Ao ler esta notícia, lembrei-me de algo que nunca esqueci. Estava no quarto, ocupado a tratar dos assuntos mais importantes do meu mundo com 8 anos de eternidade, aquilo que os adultos ignorantes diziam ser estar a brincar, e fiz um raciocínio que me deslumbrou. A visão da sua complexa geometria, e profundas implicações, tinha uma natureza sacra e pedia urgente partilha. Era valioso demais para ficar só comigo. Dirigi-me à cozinha, onde a minha mãe preparava o jantar. E disse-lhe Mãe, quando nós não entendemos aqueles que falam uma outra língua, eles também não nos conseguem entender a nós, têm o mesmo problema. A minha mãe olhou-me com surpresa complacente, talvez lamentando a desgraça ocorrida na maternidade que lhe teria levado o filho legítimo por troca com aquela coisa que lhe apareceu ali. Continuou a lavar os legumes e depois riu, disse-me Está bem, percebo. Eu ainda esperei uns segundos por alguma consequência verbal ou simbólica da minha declaração. Algum reconhecimento do génio tão generosamente revelado, mas nada. Aceitei ter cumprido assim a missão, cônscio da excelência da descoberta, e retirei-me daquele espaço. À noite, ouvi a minha mãe contar ao meu pai, com muitos risos à mistura de ambos, o episódio da cozinha. Tive alguma pena deles, que infantis.
pois olha a minha contava que eu muito pequenote lhe disse: o que é que a mã dizeu que o z não percebi
glossolalia?
mas portanto naquilo do diabolos como dúplice, como disseste, tem um princípio dual intrínseco. No brasiu é mais o capeta, revolucionário, desestabilizador
citação final catita,
http://clix.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/409639
O meu pai foi responsável por um forno de telha e trabalhava de noite. Eu passava muito tempo a perguntar as coisas do Mundo á minha mãe. Fazia recados: ia trocar uma dúzia de óvos por café ou uma barra de sabão. Coisas da infância. Tudo isso me veio à memória. Os estrangeiros que passavam eram turistas perdidos em «side car» á procura da Nazaré que alguns pronunciavam Nazare.
Val, eu ia dizer que tás igualzinho e não mudaste nada. Mas depois percebi que podia ser mal interpretado, neste contexto…
:)
fui ver a noticia.
o que eles não dizem é que ouvir (mesmo sem responder) não é assim tão facil.
e não é um “já sei” fazer luminoso… vai-se aprendendo a ouvir (assim escrito parece um lugar comum… oh…)
Mas do que gosto é de se saber que se provoca risadas nos outros, que lhes devolvemos a infantilidade sem eles se aperceberem!
upi,
há dias em que o mundo é uma merda, a vida é uma merda, o sol é uma merda, o mar é uma merda, as pessoas são uma merda e eu sou duas merdas. Hoje é um desses dias e ontem não foi melhor. Nada nem ninguém me faz arreganhar a tacha, que vai ficando escassa com a idade, coisa impensável quando eu era menino. Sendo que não inventaram ainda implantes de encanto, para eu colocar neste maxilar interior que já mastiga a custo a obrigação de existir.
Em dias assim, quem faça coisas lindas com as palavras e assim me arranque ao meu sofrimento umbiguista é meu inimigo figadal, um provocador que merece a guilhotina e nada menos. Quem ao fazê-lo se atreva a transportar-me a tempos perdidos no tempo, já, em que esta minh’alma mascarrada e ruça era ainda de uma alvura imaculada, merece pior ainda.
Mal me lembre de um castigo à altura do crime desço a dizer-to. Até lá odeio-te moderadamente, num esforço.
De moderação.
Z, não te esqueças do Livro de Job, onde o Diabo é um servo, ou colaborador, ou amigo, de Deus (portanto, de nós).
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jcfrancisco, “side cars” a caminho da Nazaré? Tens de escrever sobre isso.
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shark, estive aqui a consultar uma geringonça (o Google, já deves ter ouvido falar) e confirmei a minha suspeita: não é possível seres mal interpretado, neste ou noutros contextos. Por isso, sim – confirmo que estou na mesma.
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dina, e que nos podes contar sobre esse aprender a ouvir?
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Rui, estragas-me com mimos. E com estilo, o teu.
Os teus pais riram-se, e bem, da tua pequena grande descoberta. Só é pena ainda não teres percebido, tantos anos passados, como eles ficaram contentes com a tua perspicácia.
nik,
as conclusões a que chegas, com alguma frequência, deixar-me-iam de boca aberta de espanto se eu não soubesse aquela história do sujeito a quem perguntaram a idade, e que respondeu com um convite a um raciocínio de base igualmente científica, tal como o teu: «Bem, a minha mãe tem 53 anos e o meu pai nasceu na Beira litoral, agora é só o amigo fazer as contas…».
Nada como a perspicácia, vale ouro nos tempos que correm.
:-))
Valupi, não sabia essa do Livro de Job, é que eu nem sou baptizado rapaz e então sou ignorante nesses meandros, mas amanhã vou já ver que gosto muito de aprender. Um diabo amigo faz todo o sentido,
rvn, estás com certeza demasiado perspicaz para a minha tola
Nik, aproveitei a boca do Rui para me meter contigo, e prolongar as ambiguidades. Daí o cartoon.
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Z, é isso mesmo: o Diabo, afinal, é amigo.
nik,
’tou nada, ’tou só a entrar contigo! o meu cão pirou-se há mais de uma hora e ainda não apareceu, estou sozinho, sem cigarros e chateado que nem um peru.
queres que faça o quê?
Valupizinho (afinal, és uma criança)
Mas que post tão revelador quanto belo.
