Seremos todos vítimas das aldrabices e dos excessos dos gregos? Em 2009/2010, e na sequência das falcatruas financeiras americanas, a Grécia, membro do euro, revelou-se sem capacidade para se financiar nos mercados. A partir do pedido de resgate, ficou-se a saber muito do modo de funcionamento daquela sociedade, dos privilégios, da corrupção, dos compadrios, das ligações perigosas e também da conivência das autoridades europeias. Mas, ao mesmo tempo, uma certa Europa adquiriu ali uma série de notas de música para os seus ouvidos que iriam até hoje alimentar melodiosamente o seu argumentário estigmatizante dos povos do sul. Porque tínhamos sol, passámos a ser todos gregos.
Na realidade, cada país é um caso. No eclodir da crise, a Espanha tinha uma dívida mais baixa do que a Alemanha. A própria dívida portuguesa estava longe de insustentável. Só para se ter uma ideia do absurdo, a dívida da Bélgica é, neste momento, um pouco superior à nossa em 2010 e, no entanto, financiam-se a juros quase iguais aos da Alemanha. E se eles têm despesas com a máquina do Estado! O país está dividido em quatro regiões mais o nível federal. Segundo a nova lógica austeritária, deviam extinguir-se. A dívida de países como Portugal tornou-se insustentável com a especulação em torno das yields e quando o fecho de empresas e o número crescente de desempregados começaram a exercer uma pressão insuportável sobre os fundos de apoio social. A quebra das receitas fez o resto. Uma ressalva, aqui merecida, para fazer alguma justiça: Merkel e o BCE negociaram em 2011 com Sócrates uma espécie de pacto anti-queda que nos manteria à tona de água, pois não havia interesse em deixar cair mais um Estado. Sabemos quem entornou irremediavelmente o caldo. O desastre está à vista, mas a jogada foi de molde a poderem-nos assemelhar aos gregos, não duvido.
Ouvir Mario Draghi, que às vezes parece ser clarividente e decidido, e desejoso de alguma independência em relação à Alemanha e ao seu banco central, dizer que “muitos governos ainda não perceberam que perderam soberania nacional há muito tempo. Porque, no passado, permitiram que a sua dívida se amontoasse, agora precisam da boa vontade dos mercados financeiros” é um bocado desesperante. Mas que dívida? Mas que governos? Está a falar de quem? Da Irlanda? Da Espanha ? De Portugal? Se é a Grécia que tem em mente, porque não o diz? O que faria qualquer governo, que estivesse a esforçar-se genuinamente por conter despesas, perante o fecho sucessivo de empresas, o aumento do desemprego e a quebra drástica de receitas? Perante o aumento estratosférico dos juros sem mecanismos de barreira? Decretava o fim do país e punha o território à venda? Com “inquilinos” ou esperava que saíssem? E quem tinha comprado casa e feito planos com base num salário que entretanto acabou? E quem contava com crédito da banca para desenvolver o seu negócio? E um Estado que tivesse cumprido as instruções de Bruxelas de estimular a economia, confiando em determinado valor de juros? Começa a não haver paciência. Este método acusatório não resolve nada. Se às vezes Mario Draghi dá no cravo, outras, como esta, dá na ferradura.
Depois diz que “as taxas de juro na Alemanha estão num nível baixo, nalguns prazos negativas, não por causa das nossas [deles] medidas, mas porque a Alemanha está a receber fluxos de outras partes da área do euro, que aí se refugiam”. Grande novidade! Já toda a gente o constatou. Está mesmo aí a causa principal da nossa tragédia e até do ódio crescente aos alemães. Mas e então? Não tira daqui a mais pequena conclusão? Não há nada a corrigir, a sugerir, a decidir? Preconceitos a rever?
Mais adiante diz que só intervém na compra de dívida soberana quando os programas de ajustamento se revelarem um sucesso. Aqui dá outra vez na ferradura. Como não há nem haverá sucesso dentro das amarras de uma moeda sem Banco Central normal, o BCE não faz nada, como quer a Alemanha. A sua apregoada intenção de intervir não passa de um lindo discurso. Para empatar.
