Como esquecer?
Anos depois, aquele minuto veio a receber a trivial honra de marcar um escaninho singular na memória de quase todos. Sempre o mesmo ponto de interrogação: “onde estavas tu quando viste pela primeira vez?” A pergunta com raiva a preencher o local onde antes poderia ter sobrevivido um résto de curiosidade educada. Sim; como esquecer?
Facto: o Incêndio original eclodiu perto de uma pequena cidade da Ligúria, Pietrabruna. Depois, claro que fomos assolados por memórias dúbias, revelações contrafeitas, juramentos de maravilhas sem prova. Mas soubemos logo, sabemo-lo agora: as imagens de Pietrabruna tinham algo de único, uma espécie de vigor sem limites. E como não sentir a presença oculta entre as linhas de varrimento, o suave fantasma que assustava e fazia tremeluzir de esforço o fósforo cansado de milhões de ecrãs? Demasiado sinal para tão pouco ruído.
Assim foi o testemunho desfocado dos primeiros segundos de espanto sem remissão. Da queda de um desconhecido tão frio e inesperado sobre todos nós.
Sim; todos vimos vezes sem conta o fragmento de reportagem da RAI, quando o helicóptero com a câmara se eleva sobre os novelos amarelos de fumo que parecem também arder por dentro. Quando o jornalista se queda engasgado por tremendos segundos. Ali, na encosta onde as labaredas avançavam pelas encostas de pinhal como uma linha fronteiriça a marcar domínios de um monarca belicoso; como poderia surgir do lume algo que não mais destruição e desperdício?
Então, nasceu face aos olhos do mundo a clara mensagem que não podia estar ali. O Primeiro Vocábulo. A linha das chamas a moldar-se à caligrafia precisa de uma só palavra, tremenda de centenas de metros de fogo incontrolável. Parada, enorme, impossível, brilhando alegre contra o pano de fundo de uma noite sem Lua, contra todas as leis em que delimitámos a Natureza.
“Rimpianto”.
Rimpianto.
Arrependimento.
A palavra italiana que o fogo então soletrou nos olhos do mundo. E que até hoje permanece tatuada na sua memória. Como poderíamos alguma vez esquecer?
Poucos então acreditaram que aquilo tivesse sido mais do que uma farsa. Mas o mistério tem sempre caminhos para ganhar pé, espelhos onde adensar a sua silhueta. Nos dias seguintes, ninguém encontrou qualquer rasto dos combustíveis indispensáveis a uma tal encenação. De qualquer forma, como seria possível coreografar o avanço das chamas de maneira tão rigorosa? Como engodar o fogo até o sujeitar à clausura de um contorno preciso e significante?
Ainda as cinzas arrefeciam e já aparecera gente a gabar-se de ser capaz de reproduzir o fenómeno. Com resultados risíveis: por mais desenhos que a gasolina regasse em esquemas de topografia precisa, o milagre teimava na ausência. As chamas preferiam seguir os seus próprios caminhos, escrevendo antes a sua natureza: tumulto, caos, liberdade.
Havia que manter a populaça de cabeça fria, decidiram os poderes do costume. Fora uma coincidência, portanto. Coisa digna de pasmo mas carente de sentido. Os adeptos das conspirações, saudosos havia muito do sortilégio de novos ornamentos rabiscados em campos cerealíferos, optaram pela resposta do costume: obra de extraterrestres ociosos. Os cépticos contentavam-se com o acaso vazio de significado. Nada de novo debaixo do Sol, portanto.
O milagre de Pietrabruna parecia fadado à morte pelo atrito da rotina, enquanto editores de tablóides iam encontrando novas atracções e a maré de incêndios que corria pela Europa queimava manchetes mais urgentes e respeitáveis.
Três dias depois, irrompeu o segundo caso, numa aldeola portuguesa que nem figura na maioria dos mapas. Longe da atenção das câmaras de TV, mas incapaz de se esconder das objectivas dos mirones estupefactos. A imagem mais conhecida inclui em primeiro plano o perfil de um bombeiro de rosto tisnado, coberto de suor, afastando o olhar das chamas. E da palavra que ali lavra marcada a fogo nas faldas da serra: “Formigas”.
Peritos em grafologia asseveraram que pelo menos “podia” ser a mesma caligrafia. Derramada no cursivo nervoso mas regular de Pietrabruna. A mesma caligrafia; mas de quem? Onde estaria a mão capaz de escrevinhar letras com centenas de ramos em chamas, palavras que só a quilómetros de distância se deixavam ler, entre brumas incandescentes e berros de pânico?
Um golpe publicitário, uma ilusão conjurada por fanáticos, uma conspiração de intentos por certo nada recomendáveis? Ou, mais singelamente, um truque que escapava ao escrutínio dos ilustrados mas que conseguiria encontrar cultores voluntariosos um pouco por todo o lado? De novo, o esquálido exemplo dos círculos nas planícies pavimentadas a cereais.
Naturalmente, todas as hipóteses pareciam preferíveis à alternativa. Quem mais poderia incendiar vocábulos sem significado aparente pelas encostas da Europa mediterrânea? Sim; Deus escrevia direito por linhas tortas. A sabedoria popular sempre o declarara, só que nunca esperara ver o seu aforismo concretizado à letra. Se Ele queria falar com os Seus filhos, por certo que teria encontrado caneta mais prática e papel menos bizarro. Responsar através de labaredas? E inevitavelmente ante o testemunho de câmaras, como que movido por reles ambições de prime-time, com legendas já traduzidas para benefício das populações locais? Não. Deus tinha de ser Criatura mais digna e discreta.
E se, inquiriram alguns teólogos, as palavras de lume já estivessem escritas e determinadas desde o início dos tempos? E se séculos de arborização, de eventos naturais, de infindos episódios humanos em pinhais ignotos tivessem servido apenas para desvelar as Palavras do Senhor? Aquele muro pelo qual fora morto um agricultor velhaco em 1760 acabara por delimitar um “i”; a ermida já reclamada de novo pelas urzes criara o vazio no centro de um “o”; o pastor que dormira a sesta no mesmo lameiro durante décadas, enquanto as suas ovelhas devoravam erva alheia, obrara apenas para definir a haste de um “t”. Não era grande lisonja para a nossa vaidade de criaturas livres e caprichosas…
Texto absolutamente incrível. E não faço a mínima ideia (olá Borges) onde termina a realidade e começa a ficção.
Magnífico, Luís.
Creio ser ficção, mas para o caso não importa. Um texto ( isto não é um post, é claro ) excelente.
Parabéns.
Só agora tive tempo de ler o começo do teu próximo romance, Luis. Porque é o começo do teu próximo romance, não é?
À velocidade a que as coisas deste mundo ardem, isto não dava nem para novela.