É já nos próximos dias 4 a 7 de Setembro que terá lugar, na Póvoa de Varzim, a segunda edição deste belo e importantíssimo evento que é o ViMus, o único festival internacional de vídeos musicais organizado no nosso país. Por isso, babem-se com o programa deste ano e vejam lá se conseguem dar um salto a essa bela cidade. As entradas são livres.
Tal como o ano passado, a organização (que tem uma certa dificuldade em aprender com os erros que cometeu no passado), voltou a convidar-me para escrever um texto sobre um realizador português. Depois de José Pinheiro, o cristo deste ano é Rui de Brito. Espero que gostem, não propriamente do texto (apesar da imensa trabalheira que me deu inserir tanto link), mas da viagem que lá proponho pela obra desta cabal demonstração de que não faltam imensos talentos no nosso país (ler esta última frase à la Sócrates). Aí vai aço.
Borrow a videocamera from a friend
Não é fácil sobrestimar a importância do vídeo de Feeling Alive (Gomo, 2004) na história do videoclipe em Portugal. Recordo pessoalmente esse surgimento: de repente, vindo do nada, caía do céu um objecto que conseguia despertar a minha curiosidade, não apenas para com um músico que me era desconhecido como para com quem teria estado por detrás da realização do vídeo. Quando, a determinada altura («…até chegares ao fim dessa rua, que é uma rotundazinha…»), percebi que se tratava de uma produção nacional, essa contextualização do clipe realizado por Rui de Brito alimentou ainda mais o meu fascínio. Para além de estar na presença de um metavídeo que orbitava em torno da sua própria concepção (género manifestamente arrojado e bissexto em Portugal), o clipe de Feeling Alive representava não apenas uma absoluta negação do discurso que ainda hoje é o da maioria dos realizadores nacionais (o lamento pela falta de meios), como demonstrava com fina ironia que essa falta de recursos poderia ser utilizada como um trunfo muito eficaz para a concepção de um vídeo musical: pá, se não tens uma câmara de filmar, não há nada como pedi-la emprestada a um amigo. Assim, não estamos perante um mero do it yourself, mas um do it yourself about doing it yourself. De resto, era essa mesma concepção do vídeo que fazia de Gomo um semblable, um duplo, um reflexo especular, do próprio realizador. Arrisco aqui, sem rede, uma primeira metáfora (e não é por acaso que ela é cinematográfica): na sua videografia, Paulo Gouveia é para Rui de Brito aquilo que Jean-Pierre Léaud foi para Truffaut. E Gomo é, como não podia deixar de ser, o seu Antoine Doinel.
Find a nice location
Sempre sem rede: Rui de Brito é o realizador português de videoclipes com uma noção mais aguda de obra, legitimando assim o seu estatuto de autor. A sua videografia constitui um projecto audiovisual autêntico, uno e coerente, com princípio, meio e fim, onde cada clipe funciona como parte integrante de um todo orgânico, cujos elementos estabelecem entre si um permanente diálogo na construção de uma visão autoral das possibilidades criativas e conceptuais que representam um videoclipe. O primeiro e mais visível indício dessa configuração canónica do trabalho de Rui de Brito está na definição do espaço. Para ele, a nice location corresponde a um local interior, fechado e não raras vezes subterrâneo (não será por acaso que a sua produtora se chama SubFilmes). É como se a câmara de Rui de Brito sofresse de uma manifesta agorafobia, cujos sintomas são desde logo evidentes nas primeiras imagens do seu vídeo de estreia, onde um travelling faz deslizar o nosso olhar para o interior de uma casa (Rollercoaster, Austin, 2001). Os exemplos dessa configuração claustrofóbica do espaço sucedem-se em catadupa: ele é quartos (Feeling Alive e I Wonder, Gomo, 2005), corredores (Rollercoaster), escadas de emergência (Poetas de Karaoke, Sam The Kid, 2006), parques de estacionamento subterrâneos (Poetas de Karaoke; Hip Hop, Boss AC, 2005); e ainda os pivots do programa Pop Up (RTP2, 2004-2005), asilos (Shine On, Blind Zero, 2005) e outros espaços hermeticamente isolados como estúdios de gravação (Luz Vaga, Mesa, 2004) ou estúdios de rádio e de televisão (Poetas de Karaoke). Mesmo os raros espaços exteriores que surgem na obra de Rui de Brito remetem sempre para ambientes disfóricos e marginais que de certa forma legitimam essa agorafobia estética, caso da Nova-Iorque soturna e pós-11 de Setembro de My Explanation (EZ Special, 2005), que volta a ser subtilmente sugerida na fuligem que cai de um céu carregado de finitude em Que Deus? (Boss AC, 2007), ou do cemitério em Funeral (spot publicitário para a União Zoófila, 2006). No entanto, é naquela que considero ser a sua obra-prima (Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?, Pedro Abrunhosa, 2007) que essa configuração atinge o zénite: quem melhor do que os sem-abrigo, que procuram incessantemente o limiar dos espaços interiores como refúgio, para transmitir essa ânsia por paredes, chãos e tectos?
