Farsa em alguns atos – eleitores alemães a quanto obrigais

A ida de Portugal (como da Irlanda) aos mercados era condição indispensável para o BCE poder intervir na compra de dívida soberana deste e de outros países da zona euro sujeitos a um programa de ajustamento. Assim foi decidido há menos de um ano. Todos nos lembramos e nos indignámos, na altura, quando Mario Draghi, enquanto anunciava ir salvar o euro ao admitir “Outright Monetary Transactions” em caso de dificuldades de financiamento de países da zona euro, impôs a referida condição. Ida aos mercados? Tal possibilidade estar-nos-ia fatalmente arredada, continuando nós no euro, por muitos, infindos anos, tornando a decisão do BCE inútil. Era, portanto, uma benesse sem possibilidades de concretização em nossas vidas. Na altura, percebemos também, ainda indignados, que se pretendia tranquilizar os eleitores alemães, garantindo-lhes que, apesar dos propósitos do BCE (mal vistos pelos alemães, dado o chamado “moral hazard”), não haveria rédea solta para os pecadores, ou seja, que a penitência era para cumprir e só depois, expurgados dos pecados, os sacrossantos mercados os aceitariam no seu regaço como filhos pródigos, podendo então a restante família dispensar-lhes as merecidas carícias. Mas a ida aos mercados faria qualquer um de nós rir, ou chorar, dada a evidente hipocrisia.

Essa impossibilidade tinha, no entanto, detalhes. Nem o propósito anunciado era tão oco, nem visava apenas e tão só agradar aos alemães. Os mistérios do Altíssimo são insondáveis. Mario Draghi, ao anunciar a nova postura, teria já delineado o estratagema (que sim, é-nos benéfico). O próprio BCE trataria de fabricar (uma vez que dinheiro não pode) um processo de ida aos mercados para os países como o nosso e, nessa base, cumprida a declarada condição, atuaria, primeiro indiretamente, no mercado da dívida soberana. Euro salvo, alemães contentes, financiamento mais barato para os países. Genial, não parece? E um deal que beneficia os bancos, como não podia deixar de ser e como se viu. Não tenho mesmo dúvidas de que as próximas emissões continuarão a correr bem ou melhor. O país é que nem por isso.

O que é que todas estas manobras têm a ver com a situação económica e financeira do país? Absolutamente nada. Todos os indicadores económicos e sociais se agravaram desde a nossa entrada no programa. A dívida não para de aumentar. A medida, como já se viu, uma bem concebida encenação(a ver vamos), destina-se a salvar o euro, evitando que alguns Estados abandonem a zona, com as consequências (im)previsíveis que daí adviriam para todos os outros. Mas, evidentemente, não a salvar as economias em crise nem infelizmente a pôr a austeridade em causa. Porém, todavia, contudo, convém não esquecer que um esquema semelhante (mas não igual nos instrumentos, e implicando muito menos austeridade) tinha sido já delineado para o PEC IV (sim, como não falar nele?) e… torpedeado pela atual maioria. Ganhámos, portanto, o quê exatamente, nestes dois anos?

Fomos aos mercados ontem, em condições artificiais e com a mãozinha de amparo do Banco Central. A mãozinha veio para ficar. Veio porém tarde. Podíamos ter evitado esta dolorosa e cruel caminhada para o abismo entretanto seguida? Claro que podíamos. Só que o Relvas não teria tido oportunidade de fazer os negócios da sua vida, nem o Gaspar de experimentar aquele modelo que tanto o obcecava, nem o Catroga de passar uma terceira idade em beleza. Em dois anos destruímos a economia, recuámos décadas, expulsámos milhares de portugueses do país, vendemos empresas públicas lucrativas e bem geridas como a ANA, mandámos vir os chineses. Agora vamos aos mercados e o Governo fica todo contente. Já podíamos ter ido há mais tempo! Aliás, podíamos nunca ter deixado de ir. Quanto aos alemães – é facílimo vender-lhes a ideia de que, se já vamos aos mercados, é porque nos estamos a portar muito bem. Tudo isto dá um excelente enredo para a obra que vossas excelências quiserem. Quem não se diverte muito são os figurantes anónimos.

8 thoughts on “Farsa em alguns atos – eleitores alemães a quanto obrigais”

  1. Isto aflige-me! Só cosmética?!!! E o valor do défice tb é “falso”?
    Se isto é mesmo assim (e eu não percebo nada disto) como responsabilizar esta gente??
    Não há esperança?
    Ai!

  2. a percentagem do deficit é actualmente de 123%.depois um esforço colossal dos portugueses, o citado defict agravou-se em mais de 30%. o ps no poder, recupera durante 4 anos o pais ( mesmo com scuts)e volvidos dois anos ,viu todo este esforço destruido por uma crise sem precedentes nas nossas vidas e de nivel internacional. o resto é o que se viu.bancos falidos, empresas falidas e milhares de trabalhadores no desemprego.a banca como sempre, foge das suas responsabilidades pela voz de um dos banqueiros com palavras imorais como : ai aguentam, aguentam .Nota: o abandono no algarve de empreendimentos de milhares de habitaçoes e varios hoteis diz-nos que socrates tambem andou por ali.

  3. A verdade, entretanto confessada por Paulo Rangel — que, pressentindo os perigos políticos desta diatribe, aconselhou cautela ao seu partido — é que os portugueses NÃO IRÃO VER UM ÚNICO TOSTÃO A MAIS no seu bolso, neste ano de 2013, em consequência deste grandioso e fenomenal sucesso…

    Entretanto, lembro que é suposto suportarmos a contrapartida acordada por Gaspar: o CORTE DE 4 MIL MILHÕES NOS SERVIÇOS PÚBLICOS. Desta vez, parece que Vítor Gaspar seguiu o bom exemplo de Passos Coelho: o de mentir mais ainda, quando o eleitorado já desconfia abertamente da sua infidelidade. Mas esse palavreado, que tão bem distrai os inebriados pela paixão, não resulta com os traídos…

  4. Penelope

    Amiga, ao ler o que publicaste, fiquei com a certeza que tu acabaste de chegar, directamente de Marte e aterraste neste rectangulo à beira-mar plantado. Para não pensares que lá está novamente aquele chato do sulista, elitista e liberal a vociferar, aconselho-te a ler o artigo do Nicolau Santos, intitulado de ” Pra nao dizer que nao falei de flores”, da separata económica do Expresso de hoje.
    Nao me vais dizer, depois, que o Nicolau Santos, grande seguidor das teses macroeconomicas da ONU para os países do Sul da Europa, defendidas magistralmente pelo seu representante em Portugal, Artur Baptista da Silva e, ao que parece, quadro do PS, seja um grande amigalhaço do Pedro Passos.
    Só uma pequena observação: Imaginem se o Tózé tivesse lembrado de convidar o Baptista da Silva para a oficina das ideias.

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