Álvaro Domingues e a retórica da “Torne a pôr”

Apenas ostenta um comentário (inaproveitável em relação ao texto e suas temáticas). Se for esse o critério do valor mediático, a entrevista de Ana Sousa Dias a Álvaro Domingues é um fracasso ao lado das caudalosas peças despachadas pelos caluniadores profissionais para mastigação dos broncos. Mas se aplicarmos outros critérios, como os que se relacionem com valores culturais, intelectuais e políticos, então chegaremos a resultados diferentes. Que se faça a experiência de ganhar 15 minutos de vida a ler isto:

“A lei ainda diz que há uma divisão entre o rural e o urbano. É uma tontice”

O discurso político partidário, e até o presidencial, está esmagado pelos automatismos retóricos que reduzem os actos de fala à propaganda e à chicana para a enorme maioria dos agentes na enorme maioria do tempo. As mesmas figuras cultivam uma bipolaridade tomada não só como normal mas tacitamente normativa. Se estiverem na oposição, a retórica é catastrofista e belicista; se estiverem no Governo, a retórica é estadista e pragmática. Temos um Presidente da República que esteve anos em campanha eleitoral como estrela maior do comentário político sectário, cínico e intriguista. Chegado a Belém, transformou-se no pater familias da Nação em versão delico-doce para consumo popular, simulando ser um profeta da concórdia universal para melhor brincar aos palácios.

Neste panorama, há substantivas diferenças. A cultura do PSD e do CDS é retintamente caluniadora, também por razões antropológicas e cognitivas, e a cultura do PCP e do BE é invariavelmente demagógica, por razões ideológicas e históricas. Já o PS, como o maior e mais importante partido do regime, tem uma cultura paradoxal nascida da diversidade pensante interna e da vocação externa: governar ao centro. É nos socialistas que encontramos o melhor da tradição liberal onde a nossa Constituição e o próprio 25 de Abril encontram a matriz, as categorias e o sentido político. Esse legado perdeu-se na direita partidária há décadas, e nunca existiu na esquerda “pura e verdadeira”. A retórica dos socialistas, genericamente, é a mais cidadã, a mais salubre e a mais virtuosa para os interesses e necessidades da comunidade (daí ser o alvo preferido de todos os ataques vindos dos extremos e dos nichos). Porém, o PS não inovou o discurso político, mantendo-o preso a convenções propagandistas que cristalizam, apesar das pontes que formalmente exaltam, a separação de esferas entre a política profissional e a política como convívio de cidadãos interessados nas questões pátrias.

Nesta entrevista – onde a entrevistadora tem o especial mérito de deixar fluir o verbo ao entrevistado – encontramos um discurso sem qualquer novidade para estudantes, investigadores e eruditos no campo das Ciências Sociais. Ao mesmo tempo, aquilo de que se fala é essencialmente, teluricamente, político. Territórios, migrações, economia, categorias da abstracção sem a qual não se administra o Estado. E, misturado nos conceitos disciplinares, a vida como ela é lá onde só os habitantes dos lugares cuidam uns dos outros, esse concreto que respira e anda. É também uma forma retórica de falar sobre a realidade social, sobre um país. Mas é um tipo de retórica que nos dá o País com muito maior autenticidade e inteligência do que a retórica convencional no sistema político. O futuro da política irá, inevitavelmente, operar a substituição dos licenciados em Direito, Engenharia e Economia, com as suas técnicas tribunícias, por políticos com outras formações académicas e científicas muito mais eclécticas e vanguardistas. A retórica dos apaixonados pela curiosidade e pela ternura puxará a carroça da nossa preguiçosa vontade política.

2 thoughts on “Álvaro Domingues e a retórica da “Torne a pôr””

  1. Excelente entrevista.

    Mas desenganem-se os ingénuos, porque este género de pessoas, doces e sábias, nunca farão parte do mundo da Política, que é feito de gente desprovida do constituinte essencial dos ternos e inteligentes: a puta da consciência.

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