Enfim, se lerem no “Der Spiegel” tudo que o homem diz (embora haja que ter em conta que as perguntas visam esclarecer os receios dos alemães), ficarão com uma noção das contradições em que a UE está cada vez mais enredada. Hoje mesmo disseram, o BCE e a Alemanha, que não aceitam novo perdão de dívida à Grécia. Deduz-se que não aceitam perdão de dívida a ninguém. Mas também não se decidem a convidar os gregos, e outros, a sair da zona euro. Estamos a chegar a um ponto em que apetece mesmo mandá-los bugiar. E que levem consigo a integração europeia, a supervisão bancária (só para quando Merkel tiver ganhado as eleições de setembro, atenção!), a união económica e orçamental, o controlador de orçamentos mais o seu poder de veto. Já não há pachorra. Queremos o escudo. Deem-me a minha moeda de volta.
Nada seremos em termos europeus se continuarmos a tentar que a crise seja deste ou daquele país. Os responsáveis europeus, e não só, sabem bem que esta crise é um verdadeiro ataque a essa entidade, infelizmente cada vez mais abastracta, que é a União Europeia. É um dado adquirido, enfim sempre o foi, que a suposta crise dos PIIGS só o foi porque ficou demonstrado logo no início dela, que esses países foram escolhidos pelos mercados, para iniciar o seu ataque à moeda europeia e por arrasto à própria União Europeia. A resposta dos líderes europeus foi a esperada pelas agências financeiras de todo o mundo, mostraram a verdadeira desunião que é esta Europa. A ninguém interessa, num mundo tão globalizado como é hoje, a presença de uma Europa forte e dominante. Se no passado recente tinhamos um eixo EUA/UE que dominava politicamente o mundo, no presente facilmente se vê que os EUA estão dispostos a deixar cair a UE e controlar o gigante russo pelo lado da Ásia. Quando se pedia uma Europa forte e unida, a resposta que tivemos foi o lento desmembrar de uma certa ideia de união que trazemos desde o tratado de Roma. Pouco falta para nos considerarem a nós, a UE, um mero dano colateral. Show me the money, just show me the money.
Insistir em que os gregos são uns aldrabões é fazer o jogo dos alemães, holandeses, checos e finlandeses de que os portugueses são uns preguiçosos.
dizer que os gregos são aldrabões é o mesmo que dizer que os alemães são nazis.
Com a diferença, André, que os alemães têm à sua conta duas destruições da Europa e se encaminham para uma terceira.
Para Currículo Vitae sempre vão muito melhor que os gregos. E depois genocídio é mais grave que aldrabrar umas contas, coisa, não por acaso, levada a cabo pelo partido sentado no PE ao lado da CDU da Angela, sem que a população desse por isso. Já o holocausto…
Toda a evolução política recente da União Europeia dá razão às descrições que dela fazem, por exemplo, Nigel Farage ou Vaclav Klaus. Não conhecemos políticos capazes de lhes dar réplica. É uma instituição não-democratica, hiperburocrática, onde poucos objectivos são mais claros do que o proteccionismo à indústria alemã e à agricultura francesa. Tem graça que no meio desta borrasca em que se recusam a emprestar-nos guarda-chuva e têm o desplante de afirmar que só o emprestam quando parar de chover, ainda há por aí uns lunáticos a pensar que é com mais integração europeia que puxamos a lágrima aos nossos parceiros.
Não é. Eles comovem-se como nós. Com dinheiro no próprio bolso. Estamos entregues a nós próprios. Ter pensado o contrário foi perda de tempo.
Ó Tiago Cabral,
o que é isso do ataque à moeda europeia? Acha que ainda está pouco valorizada?
De acordo, Penélope, mas olha que o caminho mais rapido passa por não falar em abstrações como “A Europa”, “A Grécia”, “A Alemanha” etc.
Ha (nomeadamente na Alemanha, mas não so) cidadãos que vivem muito bem com uma devisa forte e que estão completamente dispostos a não ver que isso tem contrapartidas.
Também ha (na Alemanha, e não so) cidadãos que percebem perfeitamente como distinguir o essencial e o instrumental. Estes ultimos estão com dificuldades para fazer ouvir a sua voz. Dificuldades acrescidas porque o seu silêncio constitui uma almofada suplementar para os primeiros.
Boas
A Grécia é um caso complicado, de um país com uma soberania relativamente fraca. A causa é simples: o país sofreu a ocupação dos turcos otomanos desde a queda de Constantinopla (1453) até à declaração da independência (1821). Os otomanos governaram o país com mão de ferro, com uma estrutura económica feudal (formada pelos prokritoi) no topo de uma economia agrícola de subsistência.
