Donde vem a actual jactância da extrema-direita, com o seu cortejo de ódio, ameaças e crimes? Há inúmeras explicações, para todos os gostos, obviamente. 1.345.689 portugueses mostraram que são apoiantes do seu projecto de violência política, por exemplo, eis uma das mais próximas no tempo e na consequência. Mas o crescente exibicionismo dos códigos do horror seria impossível sem a cumplicidade de parte da elite política e da totalidade da elite jornalística.
Imaginemos um 2019 onde em 2017 Passos Coelho não tinha ido à CMTV buscar Ventura para ensaiar o discurso da extrema-direita em Loures com a chancela do PSD. Neste 2019 alternativo, Ventura teria saltado do painelismo para o partidarismo sem padrinho nem legitimação, apresentando-se às legislativas com o Chega e suas bandeiras: Quarta República, ciganos, corrupção generalizada, diminuição dos direitos dos arguidos, prisão perpétua, pedófilos da Casa Pia, culto salazarista, vingança contra o 25 de Abril, dizendo-se herdeiro de Sá Carneiro, atacando o papa Francisco, revelando que foi Deus quem lhe atribuiu a missão de salvar Portugal. Que acham que iria acontecer? Teria sido eleito nessas legislativas? Ou em qualquer outra?
Por alguma razão, no Parlamento português a extrema-direita não entrou até 2019. Não foi por falta de candidatos, pois em todas as eleições da democracia estiveram presentes. Mas eram vistos como politicamente marginais, com influência meramente folclórica, ainda mais inúteis do que os monárquicos (estes, com um admirável Gonçalo Ribeiro Telles a contribuir para o bem comum). Seria impossível privarem com o PSD, sequer com o CDS. No nosso 2025 real, depois de um crescimento fulminante, é incontornável o diagnóstico: não só Passos, Cavaco e Rio aceitaram alianças com a extrema-direita como os dois primeiros têm feito campanha por ela, ano após ano.
No jornalismo, é igual. Mesmo quando parece o contrário. Como aqui: Grande Entrevista — André Ventura. Logo nos primeiros minutos, Ventura solta o seguinte: “Acho que a Justiça é passível de ser atacada por poderes políticos de má-fé. Já vimos isso com José Sócrates e o procurador-geral da República, quando foi o caso de José Sócrates.” O contexto implícito remetia para Pinto Monteiro e o Face Oculta. Esta calúnia não mereceu qualquer reparo de Vítor Gonçalves, e foi apenas a primeira de um alguidar delas que o Ventura despejou. Donde, para o jornalista a representar a RTP, pode-se publicitar na estação pública que um certo ex-procurador-geral da República cometeu crimes incrivelmente graves, ficando eles impunes, que tal não lhe merece qualquer tipo de reacção. Calúnia que, por inerência, implica na sua lógica que todo o sistema político, do Parlamento ao Presidente da República, e todo o sistema judicial, do Ministério Público aos tribunais, tivessem de ser cúmplices do tal criminoso denunciado pelo Ventura na RTP no dia 4 de Junho do corrente.
Pessoas que muito admiro elogiaram Vítor Gonçalves porque ele reagiu às calúnias quando o alvo foi Paulo Pedroso — e aqui, se calhar, apenas porque Ventura o colocou entre a espada e a parede ao atacar a RTP por o ter como comentador. Só que nem nesses reparos, meio displicentes e muito superficiais, pudemos assistir ao que se impunha caso o jornalista quisesse honrar o seu código deontológico: de imediato questionar Ventura sobre os princípios constitucionais e o edifício do Estado de direito democrático que as suas calúnias estavam a dinamitar.
O que seria preciso para este Gonçalves ter coragem de expor a pulhice do Ventura como ela fétida e visceralmente é? Essa retórica terrorista, feita de semiótica de taberna e civismo de claque de futebol, não o motiva a querer defender a cidade? Seria preciso ouvir dele, na sua cara, que a polícia devia atirar a matar caso os suspeitos na via pública parecessem ciganos, africanos ou indostânicos? Não sei. É que ter ouvido Ventura berrar que há cidadãos que são bandidos porque ele, Ventura, assim o decidiu a partir de “escutas” não foi suficiente para o jornalista perder os sorrisinhos e os paninhos quentes. A paixão pela liberdade, portanto, não é bem o seu forte.