Ler é só para quem pode

No início do recolhimento geral, há um mês, de imediato apareceram sugestões de ocupação do acrescido tempo de lazer dentro da residência que a enorme maioria da população iria forçosamente gozar. Séries televisivas e jogos, ginástica e culinária, a ordem é opcional e idiossincrática, foram as propostas mais populares. Num segundo nível, mas inevitavelmente, a leitura desse objecto cada vez mais vanguardista chamado “livro”.

Ora, a leitura tem características que permitem um envolvimento e fruição de prazer análogos, e em certas condições leva a experiências de profundidade afectiva e intensidade emocional superiores, aos que se desfrutam nas propostas audiovisuais, lúdicas, corporais e gastronómicas. Acresce poder ser uma actividade gratuita, bastando ter acesso à Internet, ou vizinhos com livros nas estantes, para preencher o calendário literário de uma vida e ficar de fora quase tudo do que ainda restará para ler. Proposta ganhadora? Nada disso.

Só lê quem pode, não basta saber ler. A ubíqua disponibilidade exterior não encontra correspondência na periclitante e volúvel disponibilidade interior. Quem cresce sem exemplos de paixão pela leitura, paixão pela aventura nos reinos da imaginação, paixão pelas descobertas intelectuais, paixão pela magia da alteridade que vence os limites do espaço e do tempo, não vai trocar a influência do meio e dos meios tangíveis pela influência dos fins e princípios intangíveis. Mas basta estar-se ansioso, porque realmente se está a passar mal por razões de saúde e/ou financeiras, ou simplesmente pela obsessão com que se reage às alterações e retórica mediática da pandemia, para igualmente não haver capacidade para ir ao encontro daqueles que nos esperam nos livros. Tão iguais a nós no que mais importa.

A lista que segue não pretende convencer ninguém. Fica tão-somente como ilustração do que é possível encontrar à distância da curiosidade. Mantive a sequência pela qual tenho estado a ler, ou a reler, algumas obras. Criei o hábito de ler trechos em sequência desta lista, apreciando a juliana de temáticas e estilos, mas não recomendo o método como preferível a outro qualquer.

Cá vai alho:

Dom CasmurroMachado de Assis

Escrever para viver o que foi vivido, talvez não haja mais universal motivação para deixar à vista as “inquietas sombras”.

Leal conselheiro, o qual fez dom Duarte. Seguido do livro da ensinança de bem cavalgar toda sella.

Para além de ser uma primeira e transparente exposição de um estado patologicamente depressivo em língua portuguesa, e quiçá por causa disso, o texto deste rei português é um autêntico manual de “mindfulness” séculos antes de o termo entrar nos meandros da psicologia e da cultura pop. Ainda não cheguei ao “bem cavalgar”.

CaçaEduardo Montufar Barreiros

Deliciosos retratos do Portugal oitocentista pelas memórias de fim de vida de um queque cujos melhores momentos da sua existência foram passados a caçar. A sério, o homem era mesmo maluquinho pelo tiro à passarada e deixou este livro para o provar e nos dar a provar.

Novelas do MinhoCamilo Castelo Branco

Apetece ir buscar a sequência inicial do Blue Velvet, o filme de David Lynch. Para lá do espectáculo de um quotidiano plastificado, logo ao lado no jardim e na rega, só um bocado mais abaixo na selva do relvado, há bebés e cães a brincar com mortos e monstros horripilantes num frenesim de voragem insana.

As pupilas do Senhor ReitorJúlio Dinis

Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi médico. Neste romance, põe uma personagem também com essa profissão, “Daniel”, a ter um ataque de tesão apontado à noiva do seu irmão enquanto os dois cuidam de um velhinho prestes a bater a bota nos meandros diegéticos onde toda esta gente habita e fala. Tesão bem recebida pela sua destinatária, ou assim pareceu aos olhos dos dois médicos, personagem e autor. Não sei mas algo me diz que se devia começar a promover no ensino secundário a leitura desta prosa tão luminosa precisamente chamando a atenção dos interessados para o citado episódio prenhe de sugestões e interpretações.