A população cristã era fortemente taxada e, para além disso, exigiam-lhe o pagamento de um “tributo de crianças”: um rapaz em cada cinco era levado pelos otomanos; os rapazes eram treinados como militares para depois serem usados contra os próprios gregos, não raras vezes em massacres contra a população civil. Os prokritoi funcionavam essencialmente como burocratas e cobradores de impostos, e adquiriram uma reputação muito negativa, fruto das práticas de corrupção e de nepotismo a que se dedicavam. Os gregos com melhor situação económica tentavam, por todas as formas, subornar os prokritoi por forma a fugirem ao pagamento dos impostos e ao “tributo de crianças”.
Depois da independência, a Grécia permaneceu instável e continuamente disputada pelos vários impérios europeus: o britânico, o russo, o austro-húngaro, o alemão e até a Itália. Como se viu, a UE também pouco ou nada ajudou.
Cara Penélope,
a Europa jaz moribunda assistida por uma “clique” de burocratas mais interessada em organizar e gozar a sua vidinha (se possível em muito grande estilo) do que tornar possível o sonho de Schuman, Monet e alguns mais.
Solidariedade era uma palavra que na Declaraçao Schuman aparecia referida logo de início:
-A Europa não se fará de uma só vez, nem numa construção de conjunto: far-se-à por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto.
Solidariedade é o que menos se vê nesta nova Europa em que se aponta a dedo os erros dos pequenos e se perdoam os cometidos pelos poderosos.
Se a Europa não levar um abanão sério, dificilmente haverá mudanças a curto prazo,
A hora das decisões está aí, alguns já deram os primeiros passos, outros ensaiam movimentos de desgaste, infelizmente, nós temos um governo fraco, uma oposição anémica e um povo adormecido!
Desconfio que não acordaremos a tempo…
A União Europeia está morta e bem morta, e só não foi ainda enterrada porque aos gatos gordos de Bruxelas interessa adiar o mais possível o fim das benesses e mordomias que inevitavelmente chegará com o desaparecimento dos inúmeros poleiros em que desafinam com pesporrência, apenas igualada pela incompetência de rafeiros com certificados de pedigree da candonga, pateticamente ansiosos por agradar ao dono.
A União Europeia está morta e bem morta, por mais que os gatos gordos de Bruxelas finjam, sem pingo de vergonha, que dão o litro em respiração boca a boca e outras técnicas de reanimação, quando na realidade o que fazem é arrancar sub-repticiamente, à dentada, os poucos dentes de ouro que o cadáver ainda tem na boca e até as amálgamas de reparações antigas, para refundição e venda a um ferro-velho qualquer.
A União Europeia está morta e bem morta, e só será enterrada de vez quando o fedor e as pestilências provocadas pela putrefacção tiverem dizimado metade da população do continente, altura em que os gatos gordos de Bruxelas já estarão a bom recato nas bem protegidas mansões que entretanto adquiriram com o espólio que os engordou e cujos restos desbarataram sem pudor.
A União Europeia está morta e bem morta. Habituemo-nos.
nm; andré: É um dado objetivo que as contas apresentadas pelos gregos para entrarem no euro foram aldrabadas muito para além da média. A classe política também era pactuante com a corrupção muito para além da média. É um dado objetivo que os armadores não pagavam impostos. É um dado objetivo que a máquina fiscal não funcionava. A palavra Estado, como bem disse um grego em entrevista recente publicada no Público, não é de origem grega e isso notava-se até há bem pouco tempo.
Há pessoas excelentes, sérias, trabalhadoras, solidárias, empenhadas, criativas, talentosas na Grécia? Aos milhares! E têm orgulho no seu país. Mas alguns hábitos antigos e especificidades locais de quem calhou nascer naquela parte do Mediterrâneo tão próxima da Turquia, dos Balcãs e da Ásia Menor facilitaram a criação de estereótipos rapidamente explorados.
Boa, Camacho!
“É um dado objetivo que as contas apresentadas pelos gregos para entrarem no euro foram aldrabadas muito para além da média. A classe política também era pactuante com a corrupção muito para além da média. É um dado objetivo que os armadores não pagavam impostos. É um dado objetivo que a máquina fiscal não funcionava”
Nada disso são afirmações objectivas, Penélope. Depois das coisas acontecerem, é fácil construir romances de alívio. Em que país as contas não são aldrabadas, não há corrupção e não há fuga a impostos? Podemos começar pela Alemanha que foi logo a primeira a violar as regras orçamentais sem se ralar nada com isso.