Cineterapia


Paterson_Jim Jarmusch

Preferias ser peixe? Se fosses um peixe talvez também escrevesses poemas que não rimam. Com as barbatanas, escritos na areia do mar ou no vazio cheio de água salgada. Tão ou mais poéticos, parecidíssimos. E talvez também te chamasses Oceano, ou Lago, ou Rio, ou Aquário, calhando morares num oceano, num lago, num rio ou num aquário.

Mas se fosses um peixe não poderias conduzir autocarros. Nem ir passear o cão e ir beber a cerveja. Não viverias com uma peixa especialista em fazer queques, elogiar os teus poemas, gastar o teu dinheiro, sorrir e encher a vossa casa de maníacos padrões a preto e branco (não necessariamente por esta ordem).

E depois temos os gémeos. O problema dos gémeos. Gémeos. Duplicações. Paterson com Paterson. Driver com driver. Rimas. Metáforas das rimas que não prestam para fazer poemas na cidade do William Carlos Williams? Consta que Jarmusch escreveu o guião sem gémeos. Por acaso, a mãe de uma miúda que foi escolhida como extra para uma cena no autocarro foi buscá-la às filmagens com a sua irmã gémea. A partir daí, porque sim, decidiu que o filme iria ter gémeos aos magotes. E explica: “É um elemento anti-significativo”. ‘Tá explicado, Jim.

O mais provável, se o filme te percorrer as veias, será concordares que o realizador quis muito deixar-te com a ideia de que a poesia está espalhada à nossa volta, em tudo, nas pequenas coisas, no quotidiano, ao longo da monótona semana. Um condutor de autocarro pode ser um poeta e viver com uma pessoa do sexo feminino sem discussões nem sexo. Um cão pode embirrar sofisticadamente com um fulano e ter actos de crueldade abjecta contra a poesia. As palavras podem juntar-se às palavras, as frases podem suceder-se quais orações, e assistirmos ao divinal processo criativo num ecrã gigante. E esta ideia, ou aquela, ou até a outra, se misturada com personagens que assumem serem actores provocando riso a outros actores armados em personagens, se temperada com um japonês que não se perde em traduções, se embrulhada em folhas que caem e águas que voam, vai deixar-te a gostar mais de ti. Só que não sabes porquê.

Nem tens de saber. O próprio Jarmusch ainda está a aprender o que seja o cinema. Eis o segredo de um dos melhores filme do ano, seja lá qual for o ano em que vejas este exaltante aborrecimento.

12 thoughts on “Cineterapia”

  1. Confesso não ser grande apreciador de Jarmusch embora aprecie ele não ser um hollywodesco e a poesia passou-me um pouco ao lado, deixei-a com o Armindo Rodrigues embora me arrepiasse com o Ary. Acredito que o filme seja exaltantemente aborrecido e quase tenho pena de não ter tido ânimo para o ir ver. Já gosto mais de cinema do que ir ao cinema. Ela não perdoa!

  2. Manojas, mas ainda o podes ir ver numa sala de cinema portuguesa, partindo do princípio de que tens tempo e consegues estar em Lisboa ou no Porto hoje e nos próximos dias (pelo menos).

  3. ai! muito obrigada. :-) só mesmo um texto assim, com convite, para eu conseguir passar cá mais um dia por dentro da minha poesia que tenho de esconder para não ser torturada. preciso de saber o nome do filme e vou já descobrir.

  4. Agora a sério: A televisão vê-se na televisão, mas os filmes . se se gosta de cinema, vêm-se nas salas de cinema, em ecran apropriado.

  5. eheheh… passos coelho ligado por cabo a uma tonelada de lsd.

  6. acho que o coelho dava era na coca , mais a doce dele. e coca é com um canudo , não é com um cabo , seu nabo.

  7. Não necessitei de fazer das tripas coração. Ao vício do cinema é difícil resistir, ainda por cima desafiado. E lá fui hoje até à Medeia Monumental, sala 2, à sessão das 12,30 h, ver o filme de Jim Jarmusch. Confesso que não perdi o meu tempo. Tenho andado um pouco arredio do cinema actual, os temas, os efeitos especiais, etc, mas há sempre surpresas. O filme do veterano Jarmusch é, no mínimo, surpreendente, embora não me entusiasmasse. Na minha opinião o realizador jogou mais na palavra do que na imagem, insistiu na monotonia, no repetitivo, no desânimo, na apatia, baniu a emoção. E as duas cenas de acção, não indispensáveis, que imaginou, a da avaria do autocarro e a do bar com o apaixonado banido a puxar da pistola, não são nada felizes. E o Marvin, coitado, a quem nunca vimos, na rua, a fazer as suas necessidades, nem em casa a destruir daquela maneira o caderno de Paterson, talvez não merecesse ser o mau da fita. Penso que apesar dos elogios feitos ao filme, justa ou injustamente, poucos o desejarão rever e muitos, bem cedo, o esquecerão.

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