Arquivo da Categoria: João Pedro da Costa

Fame: I wanna live forever

A única coisa que tenho contra as pessoas famosas é o facto de elas perturbarem o fluxo das conversas que tenho com os meus amigos. Quando estou a conduzir, por exemplo, é muito fácil um amigo encetar o seguinte diálogo:

– Olha, não é o João Pinto?
– Pois é. Ele agora está no Boavista.
– És parvo ou quê? Tou a falar do meu primo.

É que todos os meus amigos conhecem pessoas homónimas de gente famosa. Como é óbvio, já tomei consciência do facto e, por isso, pode acontecer eu ir na rua com alguém e

– Olha, João, vai ali a Armanda Passos.
– Ai é? A tua vizinha já voltou dos Estados Unidos?
– Vizinha? Então não vês que aquela é a pintora?

Não vejo não, porque sou péssimo fisionomista. Também já optei pelo silêncio, mas em vão.

– Olha, o Belmiro.
– …
– Tens alguma coisa contra o Belmiro?
– …
– Ouviste o que eu disse?
– (suspiro) Ouvi, claro. E não, não tenho nada contra o Belmiro: até o acho um belíssimo empresário.
– Ha-ha-ha, que piada. Vamos mas é atravessar a rua que parece mal não irmos cumprimentar o pai da tua namorada.

Todas as notícias de política nacional, por exemplo, têm para mim sempre duas leituras possíveis. «Sampaio recusa afastamento de Souto Moura» pode muito bem querer dizer que o padeiro do meu amigo Zé não vai despedir o empregado, facto que, de resto, me parece imensamente mais relevante que aquilo que a notícia quererá eventualmente dizer. Ou seja: se o mundo é pequeno, as pessoas famosas tornam o meu minúsculo e, já agora, ó Luís – posso saber como é que tu conheces a Joana Amaral, minha querida (e gira) contabilista?

un martini et la mer (courier sentimental)

J’ai un problème, ma chère amie, qui me rend peu à peu folle :
Le pauvre con qui se dit mon mari (alors qu’il a plutôt épousé l’alcool)
se sert de mon fils comme alibi, quand il n’est pas à l’école.
Chaque dimanche matin, il me dit avec son air de con :
«Ma cocotte, on revient : je vais montrer la mer au fiston».
Mon très doux petit, bien sûr, il trouve cela chouette
De pouvoir, jusqu’à midi, pisser dans l’eau et chasser les mouettes.
Il ne sait pas que c’est une ruse : son père se fout bien de lui,
Ce qu’il veut c’est une excuse pour aller boire ses martinis.
Je vous en prie, Madame, aidez-moi – je ne sais que faire :
Comment puis-je interdire son «cher papa» de l’emmener à la mer ?

Ma chère amie, je ne crois pas que vous ayez un problème :
Ignoreriez-vous de la nature cette loi : «Les Hommes Sont Tous Les Mêmes» ?
À votre place, je serais contente que mon fils ne se promène seul
Et que l’alcool ne soit une excuse pour que mon mari me casse la gueule…
Ma chère amie, je serais franche : ne croyez-vous pas que c’est dommage
De ne pas profiter de ces dimanches pour vous bronzer sur la plage ?
Croyez-moi, ma chère amie, je n’ai pour vous d’autre conseil :
Au diable vos petits soucis et jouissez du soleil !

NOTAS:
1. Este texto consiste em (mais) um exercício de rescrita de UM MARTINI E O MAR (três desses exercícios bilingues foram editados em 2001 pela Campo das Letras).
2. Pretende (tadinha, pró que lhe havia de dar) ser uma letra para uma canção com duas vozes femininas. Ainda tentei, nos últimos dias, alinhavar uns acordes para ela (cenas em Ré e Mi menor), mas sem sucesso. Se houver por aí algum leitor que tenha pachorra para compor uma musiquinha para ela, pronto, aqui o vosso escriba ficaria agradecido. Eu depois falo com a Brigitte Fontaine e a Shakira.

As últimas palavras

A leitura de um post do Zé Mário sobre as últimas palavras de Pessoa («I know not what tomorrow will bring»), trouxe-me à memória uma história engraçada (considerem esta última palavra um eufemismo – na verdade, eu acho a história absolutamente hilariante). Isto foi há cerca de sete ou oito anos, estava eu num café a pastar a toura, quando, de repente, ouço no televisor do estabelecimento que a Madre Teresa Calcutá tinha morrido. Logo de seguida, entra uma reportagem em que um jornalista francês com um péssimo Inglês faz a seguinte pergunta a uma das irmãs da Congregação que, supostamente, acompanhou os últimos momentos de vida da Madre Teresa:

– Which were her last words?

Já dizia Shakespeare que «the tongues of dying men enforce attention like deep harmony» e, como é óbvio, a minha atenção ficou redobrada: que últimas palavras terá dito a Madre Teresa? Estava curiosíssimo.

– Sister, please, which were her last words?
– What?

A irmã era bastante idosa e tinha dificuldade em ouvir a pergunta. Como com certeza saberão, existe uma paranóia sublime em relação às últimas palavras de pessoas famosas. As minhas favoritas, por exemplo, são as de Massimo Taparelli Azeglio («Ó, Luisa, tu chegas sempre quando estou de saída»), Beethoven («Aplaudem, amigos, que a comédia chegou ao fim») e de Sócrates («Crito, eu devo um galo a Asclepius – vê se pagas a dívida por mim»). Por isso, estava «mortinho» por saber

– Her last words. Which were her last words?
– What?

