Formulações jurídicas habilidosas.
O “poder para se perdoar a si mesmo” é uma atribuição que não lembraria ao diabo prever nas democracias ocidentais avançadas para um chefe de Estado, muito menos a sua inclusão numa Constituição. As Constituições costumam pressupor princípios éticos evidentes e não verbalizáveis e, portanto, ser omissas nesta matéria. Mas, já que o tema foi lançado, e já que penso nisso, não deixa de ser do mais aliciante que há para presidentes prevaricadores. Dirá um presidente apanhado em crimes: “Que mal fiz eu? Nenhum! Mas, se fiz, cá estou para me perdoar. “
E isto a propósito de quê? A propósito do processo judicial que corre paralelamente ao exercício do mandato do Donald, um mandato que consiste em levar a cabo radicalismos/atrevimentos políticos, económicos e comerciais na sua relação com o resto do mundo que só não tiveram ainda resultados catastróficos porque há líderes políticos que ainda estão atónitos/ incrédulos e outros que, dadas as semelhanças, já o toparam e optam por virar a singularidade presidencial americana a seu favor. E há os russos, que já o tinham topado muito antes.
As investigações de Mueller, antigo director do FBI, ao conluio com a Rússia na campanha de Trump para as últimas eleições prosseguem, havendo já 19 acusados formalmente (entre os quais 13 russos e 5 americanos), além de 3 organizações russas. Há, portanto, sérias hipóteses de o envolvimento de Trump não escapar à prova. O envolvimento ou o que se apurar na investigação às suas finanças.
Foi depois de destituições (como a de James Comey, que acusou Trump de lhe pedir que deixasse de investigar Michael Flynn (antigo conselheiro nacional de segurança)) e escusas (como a de Jeff Sessions) que Rod Rosenstein nomeou Mueller “Special Counsel”, encarregado de investigar as ligações e/ou a coordenação entre o Governo russo e elementos associados à campanha de Donald Trump, assim como a possível obstrução à Justiça por parte deste (“and any matters that arose or may arise directly from the investigation, and any other matters within the scope of 28 CFR 600.4 – Jurisdiction“). E Mueller e o seu Grande Júri lá vão prosseguindo com os interrogatórios e as análises.
Inquieto (e ameaçador) desde o início, Trump quis saber se estava a ser investigado. Mueller respondeu, ou melhor, tem respondido, que o Presidente não é um “alvo” mas sim um “sujeito” (ou objecto?) da investigação. Formulação ambígua que tem sido discutida abundantemente, mas que joga com dois conceitos que as orientações do Departamento de Justiça distinguem, sendo “subject” o menos grave, já que se refere apenas a uma pessoa cuja conduta se insere no âmbito da investigação do grande júri. Trump é, ou tem sido, apenas um “subject”, não um alvo.
Mas Trump, na prática um alvo, tem quem o defenda. Lembram-se da firma “Better call Saul?” da série Breaking Bad? Pois, aqui é mais “Better call Rudy”. Gente que, a meu ver, ousa ultrapassar o cliente em descaramento e comicidade. A equipa de advogados, liderada por Rudy Giuliani, enviou, em Janeiro, uma carta ao dito “Special Counsel” expondo basicamente o argumento de que, descubra-se o que se descobrir, para todos os efeitos, Trump é intocável e todo-poderoso e nem sequer deve ser ouvido. Se lerem, conhecerão os argumentos. (Ler aqui a notícia da BBC)
Com’assim? – perguntará o leitor.
Segundo a carta, a que o New York Times teve acesso e que publicou (para fúria de Trump), os advogados invocam e lembram que o presidente, enquanto “chief legal officer” (ou seja, o que manda em tudo, mesmo na Justiça) não pode ter obstruído a Justiça pela simples razão de que tem poderes para pôr fim às investigações e até – se quiser (Constituição omissa) – “o poder para se perdoar a si mesmo”. Podem gargalhar. Mas (oh quanta bonomia e segurança!) não os usará. Até porque seria “politicamente difícil” (“tough”, nas palavras de Giuliani) de gerir as consequências. Mas a hipótese foi sugerida e por alguma razão. Será que nenhuma descoberta o poderá jamais incomodar? Judicialmente, claro. A ele, que tem poderes para se perdoar a si próprio? É que não há nada que diga que não tem. Argumento do arco da velha.
Quanto ao “impeachment” – acusação e declaração de falta de idoneidade para o exercício do cargo – não há nada que os seus advogados possam fazer nem auto-perdão que lhe valha. A haver provas irrefutáveis de “misconduct”, poderemos assistir à expulsão da Casa Branca de um inquilino-presidente que se perdoou a si próprio. Mas, como o processo é moroso (começa por ser decidido na Câmara de Representantes e passa depois para o Senado, onde a condenação final exige, mesmo assim, uma maioria de dois terços) não vai ser tão depressa, se é que algum dia, que o ex-apresentador de “O aprendiz” sai de cena. Resta o resto do mundo aguentar-se. Ou servir-se, não é, ó Kim?
Tenha cuidado com o que deseja: Mike Pence o Vice que substituirá o Donald em caso de impeachment consegue ser muito pior. Para já diz falar diáriamente com Jesus que, tal como o homónimo fala com os jogadores, lhe dá as dicas sobre o que deve fazer.
Quanto à figura juridica aplicavel a Trump neste momento é a de ser “a person of interest” para a investigação. Como se traduz ? Creio que não tem tradução exacta.