais rurais, com quase nada para pôr em cima do corpo e do prato, alegravam-se nas festas de uma forma plena, sublime, erótica. Dançavam e cantavam; ao longo do ano e do dia. Nós, em comparação, usamos a abundância para privarmos o corpo da sua liberdade, para vivermos empanturrados e saciados de miséria corporal. É que um corpo que não dança, não fala. E se não fala, não ama.

O que mostro não é dança, é cinema. Cinema que dança. Duas das minhas obras-primas favoritas, de toda a arte do século XX, cabem em poucos minutos e têm Cyd Charisse a lembrar-nos que as pernas também servem para nos levar para perto. E cada vez mais perto. Levarem-nos para a dança, para o espaço que se atravessa com o corpo a puxar pela alma — ou seja, para aquilo que em nós ainda está por chegar. E que sempre estará a dançar connosco.

10 thoughts on “Há quanto tempo não danças?”

  1. Passo os dias a dançar, entre saltos e movimentos de anca. Mas sem corpo. Tenho, na realidade, uma alma dançante. Mas que ainda não encontrou o par ideal. E o dançar, como o amor, tem de ser a dois.

    Grande abraço, amigo Valupi.

  2. Ó Valupi, não me estragues o resto do dia, mais do que a chuva persistente, além da recordação insistente daquele péssimo jogo de Portugal ontem, já estragou. É que eu não sei dançar, percebes?

  3. A dança torna, naquele corpo, o espírito visível. Mostra que, ali, não está só carne. O inesperado, o sempre inesperado, aparece.
    Será isso?

  4. susana, és uma sortuda. Mas fico preocupado ao saber que o teu lugar é a cozinha. Tens de te libertar e ir dançar para a sala.
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    Grande abraço para ti, Confúcio amigo que precisas de par.
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    Daniel, que história é essa de não saberes dançar? Os homens não sabem dançar, nem devem saber. O que se passa é que tu não queres dançar, e isso é outra historieta…
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    Ana, muito bem lembrado. E muito bem explicado.
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    Fernando, não faço ideia a que te referes. E gosto que seja assim, pois estamos a falar da dança; daquilo que não se reduz a palavras, antes as cria e recria. Mas conta lá, danças?
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    claudia, não faças isso. Vai dançar.

  5. O Eduardo Lorenço disse-o aquando da morte do Eugénio de Andrade, “Vivo e consciente, contemplou a última metamorfose, da sua própria margem, aquela que uma luminosa vida de versos lhe construíra como a única barca imune ao negro esquecimento. Aí permanecia o deus verde que sonhara o seu destino como quem dança.”

    Confesso ser um pouco alérgico à urgência que alguns colocam na necessidade de escrever algo imediatamente após a morte de outros, no entanto destas palavras sempre gostei e agradeço-te o pretexto para as rever.

  6. valupi, na sala? mas tu queres que eu ande perdida?
    de resto, a minha cozinha tem espaço e bom piso. já que tenho que fazer jantar todos os dias, bem posso dançar enquanto o faço. e a minha cozinha é um espaço de inauditas alegrias e aconchegos, nem imginas.

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