Get a CD player for the playback and turn always down your mobile phone
Lembrete: um videoclipe é sempre um objecto artístico de 2.º grau que tem de incorporar na sua tessitura, nem que seja através da montagem de imagens não filmadas especificamente para esse fito, um outro objecto artístico preexistente (falo aqui de videoclipe no sentido restrito do palavra – o mesmo não se aplica, obviamente, à videoarte). Esta tensão entre imagens e som é um dos capítulos mais fascinantes da história do género e possui uma vasta tipologia que vai da total subordinação ao mais despurado alheamento (como é óbvio, não existe qualquer correspondência directa entre essa escala e a qualidade estética de um videoclipe). A videografia de Rui de Brito constitui um autêntico catálogo dessas diversas possibilidades, sendo possível encontrar exemplos em que a) as imagens mimam a música – caso do vídeo performativo de Luz Vaga e do lip sync de Count The Stars (Levi, 2004) – ; b) a música concorre com o som ambiente do local em que as imagens foram filmadas (Rollercoaster; My Explanation e Hip Hop); c) a música é interrompida por esses mesmos elementos sonoros (Rollercoaster, Feeling Alive e Poetas de Karaoke), e até um exemplo em que d) a música parece estar relegada a um estatuto de mera banda sonora (Shine On). Apesar de todas estas evidências acrescentarem uma assinalável heterogeneidade à obra de Rui de Brito, a verdade é que todas têm como origem a intromissão do realizador, com um gesto desconstrutivista, na relação confortável do espectador com as imagens e os sons. Se esse gesto é flagrante em muitos dos seus clipes (o famoso toque de telemóvel seguido de um diálogo em Português de Feeling Alive, a voz off de Shine On ou o cameo de Gomo / Rui de Brito em Poetas de Karaoke), há casos em que essa desconstrução atinge uma subtileza digna dos melhores vídeos conceptuais de Spike Jonze (uma indisfarçável influência). Veja-se, por exemplo, a forma como o estatuto de primeiro vídeo de um artista é integralmente desconstruído com a intromissão aleatória de diversos figurantes, num clipe que, por convenção, deveria servir para apresentar ao público o músico Levi Martins (Count The Stars), ou a forma como a legendagem em Português das palavras cantadas pelo vocalista dos EZ Special acabam por, no final do vídeo, legendar surpreendentemente as palavras inaudíveis de uma personagem pertencente à trama do vídeo (My Explanation). A forma como Rui de Brito defrauda os horizontes de expectativa dos espectadores é, sem dúvida, um dos elementos fundamentais e mais unificadores da sua obra. E uma das suas mais significativas marcas autorais.
Use your own light sources, add some special lightning and apply a color correction to the image
O trabalho de iluminação nos clipes de Rui de Brito está, como não podia deixar de ser, intimamente relacionado com a sua concepção claustrofóbica de espaço. A iluminação é quase sempre escassa (Rollercoaster, Hip Hop), a paleta de cores extremamente reduzida e pós-produzida (I Wonder, Shine On), não sendo por isso de estranhar a recorrente utilização de fundos negros e do preto e branco (Count The Stars, Luz Vaga, Que Deus?).
Redecorate the place and play a second instrument
Um palimpsesto é uma página manuscrita, de pergaminho ou livro, cujo conteúdo foi apagado, mediante lavagem e raspagem, e escrito novamente, sendo no entanto possível vislumbrar indícios do primeiro texto. Este exercício de reciclagem medieval (que equivale a uma redecoração de um suporte visual) é aplicado de forma muito produtiva e original na videografia de Rui de Brito: é quase sempre possível detectar na sua obra um determinado código visual sobre o qual vai ser inscrito a própria linguagem do videoclipe. É o caso das televendas (Count The Stars), dos vídeos didácticos (Feeling Alive e I Wonder), do cinema (já lá iremos), do documentário (Shine On), da publicidade (I Wonder), dos espaços noticiosos e dos directos televisivos (Poetas de Karaoke), dos circuitos fechados de televisão (Shine On e Poetas de Karaoke) ou ainda das campanhas de sensibilização social (Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?). Esta configuração do videoclipe como palimpsesto é ainda mais notória numa das imagens de marca de Rui de Brito: a sobreposição dinâmica de caracteres tipográficos, que atinge uma sofisticação notável no tantas vezes copiado (mas nunca suplantado) Luz Vaga. É curioso verificar que o ciclo da utilização quase obsessiva deste artifício viria a fechar-se, na sua obra, de uma forma extremamente subtil e original com a transposição da sua dinâmica para os graffiti que povoam o vídeo de Que Deus?.
