Extrema-esquerda e extrema-direita: onde está o perigo?

A propósito das eleições em Espanha, assistimos à direita em peso a equiparar partidos claramente nazis, fascistas, nacionalistas, xenófobos e socialmente retrógrados (como o VOX) aos partidos da extrema-esquerda (como o Podemos e os nossos dois partidos marxistas). (O Tavares mau, no Público, resolve considerá-los, a ambos os extremos, inofensivos, uns escapes, coisa benéfica até, mas isso, já sabemos, é para branquear e normalizar a extrema-direita, na linha do que fez o Nuno Melo.) Terão razão? Vou escandalizar alguns dizendo que sim e não.

 

Há semelhanças entre os regimes que ambos os extremistas acabariam por impor, se chegassem ao poder e vivêssemos no século passado. Destaco, entre elas, o fim da democracia e da liberdade de expressão. Começando pela ala esquerda, a maioria dos partidos que actualmente na Europa se podem apelidar de extrema-esquerda (e já não são muitos) tem como princípios políticos a estatização da economia e da propriedade, a colectivização, como no comunismo, a rejeição da iniciativa privada, do lucro, enfim, do capitalismo e, no final, e mais importante, da liberdade individual, e usufruem da liberdade democrática que vigora nos países “capitalistas” para apresentarem uma agenda em tudo baseada nesses princípios. É por causa desses princípios alegadamente justos (evidentemente que, quanto à falta de liberdade, uma consequência inevitável, são omissos), cuja aplicação prática já toda a gente viu como termina, que assistimos às reivindicações permanentes e imutáveis do PCP – mais funcionários públicos, sempre mais, mais serviços públicos, mais empresas públicas, enfim, mais Estado, Estado por todo o lado, como em Cuba, onde até o pessoal dos hotéis são funcionários públicos, e contra o capital, sobretudo o grande capital (e o pequeno? O que lhe fariam?), e a iniciativa privada. O Bloco não é diferente – nenhum poder para os proprietários e senhorios, por exemplo, como se a propriedade privada não existisse, ou não devesse existir, uma simpatia clara pelas ocupações, punição (para já, fiscal) dos ricos e de quem ousa querer ganhar dinheiro, enfim, disparates moralistas fundamentalmente religiosos vindos de ateus. Mas o modelo de sociedade de base é o modelo comunista, ironicamente já quase extinto da superfície da Terra.

Por tudo isto, considero serem estes partidos principalmente aberrações, embora reconheça que, acantonados nos sindicatos, possam ainda ter um papel importante na organização das lutas laborais, que sempre existirão, dado o desequilíbrio de forças. Assim, considerar estes partidos como uma ameaça real aos regimes democráticos parece-me totalmente exagerado (e nisso o Tavares lá de cima tem razão). Existem já poucos partidos como estes (na maioria dos casos, enveredaram pelo ambientalismo; noutros casos, uma vez no poder, fazem como o Tsipras – apertam a mão à realidade, mandam o ideário às urtigas) e não se vê que tenham grande futuro, atendendo ao pouco entusiasmo que suscitam nas populações. Os apoios internacionais a estas causas também já escasseiam – a China, um colosso populacional sem instintos bélicos e claramente um país capitalista estatal onde a riqueza privada não provoca ânsias em quem manda desde que não perturbe o sistema vigente e os controlos estabelecidos, não os apoia (penso eu), e a Rússia também já nada tem a dar para o peditório do comunismo. Aliás, aquilo a que assistimos hoje em dia é a uma mudança de aposta: o seu líder, Putin, um ex-polícia convencido de que é um czar, apoia neste momento, em parceria com Steve Bannon, o americano, tudo o que sejam movimentos de extrema-direita, que a crise dos refugiados muçulmanos e africanos fez renascer, ou ainda todo e qualquer movimento que tenha hipóteses de desestabilizar a Europa e o mundo ocidental em geral (revanchismo, inveja), o que não é o caso dos movimentos de extrema-esquerda, cujas fontes de combustível parece terem secado. Digo “parece”.

