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Abri há pouco as entranhas do meu PC e li, algures entre os circuitos integrados de marca branca, que o Luís Rainha iria publicar três posts nas próximas 28 horas.
A ver vamos. Miam.
A leitura de um post do Zé Mário sobre as últimas palavras de Pessoa («I know not what tomorrow will bring»), trouxe-me à memória uma história engraçada (considerem esta última palavra um eufemismo – na verdade, eu acho a história absolutamente hilariante). Isto foi há cerca de sete ou oito anos, estava eu num café a pastar a toura, quando, de repente, ouço no televisor do estabelecimento que a Madre Teresa Calcutá tinha morrido. Logo de seguida, entra uma reportagem em que um jornalista francês com um péssimo Inglês faz a seguinte pergunta a uma das irmãs da Congregação que, supostamente, acompanhou os últimos momentos de vida da Madre Teresa:
– Which were her last words?
Já dizia Shakespeare que «the tongues of dying men enforce attention like deep harmony» e, como é óbvio, a minha atenção ficou redobrada: que últimas palavras terá dito a Madre Teresa? Estava curiosíssimo.
– Sister, please, which were her last words?
– What?
A irmã era bastante idosa e tinha dificuldade em ouvir a pergunta. Como com certeza saberão, existe uma paranóia sublime em relação às últimas palavras de pessoas famosas. As minhas favoritas, por exemplo, são as de Massimo Taparelli Azeglio («Ó, Luisa, tu chegas sempre quando estou de saída»), Beethoven («Aplaudem, amigos, que a comédia chegou ao fim») e de Sócrates («Crito, eu devo um galo a Asclepius – vê se pagas a dívida por mim»). Por isso, estava «mortinho» por saber
– Her last words. Which were her last words?
– What?
Estava difícil, caramba. Com medo de perder o momento em que a senhora percebesse finalmente a pergunta, levantei-me da mesa e aproximei-me do televisor mesmo a tempo de ouvir pela última vez:
– Which were the last words of Madre Teresa?
– Oh, I understood now. You mean the last thing she said before she died?
– Exactly.
Ponho-me em bicos de pé, o coração nas mãos, e ouço (juro) a bendita senhora dizer…
– Her last words were: «I can’t breathe».
É no início do mês de Dezembro que nos começam a bater à porta. Vamos à porta e, tirando a primeira vez, que nos apanha todos os anos desprevenidos, já não estranhamos o facto de abrirmos a porta e de lá não ver ninguém. Os dias vão passando e há já 15 anos que o ritual se repete: batem-nos à porta, um de nós vai à porta e não está lá ninguém. Uma vez por dia, duas, três. Em meados de Dezembro, o som do osso a bater na madeira já se transformou num ruído natural da respiração da casa, ao lado de outros como o do ranger do soalho, do murmúrio dos electrodomésticos ou do mecanismo do relógio da sala: batem-nos à porta e já nem sequer vamos lá, apesar de ser uma das regras da casa abrir sempre a porta aos que estão ausentes. Na manhã do dia 24, o ruído torna-se incessante. Batem-nos à porta, batem-nos à porta, batem-nos à porta. E sou sempre eu quem sucumbe à inquietação daquele momento: abro a porta, mas nem precisaria de o fazer para dizer à minha mãe
– Está aqui o pai.
– Que merda. Deixa-o lá entrar.
É que o meu pai só atrapalha. É preciso pegar nele ao colo e trazê-lo para dentro de casa e sentá-lo ao quente no sofá. Ele fica ali parado a olhar de um jeito meio triste e alucinado para nós e de vez em quando desaparece para surgir nos locais mais inesperados: a fazer o pino na banheira, a esparregata no chão da cozinha ou de parvo perante os cozinhados da minha mãe. A gente bem volta a pegar nele, mas de nada nos vale fechá-lo numa divisão da casa – pouco depois ele reaparece como por magia nos locais mais inesperados e sempre a atrapalhar. Quando chegar a hora da ceia, não haverá qualquer lugar para ele na mesa, mas aí a gente cede um pouco e deixa-o desarrumar a casa à sua vontade. Ele arrasta móveis, muda a posição de alguns objectos, empilha outros lá fora no pátio para os pormos no lixo e é como se viajássemos no tempo, pois ao fim de algumas horas a casa fica quase com o aspecto que tinha há 15 anos atrás, quando celebrámos aquilo que nenhum de nós sabia ser o nosso último Natal – aquele que, todos os anos, no primeiro dia de Dezembro, se mistura com o vento e a chuva e a noite para nos vir bater à porta.
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu folheio seus livros e detenho-me, talvez já magicamente, na contemplação de uma frase e da sua música; de Borges já não vêm notícias nos jornais e apenas vejo o seu nome nas paredes do meu quarto ou no écran do meu computador. Agradam-lhe os jardins cujos caminhos se bifurcam, o rigor na ciência, as enciclopédias, a escrita de Deus, o sabor antigo e simples d’As Mil e Uma Noites, a dramaturgia de Jaromir Hladík, a prosa de Mir Bahadur Ali e de Herbert Quain; eu comungo dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um leitor. Seria um exagero afirmar que a nossa relação é hostil: ele escreveu os seus inúmeros livros para que eu os pudesse ler, e essa leitura justifica-o. Não me custa confessar que tentei copiar-lhe certos textos (como este), mas nem esses me podem salvar, talvez porque o valor já não seja de alguém, nem sequer de Borges, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente e nenhum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco, vou-lhe cedendo as minhas horas livres, ainda que me reste algum tempo para exercer o seu hábito de falsificar e magnificar. Pierre Menard, um dos seus escritores favoritos, assumiu o dever de reconstruir literalmente o espontâneo Dom Quixote de Cervantes. Eu hei-de escrever a obra de Borges, não a minha (que é apócrifa), pois reconheço-me mais nos seus livros do que no meu reflexo no espelho ou na duvidosa ramagem da minha árvore genealógica. Há anos, tratei ingenuamente de me livrar dele e passei dos seus jogos com o tempo e com o infinito para outros livros de diversos autores, alguns de valor inquestionável. Mas esses livros agora também são de Borges e reconheço com certo horror a sua influência na obra de todos os grandes escritores, sobretudo na dos que lhe são anteriores. Assim, qualquer livro na biblioteca é da sua autoria: eternamente: as minhas leituras são uma fuga vã no embaraço da escolha (há quem chame a isto labirinto) e nada se perde, nada se esquece – porque tudo desagua no outro.