Set the camera to film mode and give it a cinemascope look
A relação da videografia de Rui de Brito com o cinema é óbvia, mas também presta-se a equívocos. É inegável que se podem detectar diversos indícios dessa relação, como na inclusão gráfica do indicativo 555 em Count The Stars, no cinemascope look de diversos vídeos, e mesmo na referência concreta a alguns filmes, como é o caso de Lost Highway (David Lynch, 1997) em Rollercoaster, Ringu (Hideo Nakata, 1998) em Shine On, Fight Club (David Fincher, 1999) em I Wonder, 8 Mile (Curtis Hanson, 2002) em Hip Hop ou Lost in Translation (Sophia Coppola, 2003) em My Explanation. Contudo, talvez devido a algumas referências biográficas que são do domínio público (Rui de Brito sempre confessou querer fazer filmes, apesar de não ter conseguido entrar no Conservatório), existe uma tendência abusiva e redutora em interpretar todo este flirt à sétima arte como um desejo do realizador em transformar os seus clipes naquilo que, de facto, nunca poderão ser: cinema. Ora, convém não esquecer que o cinema é apenas uma das muitas linguagens visuais que Rui de Brito utiliza para aí inscrever e desconstruir a linguagem dos seus videoclipes. Isso é, de resto, particularmente evidente na utilização dinâmica das barras horizontais em Poetas de Karaoke, em que o famigerado cinemascope look convive pacificamente com o formato televisivo.
Act cool, sexy and crazy and show you can dance
Com a excepção de Feeling Alive (num registo irónico) e de Hip Hop (não obstante o facto de possuir um feeling genuinamente underground), não abundam os momentos eufóricos nos vídeos de Rui de Brito. As suas personagens parecem estar contaminadas (quando não oprimidas) pelo ambiente disfórico do espaço que povoam, formando uma galeria soturna de silhuetas distantes e fantasmáticas corroídas pela fúria (I Wonder), a passividade (Rollercoaster, Count The Stars), a incomunicabilidade (My Explanation), a revolta (Poetas de Karaoke), a dor (Funeral), a tristeza (Que Deus?), o vazio e a frustração (Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?). Não deixa de ser particularmente significativo o facto de Rui de Brito ter resgatado Gomo (seu duplo e personagem em Feeling Alive, seu único vídeo manifestamente eufórico) para protagonizar um dos raros momentos de humor da sua videografia (Poetas de Karaoke). É caso para dizer: Ask your friends to join in.
You need a beautiful girl and you need to find the right clothes
NOTA: não me esquecer de inventar aqui uma cena gira antes de enviar o texto à malta do ViMus. Há uma miúda muito gira no vídeo de My Explanation dos EZ Special. E até está vestida à maneira. Conheço aquela miúda não sei de onde… A desenvolver.
Do stuff in slow motion and use video effect
Os lugares-comuns do videoclipe como género prestam-se a todas as experimentações. Rui de Brito é um dos realizadores portugueses mais parcos na utilização desses maneirismos. Ironicamente, há apenas a registar na sua videografia o fast-forward de um céu coberto de nuvens em Que Deus?.
Prepare a mesmerizing ending
Depois da obra de José Pinheiro o ano passado, a organização do Festival ViMus volta a ter na retrospectiva de um realizador de videoclipes nacional um dos principais atractivos do seu programa. Estou certo de que a visualização integral, e por ordem cronológica, da videografia de Rui Brito dará uma oportunidade única ao espectador de poder usufruir de um conjunto não de clipes, mas de uma obra inteira e fluida dividida em 11 capítulos. Pessoalmente, só tenho a lamentar a ausência do seu mais recente vídeo (Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?) que poderia perfeitamente ser o capítulo final desta tão notável obra. Não deixa de ser particularmente irónico o facto de um vídeo, que é intransigente em forçar o espectador a ver em grande plano rostos que no dia-a-dia tentamos a todo o custo evitar, capitular de uma forma tão inglória por decisão do próprio realizador. Quem sabe não será este o derradeiro e mais ousado gesto de Brito, o Desconstrutor.
Mmh. Assim não chego lá.
João Pedro da Costa
Agosto de 2008
poça, que hipertopia do caraças! Qual será a dimensão do espaço onde existe?
para descansar,
«o arco reflexo ignora a anatomia, a evidência retoma o seu lugar. Eis a natureza como paisagem:com quadro, ponto de fuga, distância, elementos e retórica implicitamente consentidos» Anne Cauquelin, A Invenção da Paisagem
Impressionante texto, primo. E muito útil.
Obrigado, primo. Sobretudo pelo «útil». Interrogo-me muito sobre a pretensa utilidade do que escrevo. Mas depois passa-me.
No meu caso, a utilidade está em ter aqui uma compilação da obra, ilustrada com a tua contextualização. São dois benefícios para mim, que me interesso por esta arte.
Somos dois, então. Também acho o videoclipe um dos formatos mais fascinantes da nossa era. Apenas me sinto (confesso) um pouco só (apesar da malta do ViMus, claro) nesta «luta» para levar o formato a sério.
Pois, mas se até os poucos desistirem, achas que a coisa melhora? Que se foda a solidão, e força nisso. Porque vale sempre a pena.
Oube o que te diz o primo, JPC. :-)