Adam Smith, esse socialista

Não sabemos quem representa o liberalismo em Portugal. Costumávamos saber quem representava a social-democracia, bastando começar a contar a partir de Sá Carneiro e Soares mais os respectivos sucessores, mas agora até essa tarefa está em risco. Isto porque apareceu Passos Coelho, presidente do Partido Social Democrata, o qual se definiu assim:

Sou um reformista e sou um liberal, não sou de direita nem sou de esquerda, acredito nas pessoas e na sua iniciativa e acredito que são as empresas que criam riqueza, que criam emprego e que criam valor, não é o Estado que cria riqueza e que cria valor.

Fonte

Ora, este magnífico liberal tem vindo a aplicar as suas magníficas ideias na condução do nosso destino. Dois anos depois da injecção do seu especial tipo de liberalismo pelas costas do incauto País, já podemos avaliar as consequências da sua fé nas pessoas e nas empresas. É algo verdadeiramente espectacular. Verdadeiramente. Espectacular.

Tais resultados levam-nos para a ingrata suspeita de Passos estar um bocadinho equivocado a respeito do que é ou pretende ser. Mas essa dificuldade não nos deve travar a curiosidade. Onde encontrar os liberais portugueses? Sem dúvida que existem abundantes registos a respeito de termos um Governo que liberalizou a asneira para níveis desconhecidos até da 1ª República e da dinastia de Bragança, mas esse critério não nos ajuda na investigação. Estará o liberalismo português personificado no percurso político-empresarial e obra académica do dr. Relvas? Eis uma pista interessante. Ou será o liberalismo lusitano algo que se observa em pleno no caso BPN, uma história de circulação livre de capitais como não se conhece outra por cá e que continua a deixar quase todos os seus intervenientes no gozo de uma mui merecida liberdade? Eis uma pista a explorar. Para mim, satisfaço a inquietação com a possibilidade de serem Carlos Abreu Amorim e Helena Matos as faces da liderança teórica e militante do liberalismo à moda da casa. Que nunca lhes falte o entusiasmo.

O liberalismo português tem consistido na repetição maníaca de um punhado de dogmas que até um taxista – ou, preferencialmente, um taxista – percebe, entende, compreende e está em condições óptimas para divulgar entre duas bandeiradas. São eles:

– Quem não é liberal é socialista.

– O socialismo é vício/doença/crime e consiste em criar e manter Estados.

– Todo o ser humano, quando nasce, tem direito à sua empresa ou aglomerado de empresas.

– O Estado Novo não prestava e o 25 de Abril também não presta; aliás, nada presta para nada.

– É possível salvarmo-nos: basta que a população aceite abdicar do emprego, da saúde, da educação, da segurança, dos transportes, do conforto, do lazer, da alimentação, da dignidade e da esperança.

Sendo este o retrato dos nossos bravos liberais, colhe perguntar se conhecem Adam Smith. Em 5 de Junho passado celebraram-se os 290 anos do seu nascimento, pelo que tal distância poderá estar na origem do seu esquecimento no território nacional. Mas o facto é que ele escreveu um livro que obteve alguma fama; o qual é demasiado chato e comprido para os hábitos de leitura contemporâneos, admite-se, mas que pode ser digerido aos bocadinhos como se fosse uma perna de presunto. É o caso da fatia que sirvo aos liberais portugueses, desejando-lhes bom proveito. Nela encontramos aquele que começou por ser professor de moral a descrever um mecanismo do capitalismo que não só não perdeu um nanosegundo de actualidade como é a explicação insuperável da crise que rebentou em 2008 na liberal América. O TPC consiste em desmontar as falácias que Adam Smith despeja do alto do seu abjecto socialismo. Mãos à obra!