Photographias de LisboaAlberto Pimentel

Do autor já tinha lido, devorado por razões bairristas, “A Estremadura Portuguesa – Primeira Parte – O Ribatejo”, que recomendo aos amantes da paisagem e da oligarquia portuguesas. Estas “photographias” nunca ultrapassam o nível de um olhar social que nem sequer chega a ser sociológico. São como uma viagem de charrete do Chiado a Belém e volta.

A cidade e as serrasEça de Queiroz

Entre outras tantas coisas fascinantes à disposição do afortunado leitor, esta é a obra em que Eça se confessa um putanheiro. Honi soit qui mal y pense.

Viagens na minha terraAlmeida Garrett

É possível encontrar camonianos. É possível encontrar pessoanos. É possível encontrar queirosianos. É possível encontrar saramaguianos. Raios, é até possível encontrar alçada-baptistianos. Há disso ao pontapé na imprensa, na academia, nos Cus de Judas. Só não encontro garrettianos. Cadê? Talvez seja uma raça extinta. Talvez apenas tenha de contar comigo, e com este monumento à arte de viver que grita “Amo a charneca”.

A correspondência de Fradique MendesEça de Queiroz

Entrar neste livro é o equivalente a entrar num templo da antiguidade, quando a antiguidade estava novinha a estrear. Ficar em silêncio durante e depois da sua leitura poderá ser a atitude mais apropriada. Porque sabemos que estamos, parágrafo atrás de parágrafo, aos pés de um deus. O deus do cinismo mais sofisticado e exaltante que a língua portuguesa conheceu até hoje.

Lisboa modernaZacharias d’Aça

Um português de lei, este Zacharias. Dá vontade de abraçá-lo e ir almoçar com ele. E depois ainda passar o tempo até ao jantar a ouvi-lo contar as suas memórias.

20 thoughts on “Ler é só para quem pode”

  1. Mas a literatura parou há um século? Há aqui muita gente distraída. Eu sei que dá trabalho olhar para os contemporâneos, mas vale a pena. Por exemplo, os últimos três Grandes Prémios de Romance e Novela APE/IPLB: Hélia Correia, H. G. Cancela, Ana Margarida Carvalho.

  2. O meu contributo:
    “Esteiros”, Soeiro Pereira Gomes
    “Quando os lobos uivam”, Aquilino Ribeiro
    “Ensaio sobre a cegueira”, José Saramago

  3. E, sim, em outras línguas:
    “In a free stpaulate”, (Num estado livre), V. S. Naipaul
    ” Operation Shylock: A confession”, ( Operação Shylock), Philip Roth
    “Judas”, (Judas), Amos Oz

  4. “Variaçando” em ré menor:

    “Seara de Vento”, Manuel da Fonseca.
    “A Selva”, Ferreira de Castro.
    “Discurso sobre o Filho-da-Puta”, Alberto Pimenta.

  5. As ideias nascem do pensamento dos filósofos e vós só indicais livros de ideias feitas?
    E que tal um livro como “História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell?

  6. Muito obrigado caro Val. A Pharmácia continua com a qualidade de sempre. Apraz-me ver também mencionado o livro do Amos Oz, uma obra-prima.

  7. E que tal um como, “Quem disser o contrário é porque tem razão”, de Mário de Carvalho”, ou este que, surpreendentemente, me veio à memória, “A arte e a vida social, de G. Plekanov”?

  8. comecei a ler o don casmurro , muito engraçado. nunca li nada do machado de assis , mas costumo gostar muito de sul americanos.

  9. Camacho:
    Para todos os efeitos me declaro fiel discípulo do ” Discurso sobre o Filho-da-Puta” do Alberto Pimenta !!!

  10. Obra intemporal, Duas Braças, tratado rigoroso e exaustivo sobre as variadíssimas estirpes de vírus que tentam limitar a alma humana, não há coronavírus, conadovírus, caralhodovírus ou porradevírus nenhum que lhe afecte a actualidade e o rigor.

  11. Como precisamos de aliviar o humor da época que tal “Os velhos marinheiros” do Jorge Amado ?
    Ou então fazer uma viagem com “Era Lisboa” e Chovia” de Dario Moreira de Castro Alves….

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