E em 2010 já chegava atrasado

Nada de novo

NOTA

O processo Face Oculta, nisto sendo radicalmente diferente do caso Casa Pia, foi o momento em que agentes da Justiça testaram a capacidade de cometerem ilícitos usando a Lei com vista a derrubarem, ou prejudicarem eleitoralmente, o poder político vigente. Fizeram-no porque existia um ambiente golpista desde 2008, ano da crise económica mundial e das crises nos bancos portugueses, o qual contava com Cavaco Silva, a direita política e quase toda a imprensa para validar a operação de espionagem a um primeiro-ministro em funções e a tentativa para o colocar como suspeito de corrupção em cima da campanha eleitoral das legislativas, e autárquicas, de 2009.

Esta operação não se consumou porque Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento defenderam a legalidade. Por essa parte ter falhado, foi ainda tentado um golpe desesperado: a Inventona de Belém. Mas o que não falhou foi a aprendizagem do que podia ser feito e dos danos que se podiam infligir nos alvos. As campanhas de judicialização da política, as difamações e calúnias, a exploração partidária e parlamentar em comissões de inquérito, isso tornou-se caudaloso, imparável, sistémico.

A Operação Marquês, portanto, foi uma continuação do esquema do Face Oculta, agora em modo celerado e a outrance porque havia um Presidente, um Governo, uma maioria parlamentar e uma procuradora-geral da República em sintonia para se exibirem troféus de caça na temporada do “fim da impunidade”. Atenção, não seria possível deixar de investigar Sócrates a partir dos indícios recolhidos, isso era necessário e bom. O que está aqui em causa é tudo o resto irregular, injusto e ilícito que se fez a coberto dessa legítima investigação. Também no Face Oculta o sucateiro poderia ter cometido crimes, e como tal justificar-se a abertura de um inquérito, mas ele foi escolhido em Aveiro por permitir chegar a alvos infinitamente mais valiosos.

Assim, o golpe que levou à queda de um Governo de maioria absoluta, e o modo ostensivo como desde aí os agentes da Justiçam mostram que podem cometer crimes em barda contra quem lhes apetecer, têm já 16 anos de prática e refinamento — contando com a cumplicidade da sociedade, a capitulação do regime e a putrefacção da comunidade.

3 thoughts on “E em 2010 já chegava atrasado”

  1. Os justiceiros pensam ser um estado dentro do estado pessoas impolutas e puros mas , azar dos Távoras ouve um que se julga acima do comum dos mortais que disse que não tinha amigos que lhe empreste dinheiro e passado meses soube-se
    que tinha recebido 10000 euros ,é este género de pessoas impolutas mas mentirosos que derrubam governos e perseguem políticos durante anos .

  2. As sucessivas “operações” político-judiciais não conseguiam uma coisa: substituir-se às eleições, como se viu em 2009, 2015, 2019 e 2022. Mas a última “operação” já conseguiu anular a maioria PS conseguida em 2022, tentando ainda linchar o Costa, para que nem lhe passasse pela cabeça ser o próximo candidato da esquerda a Belém. Em 2019 a direita já queria que Costa fosse para Bruxelas, obviamente para o verem pelas costas, mas agora conseguiram-no, aliás com a aquiescência do próprio. O que se prepara presentemente é o jackpot da direita, que nem o Sá Carneiro conseguiu no seu tempo, com o governo, a maioria parlamentar (agora segura pelo Chega) e a presidência da República. Mas no fim da linha lá estará o eleitorado, para lhes trocar as voltas. Espera-se…

  3. A ‘COISA’ E OS ‘GUARDADORES DA COISA’

    Surpreende o facto de, aqui, neste espaço de comentários do «Aspirina B», a propósito dos crimes contra a Lei cometidos pelo MP, terem esquecido a razão pela qual Kafka escreveu “O Processo” (publicado por Max Brod em 1925).
    — Terem esquecido como começa esse livro, que conta a história de um personagem (Josef K.) que se vê envolvido num absurdo processo judicial, sem que lhe seja dado qualquer tipo de explicação. Isto é, terem esquecido essa magistral reflexão acerca da angústia, da impotência e da frustração do indivíduo humano perante uma sociedade opressora e totalmente burocratizada construída pelo «regime Democrático».

    Paul Watzlawick, em “A Realidade é Real?” (1976), escreve:
    — “Alguém devia andar a caluniar Josef K. porque, sem ter feito nada de errado, foi preso de manhã. O julgamento nunca chega a acontecer. E Josef K., nem está livre nem encarcerado. O Tribunal nunca explica a natureza das acusações feitas contra ele. É suposto que ele as conheça, e a sua ignorância é mais uma prova da sua culpabilidade. Quando tenta obter informações do Tribunal, é acusado de impaciência ou impertinência; quando tenta ignorar a autoridade do Tribunal ou simplesmente aguarda, a sua atitude é apelidada de indiferença ou teimosia”.

    Numa das cenas finais Josef K. está a conversar com o capelão da prisão na catedral. E e o padre, depois de uma das muitas tentativas de Josef K. para tentar compreender algo acerca do seu destino, tenta explicar a situação contando-lhe a «parábola da Lei e do Guardião da Lei». Cuja conclusão final, para Watzlawick, é a seguinte:
    — “O personagem de Kafka, tal como o príncipe Mishkine de Dostoievski, vive num mundo no qual as Tábuas da Lei podem ser viradas para demonstrar que, o contrário do que afirmam, está escrito do outro lado. As portas de um asilo de loucos, fecham-se para sempre atrás de Mishkine e de Josef K. (que acaba por ser morto por dois emissários do Tribunal).

    OU SEJA, a lição a retirar da parábola da vida humana encarcerada numa sociedade burocratizada é a mesma que encontramos em “Os Irmãos Karamazov”:
    — Tanto Cristo (a pretensa Verdade, a Coisa) como o Grande Inquisidor (o guardião da Verdade, os que se auto-intitulam ou são nomeados para Guardadores da Coisa) devotaram as suas vidas a aliviar o sofrimento humano. Porém, há uma diferença paradoxal. O Grande Inquisidor acusa Jesus de querer uma obediência espontânea (“como podem os fracos ser livres?”, pergunta; e conclui que a única solução é libertar o ser-humano do terrível fardo da Liberdade). Ao invés, para Jesus, o objectivo do ser-humano não é a Felicidade mas sim a Liberdade.

    E o IMPRONUNCIALISMO pergunta:
    — E não é nisto que andamos às voltas e reviravoltas, na Vida em sociedade, como tolos num labirinto? Ou como escravos de Sísifo?

    O que escolhemos? Estar do lado da Coisa, ou do lado dos Guardadores da Coisa?

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