Na editora, discute-se a estratégia para segurar o autor do sublime manuscrito. Um autor que vale ouro, muito ouro. Assim prossegue Deus chega no próximo avião. É o capítulo 10.
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O dr. Cícero Pompeu chamou-me ao gabinete. «Se lhe der jeito…» É a fórmula dele, que ninguém sabe se vem da inverificável fidalguia da família («O meu bisavô foi Par do Reino, sabia?»), se apenas intenta pôr-nos no lugar com um gesto de veludo. Certo é que ninguém na empresa ousaria responder «Bom, por acaso até nem dá.» As consequências ficarão para sempre desconhecidas.
«Antes de passarmos a coisas práticas», e apontou-me o cadeirão, «quero dizer-lhe que apreciei a sua condução da conversa do outro dia.» «Sobre aquele original?» «Exacto, sobre aquele original. Mando vir um café?» Só para fazer a Micas útil, eu assentiria. «Se fizer obséquio.» Premiu o intercomunicador. «Dona Matilde, eram dois cafés.»
«Já viu este jornal de hoje? É só desgraças, o mundo. Veja lá que agora… Olhe, olhe isto.» Procurou uma página, procurou outra. «Está por aqui, está que eu ainda agora estive a ver… Ah, aqui está. Não sei quê, et cétera e tal. Leia você. Isto aqui.» E, ao passar-me o jornal dobrado, quase embateu com a bandeja onde a Micas trazia já os cafés. Procurei o que devesse ler. «Belo cheirinho. Uma artista, a nossa dona Matilde, é ou não, Gildo?» Pousei o jornal, sorri para ambos. «Você engraça, eu sei, com a Matilde», atirou, quando a contabilista saiu. Eu ia tartamudear qualquer coisa, mas ele atalhou: «Sabe que ela, enfim, é casada. Não me estrague o ambiente, que ela faz-me a mim mais jeito do que a você.» Por um segundo, eu percebera outra coisa, «Do que você.»
«Bom, vamos a coisas. Onde mora o nosso homem?» Fiz como se tivesse de pensar. «Em Coimbra.» «Coimbra…» O dr. Cícero pousou a chávena, e desenhou, com a esferográfica entre os dedos, um gesto de decisão. «Você vai dar, hoje é quarta, dá lá um salto amanhã. Telefone-lhe esta manhã, para acertar. Tem o número?» «Devo ter.» Realmente não tinha a certeza. «Diga-lhe, não diga pelo telefone, diga só lá. Que a gente vai publicar-lhe o livro quanto antes, em todo o caso até ao Verão, prometa-lhe numa capa catita, depois veremos quem a faz, com publicidade em grande, fale-lhe em tiragens de… Quanto acha? Três mil? Olhe, faz-se quatro mil e vê-se a recepção dos livreiros. Mas fale-lhe em cinco mil. É preciso agarrá-lo.» E algo longínquo: «Oxalá não tenha ele andado com isto a outros.» Eu ia tomando apontamento. Estas missões nunca foram do meu pelouro, e nelas é necessário, eu sei, é indispensável pisar terreno firme. «Quanto à percentagem…» O doutor percebeu que eu sugeria um tratamento inabitual. «Está bem. Diga-lhe que damos doze, diga doze e meio. Concorda?» Não sabia se era de concordar, que sei eu de direitos, mas tive a noção de que o dr. Cícero estava assistido pelo espírito. «Perfeito, senhor doutor. Eu vou sair-me bem disto.» E também eu me movimentava em zonas etéreas.
Quando, à noite, telefonei ao Diogo, disse-me ele: «Vou contigo.» Achei uma parvoíce e tentei demovê-lo: «Isto não são coisas para a tua idade. E tens as aulas.» Logo tornou: «Amanhã por acaso estou livre. E não percebo que é isso da minha idade.» Eu já procurava qualquer trama de diversão, mas não me deu tempo. «Tu próprio estás um bocado à rasca, diz lá se não.» «São os ossos do ofício, meu caro.» Mas era-me tão ténue a convicção, que acabei a rir-me da própria frase. Ele fez-se desentendido. «Amanhã às dez, estou aí. Era às dez que saías, não? E será melhor irmos no meu carro.» «Okay, como preferires.» «Isto», e falava com empenho, «se não queres falhar, se quiseres assegurar para a tua editora o maior romance, como é que disseste, do decénio? Do século inteiro, já? Até amanhã, e dorme bem.» Tenho este filho empreendedor. E mais: um filho sensível ao meu vacilar, que percebe o melindre desta maluca diligência. E não lhe contei que, desde esta manhã, me pergunto porque não se encarregou disto o próprio patrão. Ainda bem que o não disse. Seria perder ainda mais nível aos olhos do Diogo.
Marquei o encontro, em Coimbra, para o meio-dia e meia. Logo convidei o senhor para almoçar, oferta da casa. Pareceu-me, pelo telefone, pessoa afável, bem-educado, disse-me que é bancário, e que escreve desde há pouco. Não fiz ideia da idade.
Eh pá!,
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1312601&idCanal=11
Eu queria dar os parabéns ao Chavez por ter ganho, ou seja: por ter perdido, porque se tivesse ganho é que tinha perdido, como veria depois.
E sobretudo parabéns à lucidez dos venezuelanos. E obrigado.
Agora ao JMF é que já não sei…
Que sorte a minha, um dia ter aterrado no Aspirina!
Será que nos dás uma boleia até Coimbra?
Cá estão eles, os diálogos cinematográficos. Repletos de pormenores que nos colocam mesmo lá, ao lado do Gildo – como esse do jornal quase ter derrubado a bandeja com os cafés. Donaire na faena, passe o castelhano.
ai ai. eu só temo o dia em que tu nos digas: e agora chapéu. esperem pelo resto, que por enquanto não há mais. ai ai.
Valupi,
Perdoa-se-te o castelhano. A ti, que tanto cuidas do português.
Susana,
Depois deste, so haverá mais dois capítulos. Dois, repito. Porei um amanhã, e o último sexta-feira. Assim terminará a primeira parte (de três) do romance. Sim, depois chapéu. Para já.
Mas eu tenho in petto remédio para a ressaca. Verás. Veremos.
Sininho,
A boleia está combinada. E mete chanfana.
Tenho o coração frágil, amigo Fernando. Não queira acabar, de vez, com ele. E, vá lá saber-se porquê, também comigo. Sou, sabendo que há apenas dois capítulos para degustar, um prisioneiro no corredor da morte. Cabe a si encontrar o recurso que me tire do triste fado da cadeira eléctrica.
Abraço de coragem e pedinchão.
Confúcio,
Não tens o direito de amontoar tanto sentimento de culpa sobre os meus fracos ombros. Isso também acaba comigo.
Numa hipótese lisonjeira para nós – mas trágica para o mundo – a literatura e suas dores matarão dois bloguistas.
Não acho, apesar de tudo, que a literatura valha tanto.