Os empregadores de mão-de-obra representam a terceira categoria, a daqueles que vivem do lucro. É o capital investido em função do lucro que movimenta a maior parte do trabalho útil de cada sociedade. Os planos e projectos dos investidores de capital regulam e dirigem todas as operações mais importantes do trabalho, sendo que o lucro constitui o objectivo proposto e visado por todos esses planos e projectos. Entretanto, a taxa de lucro não aumenta com a prosperidade da sociedade e não diminui com o seu declínio — como acontece com a renda da terra e com os salários. Ao contrário, essa taxa de lucro é naturalmente baixa em países ricos e alta em países pobres, sendo a mais alta, invariavelmente, nos países que caminham mais rapidamente para a ruína. Por isso, o interesse dessa terceira categoria não tem a mesma vinculação com o interesse da sociedade como o das outras duas. Nessa categoria, os comerciantes e os donos de manufacturas são as duas classes de pessoas que comumente aplicam os maiores capitais, e que pela sua riqueza atraem a si a maior parcela da consideração pública. Uma vez que durante toda a sua vida estão engajados em planos e projectos, muitas vezes têm mais agudeza de entendimento do que a maioria dos senhores do campo. Já que, porém, suas ideias giram mais em torno do interesse de seu próprio ramo específico de negócios do que em torno do interesse específico da sociedade, seu julgamento mesmo quando emitido com a maior imparcialidade (o que não tem acontecido em todas as ocasiões) deve ser considerado muito mais dependente em relação ao primeiro daqueles dois objectos do que ao do último. Sua superioridade em relação aos senhores do campo não está tanto no conhecimento que têm do interesse público, mas antes no facto de conhecerem melhor seu interesse próprio do que os homens do campo conhecem o seu. É em razão deste melhor conhecimento que possuem de seus próprios interesses que muitas vezes têm feito imposições à generosidade do proprietário rural, persuadindo-o a abrir mão tanto de seu próprio interesse quanto do interesse do público, partindo de uma convicção muito simples mas muito legítima de que o interesse público é o deles e não o do proprietário de terras. Ora, o interesse dos negociantes, em qualquer ramo específico de comércio ou de manufactura, sempre difere sob algum aspecto do interesse público, e até se lhe opõe. O interesse dos empresários é sempre ampliar o mercado e limitar a concorrência. Ampliar o mercado muitas vezes pode ser benéfico para o interesse público, mas limitar a concorrência sempre contraria necessariamente ao interesse público, e só pode servir para possibilitar aos negociantes, pelo aumento de seus lucros acima do que seria natural, cobrar, em seu próprio benefício, uma taxa absurda dos demais concidadãos. A proposta de qualquer nova lei ou regulamento comercial que provenha de sua categoria sempre deve ser examinada com grande precaução e cautela, não devendo nunca ser adoptada antes de ser longa e cuidadosamente estudada, não somente com a atenção mais escrupulosa, mas também com a maior desconfiança. É proposta que advém de uma categoria de pessoas cujo interesse jamais coincide exactamente com o do povo, as quais geralmente têm interesse em enganá-lo e mesmo oprimi-lo e que, consequentemente, têm em muitas oportunidades tanto iludido quanto oprimido esse povo.

Adam Smith, A RIQUEZA DAS NAÇÕES, Volume I, Capítulo 11 (tradução de Luiz João Baraúna)

4 thoughts on “Adam Smith, esse socialista”

  1. Sá Carneiro, um social democrata?
    Parece-me que era um homem de direita moderada, um liberal cuidadoso.
    Também assim pareceu aos dirigentes da ASDI que em 1979, com Sousa Franco e Sérvulo Correia, romperam com o PPD e com o seu líder, precisamente por desvio ao programa social-democrata. Acabaram no PS, claro.
    Para estar à esquerda de Passos não é preciso se social-democrata, basta ser de direita .
    Diz-se que até o CDS se sente pouco confortável por ter de desempenhar, dentro do governo,um papel de esquerda.

  2. “A proposta de qualquer nova lei ou regulamento comercial que provenha de sua categoria sempre deve ser examinada com grande precaução e cautela, não devendo nunca ser adoptada antes de ser longa e cuidadosamente estudada, não somente com a atenção mais escrupulosa, mas também com a maior desconfiança.”