Quantos dos que leram o teu post (a começar por este sujeito que escreve) te terão realmente entendido? Para entender algo é preciso ter passado por uma experiência semelhante? Todas as crianças que fomos sentiram seguramente na sua infância a experiência da incompreensão junto do mundo adulto. Mas quantas formularam a tua pergunta? E o que teria acontecido se a tua mãe largasse os legumes e te falasse de Wittgenstein e Jackobson, com Saussure à mistura, numa jardineira imperceptível, mesmo para um pequeno génio como tu? Talvez ela tenha feito melhor: deu-te a provar, no meio da cozinha, a tua brilhante teoria, ao não entender a tua língua, apesar de lhe estares a falar na língua mãe. E tu tiveste a oportunidade de sentir, já então, a solidão do eu que fala para o outro, sempre com o sonho de rasgar a película da realidade vestida por palavras e despir-se assim do solipsismo a que a família, a língua e o mundo nos parecem condenar. Afinal, se o ser que te deu a vida, o amor, a herança genética e a educação não te conseguiu compreender, quem o fez, pela vida fora? Sentes que continuas a ser esta criança incompreendida? (espero que compreendas a minha língua…).
Valupi, gosto muito dessa pá. Mas afinal só no fds é que vou ao Livro que agora é burocracias, e odeio. Olha lá e voltando à racionalidade económica: já viste que coisa mais anormal, a taxa de juro é calibrada para remunerar o risco e a inflacção, resultado: empresta-se dinheiro aos depauperados a uma taxa de juro mais alta do que aos remediados, e depois, como não podia deixar de ser, torna-se o risco riscado.
Há alguma racionalidade nisto que não seja a da procura da catástrofe?
Salomé, acertas. Não só sou uma criança, como todos os outros à minha volta, com boa sorte, também o são; e seja qual for a sua idade. Passo a admitir que também tu és uma criança, o que faz de ti um ser que experimentou a incompreensão na tua infância, mas também no teu estádio adulto. É essa a explicação que encontro para o modo tão exacto como descreves o problema da comunicação.
Contudo, tenho uma novidade para ti: quando se descobre que não somos compreendidos por alguém não falar a nossa língua, descobre-se igualmente que o outro não se sente compreendido por nós. Creio que esta consciência corresponde ao domínio de uma língua que está na origem de todas as outras – e a que podemos chamar amor, à falta de nome melhor. A noção de que o amor pode ser, afinal, um problema de línguas à procura umas das outras, parece-me capaz de receber o apoio tanto do Saussure como da minha mãe.
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Z, a natureza humana mistura racionalidade, animalidade e vegetalidade. Sempre assim foi, e assim será por mais uns tempos. Portanto, tudo o que é humano, como a economia, segue o padrão.
Ora, ora, Valupi. É claro que fui descobrindo no meio de todas as palavras trocadas com os outros (e poucas vezes tocadas) que o amor são duas línguas que se encontram. É por isso que os pares amorosos têm uma linguagem privada, que mais ninguém consegue entender e cujo sentido se perderia na tradução. Até porque nas línguas trocadas e tocadas, há palavras e há silêncio. E a melhor forma de traduzir o silêncio é ouvi-lo por dentro. Mas voltando ao adulto que foste em criança, a tua mãe está de parabéns por ter dado ao mundo e aos teus leitores atentos um Valupi como tu. Por exemplo, aposto que ela nem sonha que tu escreves no Aspirina B, muito menos e neste caso particular, sobre ela. E sim, ainda bem que tens consciência de que ela se sentiu e provavelmente sente igualmente incompreendida por ti. No entanto, não será amor o que vos une? Amar não poderá ser aceitar o outro sem o compreender?
sim, amar está para além de toda a racionalidade, é como o mar
Valupi: ok, então vou dar uma de Besta,
convoco todo o negativo gerado sobre o conselho de governadores do BCE
Salomé, não creio que a criança na minha mãe tenha falhado a compreensão do adulto em mim nesse final de tarde onde se preparava o jantar. Por isso se riu ao contar a história a outra criança capacitada para compreender adultos com pinta de crianças. Era um riso amoroso, puro, infantil.
Trazes, entretanto, uma excelente questão: amar como aceitação do outro sem o compreender. Será? Para mim, espero bem que não. Porque não concebo o amor sem a sua concretização primeira: a compreensão. Talvez estejas a fazer alusão à ideia de que se pode amar sem conhecer – sem conhecer aspectos, dimensões, factos da vida do outro. Será? Se for o caso, creio que terás em ti mesma a resposta. Alguma vez amaste o que não conheceste?… Acaso não te angustias por desconhecer aquilo que era suposto não estar escondido havendo confiança?… Pois.
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Z, mas o mar tem razões que o céu desconhece, é só mergulhar para descobrires.
cheira-me que isto é contra mim,
http://www.publico.clix.pt/videos/?v=20080925170420&z=1
volto para escrever sobre ouvir.
como todas as mães vivo o que é ter de dizer duas, três, às vezes mais vezes as mesmas coisas. Faço um jogo comigo propria para ir mudando de estrategias para ser ouvida. Mas um dia estava com mais atenção ao momento e menos naquela pressa de sair de casa e parei: olhei para ele. Não estava mesmo a ouvir.
Afinal ele não está a fazer de proposito, nem está a ouvir a continuar a não reagir.
Pode parecer óbvio para os outros mas para mim foi como que uma revelação.
Desde desse momento mudei. Não paro de me maravilhar de como a simples atenção pode condicionar a audição.
Depois pensei nas inumeras vezes que não oiço mas aprendi a reagir “adequadamente no momento certo”
Agora tenho uma aprendizagem renovada: a de ouvir nos momentos em que me habituei a reagir adequadamente.
E como todas as aprendizagens: esta parte parece ser muito mais dificil!