Não sei qual dos dois formatou este HTML.
Pacheco Pereira, no seu estilo habitual, veio admoestar e garantir que recordar os acontecimentos na Ponte 25 de Abril, durante o consulado Cavaco, e lembrar o jovem que foi baleado na ocasião é “demagogia”. Estou completamente de acordo, tudo o que refira de uma forma indelicada os momentos mais polémicos do Sr. Professor deve ser imediatamente banido e os autores enviados para Caxias.
Para compensar os amargos de boca, aqui fica uma passagem do livro sobre Cavaco do saudoso director do Diário de Notícias, e assessor vitalício do professor de Boliqueime, Fernando Lima: ” O bloqueio da Ponte foi comparado a outro verificado no Regimento de Comandos da Amadora, em 25 de Novembro de 1975, quando as forças de esquerda tentaram recuperar terreno perdido com a ascensão dos militares moderados no processo revolucionário português”, garante definitivo o Lima, que de chofre acrescenta: “A situação no Regimento de Comandos da Amadora e a da Ponte 25 de Abril tinham muito em comum, assinalavam na altura os analistas militares”. Finalmente uma análise séria e objectiva, e nada demagógica, sobre o acontecido: Pacheco tens alma gémea!
Para motivar a compra do livro de Fernando Lima “O meu tempo com Cavaco Silva”, aqui deixo mais um naco de prosa que faz jus à verborreia doce do autor: “Jamais esquecerei uma visita a Mirandela em que o presidente do município, José Gama, já falecido, organizou uma festa em homenagem à Mãe. A participação dos alunos das escolas conferiu-lhe uma moldura humana inigualável. De improviso Cavaco Silva fez um discurso que espelhava o que naquele momento lhe ia na alma. Muito bonito e tocante”.
Este final da semana está muito agitado:
1. Jantei com um perigoso agitador internacional (estranhamente foi no “Polícia”).
2. Participei numa reunião quase clandestina na FCSH: estava um salão a abarrotar para discutir com Toni Negri, mas o evento não passou o teste do critério da realidade (a imprensa ignorou olimpicamente o acontecido).
3. Comecei a mudar de casa.
4. Estou sem computador e naturalmente sem internet. Foi com muita dificuldade que consegui escrever este mini texto, num lugar de péssima reputação – muito esforço para tentar intervalar o tsunami Rainha.
5.Fui a uma festa das “Marias”, suportei estoicamente uma sessão do “Teatro do Oprimido”. Fugi e fui abalroado por um carro em contra-mão.
Estou cansado. STOP! Este- fins-de-semana-matam-me. STOP. Preciso de descansar, vou trabalhar.
Das festas, da política e da agitação só retirei a ideia que só há coincidências. Reparei num meio de um colóquio universitário que passavam 30 anos do golpe direitista do 25 de Novembro de 1975 e também 30 anos do “Vigiar e Punir” de Foucault. É verdade, os acontecimentos costumam suceder em cachos, mesmo aqueles, como os meus, que não têm importância nenhuma.
Já dizia o Almada Negreiros (fica sempre bem começar um texto com uma citação – ou mesmo com duas, como diria a Clara Pinto Correia), que as coincidências são as únicas coisas na vida que não acontecem por acaso. No preciso momento em que mudo virtualmente de blog, d’As Ruínas Circulares práqui, estou igualmente a mudar de casa, de Canidelo para o Campo Alegre, uma das zonas mais bonitas da mui nobre e distinta cidade do Porto.
Eu já calculava que a segunda mudança seria ligeiramente mais complicada do que a primeira (o Luís Rainha fez tudo, eu gosto muito do Luís Rainha), mas nem mesmo a severa educação católica que recebi dos meus pais e de um Bombeiro Voluntário de Coimbrões me preparou para lidar com essa classe profissional que se dá pelo nome de «agentes imobiliários» ou com as burocracias inerentes a sintagmas e siglas como (rufar de tambores):
1) «contrato promessa de compra e venda»;
2) «registos provisórios»;
3) «licença de habitabilidade»;
4) «IMT» e
5) «escritura».
Há cerca de duas semanas, e após eu a Manela termos despachado o «contrato promessa de compra e venda» com os (ainda) proprietários da casa, os «agentes imobiliários» (chamam-se assim porque estão sempre parados e nunca fazem a ponta de um corno) falaram-nos da necessidade de assinarmos uma declaração para que pudéssemos ter acesso a uma cópia da chave antes da «escritura», isto para salvaguardar os direitos de propriedade dos (ainda e generosos) proprietários. Marcou-se uma data para a assinatura do dito papel e lá fomos nós contentinhos da vida. Deixo-vos aqui um pequeno apontamento dramatúrgico do que aconteceu nesse dia, feito a partir daquilo que me foi relatado posteriormente pela Manela. Dedico-o aos (ainda, mas já falta pouco) proprietários da casa, o Jaime e a Susana (nomes fictícios), por serem a única coisa boa que nos apareceu ao longo de todo este inicático processo.
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