Estava difícil, caramba. Com medo de perder o momento em que a senhora percebesse finalmente a pergunta, levantei-me da mesa e aproximei-me do televisor mesmo a tempo de ouvir pela última vez:

– Which were the last words of Madre Teresa?
– Oh, I understood now. You mean the last thing she said before she died?
– Exactly.

Ponho-me em bicos de pé, o coração nas mãos, e ouço (juro) a bendita senhora dizer…

– Her last words were: «I can’t breathe».

1990

É no início do mês de Dezembro que nos começam a bater à porta. Vamos à porta e, tirando a primeira vez, que nos apanha todos os anos desprevenidos, já não estranhamos o facto de abrirmos a porta e de lá não ver ninguém. Os dias vão passando e há já 15 anos que o ritual se repete: batem-nos à porta, um de nós vai à porta e não está lá ninguém. Uma vez por dia, duas, três. Em meados de Dezembro, o som do osso a bater na madeira já se transformou num ruído natural da respiração da casa, ao lado de outros como o do ranger do soalho, do murmúrio dos electrodomésticos ou do mecanismo do relógio da sala: batem-nos à porta e já nem sequer vamos lá, apesar de ser uma das regras da casa abrir sempre a porta aos que estão ausentes. Na manhã do dia 24, o ruído torna-se incessante. Batem-nos à porta, batem-nos à porta, batem-nos à porta. E sou sempre eu quem sucumbe à inquietação daquele momento: abro a porta, mas nem precisaria de o fazer para dizer à minha mãe

– Está aqui o pai.
– Que merda. Deixa-o lá entrar.

É que o meu pai só atrapalha. É preciso pegar nele ao colo e trazê-lo para dentro de casa e sentá-lo ao quente no sofá. Ele fica ali parado a olhar de um jeito meio triste e alucinado para nós e de vez em quando desaparece para surgir nos locais mais inesperados: a fazer o pino na banheira, a esparregata no chão da cozinha ou de parvo perante os cozinhados da minha mãe. A gente bem volta a pegar nele, mas de nada nos vale fechá-lo numa divisão da casa – pouco depois ele reaparece como por magia nos locais mais inesperados e sempre a atrapalhar. Quando chegar a hora da ceia, não haverá qualquer lugar para ele na mesa, mas aí a gente cede um pouco e deixa-o desarrumar a casa à sua vontade. Ele arrasta móveis, muda a posição de alguns objectos, empilha outros lá fora no pátio para os pormos no lixo e é como se viajássemos no tempo, pois ao fim de algumas horas a casa fica quase com o aspecto que tinha há 15 anos atrás, quando celebrámos aquilo que nenhum de nós sabia ser o nosso último Natal – aquele que, todos os anos, no primeiro dia de Dezembro, se mistura com o vento e a chuva e a noite para nos vir bater à porta.

Borges ou eu

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu folheio seus livros e detenho-me, talvez já magicamente, na contemplação de uma frase e da sua música; de Borges já não vêm notícias nos jornais e apenas vejo o seu nome nas paredes do meu quarto ou no écran do meu computador. Agradam-lhe os jardins cujos caminhos se bifurcam, o rigor na ciência, as enciclopédias, a escrita de Deus, o sabor antigo e simples d’As Mil e Uma Noites, a dramaturgia de Jaromir Hladík, a prosa de Mir Bahadur Ali e de Herbert Quain; eu comungo dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um leitor. Seria um exagero afirmar que a nossa relação é hostil: ele escreveu os seus inúmeros livros para que eu os pudesse ler, e essa leitura justifica-o. Não me custa confessar que tentei copiar-lhe certos textos (como este), mas nem esses me podem salvar, talvez porque o valor já não seja de alguém, nem sequer de Borges, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente e nenhum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco, vou-lhe cedendo as minhas horas livres, ainda que me reste algum tempo para exercer o seu hábito de falsificar e magnificar. Pierre Menard, um dos seus escritores favoritos, assumiu o dever de reconstruir literalmente o espontâneo Dom Quixote de Cervantes. Eu hei-de escrever a obra de Borges, não a minha (que é apócrifa), pois reconheço-me mais nos seus livros do que no meu reflexo no espelho ou na duvidosa ramagem da minha árvore genealógica. Há anos, tratei ingenuamente de me livrar dele e passei dos seus jogos com o tempo e com o infinito para outros livros de diversos autores, alguns de valor inquestionável. Mas esses livros agora também são de Borges e reconheço com certo horror a sua influência na obra de todos os grandes escritores, sobretudo na dos que lhe são anteriores. Assim, qualquer livro na biblioteca é da sua autoria: eternamente: as minhas leituras são uma fuga vã no embaraço da escolha (há quem chame a isto labirinto) e nada se perde, nada se esquece – porque tudo desagua no outro.

Não sei qual dos dois formatou este HTML.

Hakepfff

Tudo começou na 3.ª-feira. Estava muito sossegado no meu quarto, quando oiço

– Hakepfff.

e pensei logo: caneco, minha mãe de férias, e eu aqui sozinho com o raio da gata constipada. Tentei ignorar a ocorrência e voltar à leitura do n.º de Dezembro da UNCUT quando, meia-hora depois, ouço mais um

– Hakepfff.

Levantei-me da cama e dirigi-me à sala onde encontrei a Ziggy a olhar para mim com um ar entre o perplexo e o assustado. Estabeleci de imediato um daqueles diálogos muito parvos que todos os donos de gatos têm com os seus bichanos:

– Então minha linda, tás constipada, é?
– (silêncio)
– Pois é, andas ao frio e agora tás doentinha, não é?
– (silêncio)
– Anda aqui a mim, tadinha da bichinha que anda praí a espirrar e tá cheio de medo…
– (silêncio)
– Bichinha linda blá blá blá…
– (silêncio)

Continuar a lerHakepfff