    E do Smith, pelo menos, temos sido bons alunos no que toca ao estudo longo e cuidadoso de novas leis comerciais. O Código Comercial Português é o único diploma ainda em vigor, qual Constituição qual caraças, que tem mais de 100 anos, foi aprovado por uma Carta de Lei e começa assim:

    Dom Luís, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves. Fazem saber a todos os nossos súbditos, que as cortes gerais decretaram e nós queremos a lei seguinte:

    Artigo 1.º

    É aprovado o Código Comercial que faz parte da presente lei.

    Artigo 2.º

    As disposições do dito Código consideram-se promulgadas e começarão a ter vigor em todo o continente do reino e ilhas adjacentes no dia 1º de Janeiro de 1889.

    Artigo 3.º

    Desde que principiar a ter vigor o Código, ficará revogada toda a legislação anterior que recair nas matérias que o mesmo Código abrange, e em geral toda a legislação comercial anterior.

    § 1º Fica salva a legislação do processo não contrária às disposições do novo Código, bem como a que regula o comércio entre os portos de Portugal, ilhas e domínios portugueses em qualquer parte do mundo, quer por exportação, quer por importação, e reciprocamente.
    § 2º O Governo poderá suspender temporariamente à execução da legislação ressalvada na parte final do parágrafo anterior, com respeito à Ilha da Madeira, dando conta às cortes do uso que fizer desta autorização.

    Artigo 4.º

    Toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no Código Comercial será considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de substituição de artigos alterados, quer pela supressão de artigos inúteis, ou pelo adicionamento dos que forem necessários.

    Artigo 5.º

    Uma comissão de jurisconsultos e comerciantes será encarregada pelo Governo, durante os primeiros cinco anos da execução do Código Comercial, de receber todas as representações, relatórios dos tribunais, e quaisquer observações relativamente ao melhoramento do mesmo Código, e à solução das dificuldades que possam dar-se na execução dele.

    § único. Esta comissão fará anualmente um relatório ao Governo e proporá quaisquer providências que para o indicado fim lhe pareçam necessárias ou convenientes.

    Artigo 6.º

    O Governo fará os regulamentos necessários para a execução da presente lei.

    Artigo 7.º

    É o Governo autorizado a tornar extensivo o Código Comercial às províncias ultramarinas, ouvidas as estações competentes, e fazendo-lhe as modificações que as circunstâncias especiais das mesmas províncias exigirem.

    Artigo 8.º

    Fica o Governo autorizado a, ouvidos os relatos das comissões parlamentares especiais que deram parecer sobre o Código do Comércio, rever o mesmo Código no intuito de, quando se mostre necessário, corrigir quaisquer erros de redacção, coordenar a numeração dos respectivos artigos, e eliminar as referências a disposições suprimidas a fim de poder proceder à publicação oficial do mesmo Código.

    Artigo 9.º

    Fica revogada a legislação contrária a esta.

    Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e guardem e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.

    Os ministros e secretários de Estado, dos negócios eclesiásticos e de justiça, da marinha e ultramar, dos negócios estrangeiros, e das obras públicas, comércio e indústria a façam imprimir, publicar e correr.

    Dada no paço da Ajuda, aos 28 de Junho de 1888. – EL-REI, com rubrica e guarda. – Francisco António da Veiga Beirão – Henrique de Macedo -Henrique de Barros Gomes – Emídio Júlio Navarro.

    Carta de lei pela qual Vossa Majestade, tendo sancionado o Decreto das cortes gerais de 19 de Junho corrente, que aprova o novo Código Comercial, cujas disposições se consideram promulgadas e começarão a ter vigor em todo o continente do reino e ilhas adjacentes, no dia 1 de Janeiro de 1889, e consigna diversas prescrições correlativas do mesmo Código, manda cumprir e guardar o referido Decreto como nele se contém, pela forma supra declarada.

    Para Vossa Majestade ver. – Caetano Ribeiro Viana a fez.

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