 

É por isto que a extrema-direita representa na Europa um perigo muito maior. Por cá, nem o PCP nem o Bloco jamais ousarão clamar contra a vinda de refugiados, que, aliás, vêm em número diminuto, se comparado com outros países europeus, ou terão sequer alguma hipótese de governarem com maioria. No entanto, como diria Monsieur de La Palice, cada país europeu tem problemas de índole diferenciada. Na Hungria, governa um ditador que despreza o Estado de direito e não aceita nem um refugiado. Na Polónia, a tendência para a ditadura é patente. Na Áustria, foi eleito um presidente de extrema-direita, avesso a críticas e perguntas incómodas. Na Itália, a chegada, a instalação e o trânsito de milhares de refugiados e migrantes, assim como a crise económica, deram pasto aos populistas do M5E e aos fascistas da Liga do Norte. Estão agora no poder. Evidentemente que não fazem todos os estragos que gostariam de fazer porque ainda estão na União Europeia e precisam dela justamente para fazer face ao problema dos migrantes e porque se afundariam de vez caso abandonassem o euro. Mas lá estão a cumprir o seu papel, com o apoio de Putin para o que der e vier, e para o que já deu. Em França, a populista e protofascista Le Pen, também com o apoio de Putin, com quem se aconselha, tem conseguido votações assustadoras. Neste momento, Macron à parte, existem poucas alternativas à senhora, e até Jean Luc Mélenchon, um comunista, se alia a ela sem quaisquer pruridos. As votações da Frente Nacional e a fragilidade dos partidos tradicionais e europeístas franceses fazem temer que o extremismo de conveniência e conluio russos se instale no coração da Europa, dinamitando o projecto europeu que, apesar dos seus impasses e guinadas, tem sido, há várias décadas, garante de estabilidade, prosperidade e paz (ou não houvesse milhões a quererem vir para cá). No Reino Unido, não digo que o Nigel Farage, esse formidável demagogo, queira impor um regime ditatorial no seu país caso chegue ao poder (um regime xenófobo já com certeza), mas, para já, está a conseguir reunir os despojos do partido conservador e, caso o seu novo partido, o Brexit, consiga mesmo tirar o Reino Unido da União Europeia sem acordo, terá o privilégio de fazer ressurgir o conflito irlandês –  um feito para o qual talvez já tenha dificuldade em arranjar um discurso vitorioso e cativante.

 

Em suma, não é a extrema-esquerda que representa um perigo para a Europa, uma vez que dificilmente chegará ao poder dado o desvio das grandes questões actuais para a percepcionada invasão de migrantes e refugiados (a extrema-esquerda recebê-los-ia a todos) e a degradação da classe média. Já os populistas e demagogos de direita podem não ser apenas uma válvula de escape e muito menos se pode dizer que são benéficos. Em Espanha, onde o problema mais quente é a Catalunha e as autonomias, o VOX provou efectivamente ser mais vozes do que nozes – obteve apenas 10% dos votos. Mas poderá não ser assim em França com a Frente Nacional ou, dentro em breve, na Alemanha.

A fidelidade à direita e a tudo o que tenha “direita” no nome não devia toldar a visão dos, lá está, direitolas. Um termo até carinhoso nos dias que correm. A realidade é que não temos, na Europa, com excepção da Grécia (e olhem o aspecto) qualquer partido dito de extrema-esquerda a ameaçar governar ou a governar.

3 thoughts on “Extrema-esquerda e extrema-direita: onde está o perigo?”

  1. o perigo está em quem faz as pessoas votarem na extrema direita e na extrema esquerda. se a governação existente fosse efectiva/eficaz , com bons resultados na vida das pessoas que trabalham e sustentam isto tudo, nada disto acontecia. a legitimidade do sistema não basta, é preciso efectividade, eficácia. já dizia Poulantzas, não é novidade.

  2. mais ou menos isto, bem explicadinho até no resumo “Título: Governação eficaz e apoio à democracia
    Autor: Magalhães, Pedro

    http://repositorio.ul.pt/handle/10451/22838

    a nodo de amostra :

    “Seymour Martin Lipset e Robert Dahl, defendiam que a legitimidade dos regimes políticos e as crenças básicas sobre a autoridade podem ser afectadas pela «eficácia» dos governos, entendida como «o desempenho real de um sistema político, na medida em que satisfaz as funções básicas governativas, tal como definidas pelas expectativas da maioria dos membros de uma sociedade» (Lipset 1959, 86), ou, simplificando, como a «capacidade [do governo] em lidar eficazmente com problemas palpáveis» (Dahl 1971, 147). Este capítulo reconhece esta segunda tradição e testa empiricamente hipóteses que advêm da mesma. Especificamente, testa a hipótese de que, independentemente da forma como os factores sociais e económicos afectam as atitudes e crenças fundamentais dos cidadãos sobre as instituiçõ…”

  3. Mas que grande confusão !!!
    E quando a confusão é muita o cidadão desconfia.
    Dizia Ruthford,prémio Nobel : só estamos bem dentro de um assunto quando,em dois minutos conseguimos explica-lo bem à empregada do bar. So…

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