Um homem tinha dois filhos. Um filho e uma filha, desta vez. Um dia, disse-lhe a filha: Pai. Não, não lhe disse, escreveu: Pai. Era a primeira vez que lhe escrevia em duas dezenas de anos, e estava prestes a fazer os vinte. Pai. Saltou uma linha e entrou na carta. Pai. Não, isso já estava. Tenho outro amante. A letra nem denunciava tremuras. Se alguém dever admirar-se, não serás tu. Tinha havido um ponto de exclamação, já só o ponto se aproveitava. Posso-te imaginar ciumento, estupefacto é que não. Parágrafo. Amantes tive eu logo aos catorze, e ninguém melhor do que tu sabe quem foi. As reticências tinham sido postas – era isto evidente – ao ter-se iniciado já a frase seguinte. Levaste-me para o sótão, na nossa outra casa. Parágrafo.
Nisto, entra na história o filho. Entra é uma maneira de dizer, pois ele já esteve, por detrás do pai, seguindo a leitura. Com que então, senhor meu pai! O pai vira-se, estende-lhe a carta e diz: O resto é para ti. O filho pega na carta, procura onde tinham ficado e lê em voz alta. Terás pensado que o segredo ficaria guardado. E, na realidade, nunca a ninguém falei. Mas o Gustavo cedo descobriu o que nem muito escondido estava. Gustavo levantou os olhos da carta para o pai. O pai disse: Continua. Gustavo prosseguiu: Uma tarde, ainda eu de novo chorava a mágoa de ter nascido filha tua, entra ele no sótão. Estava excitado e nada fazia para encobri-lo. E serviu-se, como tu, minutos antes, te serviras.
Gustavo parou. Continua, disse o pai. É mentira, pai. Continua, repetiu ele. Durante semanas, talvez meses, foi um ir e vir entre vocês. Até eu fugir. Pronto, era isto. Gustavo fixava a carta, onde só a garatuja da assinatura sobrava. Continua. Gustavo olhou o pai. Sabia-se lívido, após ter tido o rosto ao rubro. No pai nada parecera alterar-se. Continua, ou eu esquartejo-te com esta bodega. Nas mãos do pai surgiu um revólver. Continua, velhaco. Porque eu hei-de vingar-me da desonra que na minha própria casa me trouxeram. Um filho meu!
Gustavo tinha uma vaga impressão de que o pai exagerava. Descobriu-se também de pistola em riste. Velho aleivoso. Foi então para isso que quiseste ter uma filha, por força uma filha! Ia disparar, quando acordou. Era realmente uma irmã o que sempre desejara ter tido.
de «Um Selvagem ao Piano»
O Fernando teve de fazer uma cópia para se sentir vivo no Aspirina!
É isto que detesto mais na blogosfera: que uma para mim totalmente desconhecida possa vir assim em público (sim, o Aspirina tem para cima de 2.000 ‘hits’ em média por dia) dizer o que um gajo ’teve de fazer’, e – mais – o que um gajo há-de ‘sentir’. Ainda se dissesse que o texto era uma porcaria…
Pacoviíce? Provocação? Mente desocupada em demasia? Um objecto de estudo.
e depois? o gajo comeu a mana? o pai enrabou o filho? o autor deste textinho enfiou a caneta no rabo?
conta mais, fernandinho.
Uma boa notícia. O texto é interessante, bem desenhado e original. Nem parece seu, reconheço. Contudo, uma ressalva, deixa uma certa imprecisão no ar, talvez propositada, mas julgo não convincente.
Um texto de mérito concerteza.
O texto é uma porcaria.
Magnífico, Fernando. Onde poderei encontrar mais pérolas deste género? Esse livro “Selvagem ao Piano” existe mesmo? Quero comprá-lo.
Abraço.
v.f,
Escreves: «e depois? o gajo comeu a mana? o pai enrabou o filho? o autor deste textinho enfiou a caneta no rabo?». Pensei que tivesses percebido que um «depois» era exactamente o que não havia. Mas a tua fantasia à solta está prestes a dar a volta por baixo. Vas-y.
Ó Crítico Insuspeito,
Escreves: «[O texto] Nem parece seu, reconheço». Arre que é preciso desplante. Esse concessivo «reconheço», então, é inenarrável.
MST,
«Um Selvagem ao Piano» existe, efectivamente. Mas leva uma existência sombria. Há-de haver por depósitos de bibliotecas públicas ou nacionais, aonde algum Orfeu estremunhado terá de descer. Apetecia-me recuperar, um dia, esses contos. Mas não prevejo grande sucesso. Os editores adoram a medida grande, você sabe. Às vezes acertam com ela, outras não.
Amanhã colocarei aqui, do mesmo livro, mais uma… pérola. O termo é seu.
Abraço.
Uma boa notícia. O texto é interessante, bem desenhado e original. Contudo, uma ressalva, deixa uma certa imprecisão no ar, talvez propositada, mas julgo não convincente.
Um texto de mérito concerteza.
(não tive a pretensão que julgou)
afinal o Fernando é um dos nossos. ainda bem.
Belo texto!
REVOLUÇÃO EM MARCHA
O que mais surpreende neste texto, além da genuína originalidade da prosa, é sua simplificação linguística em contraste com uma mui sui géneris complexidade narrativa, desafiando subliminarmente o leitor sem o entrepor ao ego linguístico do autor.
caramba!.. isto não parece nada um texto dum crítico mediocre do sistema. mea culpa, caro fernando.
O FV desceu à terra e escreveu este belo conto. Bem vindo!
Há para aí uns equívocos sobre as críticas suspeitas e insuspeitas. A minha (que só é crítica por efabulação)é mesmo suspeita e tenho mesmo a certeza de que é rassabiada. De facto, quem me dera escrever com a elevação do sr. FV! Tanta mestria enche qualquer nabo de enlevo. A minha admiração não tem limites. O texto é uma pérola. Melhor que isto só mesmo o Meia Folha de Papel” do Strindberg, razão que me leva a propor aos caudilhos da revolução em marcha que candidatem o senhor ao Nobel da Caparica.
é esse o grande mal, meu bom fernando: nunca há um “depois” na literatura portuguesa. por mais voltas que se dê “por baixo”, acaba-se sempre por ficar de lado.mas agora a sério: o conto tem uma estrutura anedótica, o que é pena.
É engraçada a expressão “passar à História”. Quer dizer exactamente o que não quer dizer: que passar à história é justamente não poder entrar nela. Mas o vf já nos habituou às inversões.
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