É possível, e creio altamente provável, que eu tenha sido o único bípede implume nesta galáxia, e galáxias vizinhas, a lembrar-se de que no passado dia 24 de Agosto se celebraram 112 anos do falecimento de Bulhão Pato. Este autor está profundamente enterrado no esquecimento colectivo e no desinteresse académico, se pusermos a travessa das amêijoas de lado. E por fatais razões, pois a poesia do Raimundo já era intragável no século XIX, e a prosa do António não se recomenda estilisticamente, sequer narrativamente.
Porém, contudo, todavia, há caudalosas preciosidades no que nos deixou. Estou a ler as Memórias. O início do Volume I, em que descreve os seus primeiros anos de vida em Bilbau, onde nasceu, gera uma experiência de leitura marcante por ser retrato vivo, em ferida, de uma época e suas gentes há muito invisíveis para a contemporaneidade. Seguem-se inúmeros fragmentos de 65 anos de vida, convolutos na sua exposição, frequentemente dispersos e erráticos, e sem qualquer programa ideológico na estrutura da obra. Vistos como o registo de memórias afectivas, lhanas e saudosas, são maravilhas antropológicas universais — assim como cápsulas do tempo para os amantes da portugalidade, e ainda mais para os apaixonados por Lisboa.
No Volume III, página 235, tropecei no capítulo “A minha oração da côroa”. Ficou como um dos meus favoritos nos 3 volumes. O título é uma alusão irónica a Demóstenes e antecipa um exercício pitoresco e picaresco. Nele revive tempos de alegria e prazer com um grupo de amigos da juventude, anima a sua veia de gastrónomo, e descreve o confronto verbal com uma peixeira no mercado do Cais do Sodré, onde tinha ido comprar ostras para uma jantarada (isto é, almoçarada; se adaptarmos ao nosso horário). Sobre essa disputatio, em que choveu vernáculo e tabuísmos de parte a parte, o nosso valente herói apenas quis grafar um dos seus ditos: “Sempre és peixeira que, em vez de peitos, tens dois pés de meia com um pataco no fundo!“. Isto levou a moça a mostrar as “túrgidas e petulantes” mamas, ao Bulhão e a todos os que assistiam ao duelo, com eloquência exibicionista. Ele e ela continuaram a disparar mas não sabemos o quê, infelizmente. O relato termina com o festejo do seu histórico “triunfo capitolino” no meio dos amigos que ansiavam pelas ostras.
Ora, é do domínio público que o Al Gore inventou a Internet com o singular propósito de nos oferecer ainda mais meios para dizer disparates e perder tempo. Assumindo essa grandiosa missão, pedi a uma das fabulosas inteligências artificiais agora ao dispor — Claude, no caso (que muito recomendo) — para recriar o episódio do épico despique entre o Bulhão e a peixeira a partir do que o texto estabelece como ocorrência. Eis o que saiu da sua (nossa) imaginação:
Depois de ler, com muito gosto, o excelente post do senhor Valupi, em especial o diálogo entre o Autor e a Peixeira, sobre alguém de que só conheço as tais gostosas, veio-me “darrepente” à memória esta personalidade querida, também “profundamente enterrado no esquecimento colectivo” – muito embora, do ponto de vista literário, julgo, nada tenha a ver com o senhor Pato.
Refiro-me a Luís Pacheco.
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«Peixeira: olha bem seu cego do cu! Vê lá se isto são pés de meia, meu paneleiro de merda!»
Esta peixeira, como todas peixeiras experientes de vida conhecem por inerência e experiência o valor sensorial-sexual do corpo e, especialmente, de suas mamas que produz o leite que alimenta os filhos. Esta, como mulher e todas as mulheres conhecem por inerência do seu corpo que trazem consigo a natureza necessária à sobrevivência dos seus filhos antes e depois de nascerem.
Esta peixeira ‘puxou’ do peito para demonstrar que tal volume era carne do seu corpo de que ela se orgulhava e não outra coisa ou uma falsidade; jamais esta mulher poderia ter o sentimento de que o seu corpo era um monte de ‘vísceras e excrementos’. Ela jamais poderia ter o pensamento de odiar o seu próprio corpo.
Podemos mesmo afirmar que um paradoxo da existência humana é o momento exato em que o corpo expele mais vísceras e esterco e, simultaneamente, expele e trás à vida, dá à luz, um novo ser humano.
Odiar o próprio corpo é odiar-se a si mesmo e a existência humana.
https://www.youtube.com/watch?v=1BUaobwijlc
Boa sugestão de leitura, as Memórias de Bulhão Pato. Já estou a lê-las. A história da peixeira é magnífica. Eu tinha comprado as Memórias só para ler um relato da viagem de Antero a Nova Iorque, mas o resto ainda estava virgem. Sobre essa viagem, diga-se, vale mais ler o livro que António Arroio lhe dedicou.
O Pato era terrível quando o provocavam. Que o diga o Eça, a quem o Pato dedicou duas sátiras destruidoras.
Um abraço.
Sapador, consta que o Eça também foi mauzinho para o Pato.
O Pato sentiu-se provocado, mas enfiou uma carapuça que não lhe era destinada. O Eça não o conhecia nem tinha lido a poesia dele. Está tudo explicado aqui: https://purl.pt/271/1/iconografia/imagens/j1022g_18890208/j1022g_18890208.html
Sapador, muito obrigado por essa maravilhosa carta pública do Eça. Andava mortinho para a ler, e estava já convencido de que teria de ir ao livro do Carlos Reis, pois não tive arte para a descobrir no website da Biblioteca Nacional.
Ela confirma o que disse, Eça torturou o pobre coitado do Bulhão com requintes de implacável malvadez, juntando Pinheiro Chagas ao suplício. E ainda se pode pôr como hipótese que tenha inventado uma falsa génese da personagem quando tinha sido Bulhão o alvo original, só para aumentar o castigo e a humilhação. Não acredito nisso, mas dá que pensar tendo em conta a superior inteligência do Eça e, portanto, a sua inevitável propensão para a mais sofisticada mentira.